*(LITERATURA CLANDESTINA REVOLUCIONÁRIA)*MICHEL FOUCAULT LIBERTE-ME.

VC LEU MICHEL FOUCAULT,NÃO?ENTÃO O QUE VC ESTÁ ESPERANDO FILHO DA PUTA?ELE É A CHAVE DA EVOLUÇÃO DOS HUMANOS.HISTORIA DA LOUCURA,NASCIMENTO DA CLINICA,AS PALAVRAS E AS COISAS,ARQUEOLOGIA DO SABER,A ORDEM DO DISCURSO,EU PIERRE RIVIÉRE,A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS,VIGIAR E PUNIR,HISTORIA DA SEXUALIDADE,EM DEFESA DA SOCIEDADE,OS ANORMAIS...EVOLUÇÃO OU MORTE!

Sunday, May 27, 2007

entrevista com Judith Butler...garotas não fiquem bravas,por eu ter roubado as fotos e vcs:)27/05/07

http://www.youtube.com/watch?v=CFGaAO4OnLI Em maio de 1996 Judith Butler fez uma rápida viagem pela Europa.Começou com uma visita relâmpago à Holanda, onde seu trabalho vem sendo acompanhado com grande interesse. Butler foi recebida pelo Departamento de Estudos da Mulher, do Instituto de Artes da Universidade de Utrecht. Para nós, sua presença em carne e osso pareceu uma boa oportunidade para colocar diante dela nossas perguntas sobre noções tão complexas como as de performatividade de gênero, construção do sexo e abjeção dos corpos, questões que ela coloca em Gender Trouble (1990) e Bodies That Matter (1993). Os textos de Butler são leituras fascinantes mas nos deixam muitas vezes perplexas. Assim, apenas algumas horas após sua chegada, Butler foi abordada por duas ansiosas entrevistadoras holandesas. Era o início de uma valiosa e inspiradora troca de idéias. No dia seguinte, um seminário intensivo de pesquisa proporcionou a estudiosas holandesas da área de estudos da mulher uma oportunidade de colocar suas perguntas mais urgentes. À noite, tivemos uma instigante palestra sobre os limites das restrições legais sobre o discurso do ódio, seguida de uma calorosa discussão sobre os prós e os contras e as diferenças entre as regras políticas e constitucionais nos Estados Unidos e nos Países Baixos. Para nós, esses encontros concluíram, provisionalmente, uma longa e proveitosa imersão no pensamento de Butler. A entrevista que segue é o resultado de três etapas. Para nos prepararmos para o encontro com Butler, passamos várias animadas tardes e noites discutindo o trabalho dela e seu significado para nossa própria teorização e pesquisa. A segunda etapa se deu por escrito, quando Butler ofereceu elaboradas respostas a nosso primeiro conjunto de perguntas. A conversa face-a-face em Utrecht, finalmente, permitiu que os dois lados se explicassem, clarificassem suas idéias, tentassem eliminar mal-entendidos e se divertissem um pouco também.
A entrevista se concentra em três questões interrelacionadas. Em primeiro lugar, nos interessamos pela importância do trabalho de Butler e pelo modo como ela espera que ele seja entendido. Quais são suas reivindicações feministas e filosóficas? Trata-se de um exercício de cuidadosa análise conceitual, ou deve ser lido como uma ficção política? É uma crítica política a respeito da (não)representabilidade de (alguns) corpos, ou uma desconstrução da própria noção de representabilidade? Trata a questão epistemológica de como/se podemos conhecer nossos corpos (sexuados), ou é uma tentativa de compreender como os corpos (sexuados) podem ser ¾ o que seria uma questão ontológica? A resposta de Butler é inequívoca: suas preocupações principais não são as da filosofia 'conceitualmente pura', mas as de uma veia teórica muito mais política e estratégica. Concorda que suas proposições sobre a existência de corpos abjetos são francamente contraditórias. Mas, diz ela, são propositalmente contraditórias: colocadas como fórmulas performativas, são feitas para impor ou invocar essa existência 'impossível'. Podemos ver o trabalho de Butler como uma ficção política ¾ mas sempre nos dando conta de que ele oferece ficções que querem criar 'realidades'. Em um segundo momento, nos aprofundamos um pouco mais no significado da noção do 'abjeto'. Que tipos de corpos poderiam contar como corpos abjetos? Prostitutas, travestis, dementes? O corpo andrajoso, o corpo mutilado, o corpo velado? Fica claro que Butler reluta em dar exemplos. Mas explica em detalhe o porquê. Finalmente, a entrevista coloca questões sobre sexo e heterossexualidade. Não há outros eixos que determinem a exclusão dos corpos além de heterossexualidade, e não corremos o risco de reforçar exatamente o que se quer minimizar ao apresentar "a matriz heterossexual" como a fonte do todo o mal? Novamente, a resposta de Butler nos remete ao político e ao estratégico e não a razões filosóficas ou empíricas. "Posso estar exagerando", admite ela, "mas temo que colocar outras categorias de exclusão no mesmo patamar que a heterossexualidade pode levar à 'abjeção' do homossexual e especialmente do corpo lésbico."
IRENE MEIJER e BAUKJE PRINS: Preparando-nos para esta entrevista, muitas vezes nos questionamos sobre que tipo de trabalho Bodies That Matter na verdade é: deveríamos vê-lo como um exercício filosófico de análise conceitual, como crítica política, ou como um projeto estratégico de desconstrutivismo? Carolyn Heilbrun, em um ensaio sobre o valor da escrita das mulheres, declarou: "O que importa é que vidas não servem como modelo; somente histórias o fazem. E é difícil inventar histórias para servir de modelo. Podemos apenas recontar e viver as histórias que lemos ou ouvimos. Vivemos nossas vidas através de textos. (...) Seja qual for sua forma ou meio, essas histórias nos formaram a nós todas; são o que precisamos usar para criar novas ficções, novas narrativas".Até que ponto seu trabalho se enquadra nessa visão da escrita das mulheres? Seu projeto pode ser entendido como uma maneira de contar novas histórias para guiar nossas vidas? Ou você preferiria vê-lo como uma tentativa de fornecer a nós, feministas, novos instrumentos analíticos para criticar nossas vidas? Em outras palavras, como você gostaria que seu/sua leitor/a ideal lesse Bodies That Matter: como uma forma de ficção política ou como uma investigação filosófica de cunho diagnóstico? JUDITH BUTLER: Até posso entender a descrição de meu trabalho como ficção política, mas acho que é importante enfatizar que nem toda ficção aparece sob a forma de uma história. A interessante citação de Carolyn Heilbrun enfatiza "histórias" e sugere que a sobrevivência das mulheres se dá através de narrativas. Talvez seja verdade, mas não é bem dessa forma que trabalho. Acredito que um imaginário político contém todo tipo de maneiras de pensar e de escrever que não são necessariamente histórias, mas que são fictícias, no sentido de que delineiam modos de possibilidade.
Meu trabalho sempre teve como finalidade expandir e realçar um campo de possibilidades para a vida corpórea. Minha ênfase inicial na desnaturalização não era tanto uma oposição à natureza quanto uma oposição à invocação da natureza como modo de estabelecer limites necessários para a vida gendrada. Pensar os corpos diferentemente me parece parte da luta conceitual e filosófica que o feminismo abraça, o que pode estar relacionado também a questões de sobrevivência. A abjeção de certos tipos de corpos, sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, e viver com um tal corpo no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia. Eu me enfureço com as reivindicações ontológicas de que códigos de legitimidade constroem nossos corpos no mundo; então eu tento, quando posso, usar minha imaginação em oposição a essa idéia. Portanto, não é um diagnóstico, e não apenas uma estratégia, e muito menos uma história, mas um outro tipo de trabalho que acontece no nível de um imaginário filosófico, que é organizado pelos códigos de legitimidade, mas que também emerge do interior desses códigos como a possibilidade interna de seu próprio desmantelamento. IM e BP: Conforme entendemos, em Bodies That Matter você aborda um dos problemas mais espinhosos para o/a construtivista radical, ou seja, o de como conceber a materialidade em termos construtivistas. Com o auxílio da noção da performatividade da linguagem, você consegue evocar a imagem tanto da solidez quanto da contingência dos chamados fatos empíricos. Você constrói um poderoso argumento através do qual pensamos poder refutar os severos argumentos realistas sobre a incontestabilidade de "Death and Furniture". Numa tentativa de captar os argumentos do seu livro, diríamos que ele revela o caráter constitutivo das construções discursivas. Mais particularmente, ele mostra que as condições sob as quais os corpos materiais, sexuados, tomam forma estão relacionadas a sua existência, à possibilidade de serem apreendidos e a sua legitimidade.
JB: Gosto muito deste último resumo de minhas reivindicações. Entretanto, acho que pode ser um erro argumentar que Bodies That Matter é um trabalho construtivista ou que procura considerar a materialidade em termos construtivistas. Seria igualmente correto ¾ ou possível ¾ dizer que ele busca entender por que o debate essencialismo/construtivismo tropeça em um paradoxo que não é facilmente ou, na verdade, não é jamais superado. Assim como nenhuma materialidade anterior está acessível a não ser através do discurso, também o discurso não consegue captar aquela materialidade anterior; argumentar que o corpo é um referente evasivo não equivale a dizer que ele é apenas e sempre construído. De certa forma, significa exatamente argumentar que há um limite à construtividade, um lugar, por assim dizer, onde a construção necessariamente encontra esse limite. IM e BP: No prefácio a Bodies That Matter, você admite haver uma certa necessidade e irrefutabilidade das experiências primárias, como corpos vivendo, comendo, sentindo dor e morrendo. "Mas", continua, "sua irrefutabilidade de modo algum sugere o que significaria afirmá-los e através de quais meios discursivos." Aqui você sugere que estará abordando questões referentes à possibilidade de conhecimento, isto é, referentes aos efeitos constitutivos da afirmação de experiências primárias separadamente do fato de serem irrefutáveis e primárias. Por outro lado, você enfatiza seguidamente que Bodies That Matter é mais que "apenas" um projeto epistemológico. Parece que você quer também abordar a questão de como o mundo é, independentemente de como o percebemos/construímos. Nesse sentido, ficamos intrigadas por seu uso da palavra "há". Na maioria dos casos, como em "não há um ator por trás do ato", ela é empregada na forma negativa. Com esse uso você pretende negar a "originalidade" da entidade em questão ¾ e não sua existência como tal. Mas qual seria então a condição desse "há" em frases afirmativas, como "há uma matriz de relações de gênero" ou "há um exterior [constitutivo]"? Se elas não sugerem o caráter pré-discursivo da matriz heterossexual ou o exterior constitutivo, a que então se referem?
JB: É uma boa pergunta, e me alegro por ter a oportunidade de respondê-la. Para mim a questão de como chegamos a conhecer algo, ou, de fato, as condições da possibilidade de afirmarmos que sabemos, podemos respondê-la melhor se nos voltarmos para uma questão anterior: quem é esse 'nós' que faz com que a questão se torne uma questão para nós? Como é que esse 'nós' foi construído em relação a essa questão do conhecimento? Em outras palavras: como a própria questão epistemológica se tornou possível? Foucault oferece um outro passo, tornado possível pelo tipo de trabalho que realiza. Esse passo tem a ver com a indagação sobre como certos tipos de discurso produzem efeitos ontológicos ou operam através da circulação de movimentos ontológicos. Em parte, vejo-me trabalhar no contexto de discursos que operam através de argumentos ontológicos ¾ "não há um ator por trás do ato" ¾ recirculando o "há" para produzir um contra-imaginário à metafísica dominante. Com efeito, parece-me crucial recircular e ressignificar os operadores ontológicos, mesmo que seja apenas para apresentar a própria ontologia como um campo questionado. Acho, por exemplo, que é crucial escrever frases que começam com 'acho', mesmo correndo o risco de ser mal interpretada como adicionando o sujeito ao ato. Não existe nenhuma forma de contestar esses tipos de gramáticas a não ser habitá-las de maneiras que produzam nelas uma grande dissonância, que 'digam' exatamente aquilo que a própria gramática deveria impedir. A razão pela qual a repetição e a ressignificação são tão importantes para meu trabalho tem tudo a ver com o modo de eu conceber a oposição como algo que opera do interior dos próprios termos pelos quais o poder é reelaborado. A idéia não é baixar uma proibição contra o uso de termos ontológicos mas, ao contrário, usá-los mais, explorá-los e resgatá-los, submetê-los ao abuso, de modo que não consigam mais fazer o que normalmente fazem.
Há, entretanto, algo mais a considerar, que nos remete de volta à questão do construtivismo. Expressões como "há uma matriz de relações de gênero" parecem se referir, mas também se referem lateralmente, dentro da linguagem, às convenções de atribuição ontológica. São 'mímicas' filosóficas no sentido descrito por Luce Irigaray. Referem-se a certos tipos de convenções filosóficas. Mas também quero sustentar que a reivindicação ontológica nunca pode apreender totalmente seu objeto, visão esta que me diferencia um pouco de Foucault e me alinha temporariamente com a tradição kantiana, conforme utilizada por Derrida. O "há" aponta em direção a um referente que não consegue capturar, porque o referente não está completamente construído na linguagem, não é o mesmo que o efeito lingüístico. Não existe um acesso a ele fora do efeito lingüístico, mas o efeito lingüístico não é o mesmo que o referente que não consegue capturar. É isso que permite que existam várias maneiras de se referir a algo, e nenhuma das quais pode alegar ser aquela a que a referência é feita.


IM e BP: O trocadilho de seu título é muito feliz: "bodies that matter" ao mesmo tempo se materializam, adquirem significado e obtêm legitimidade. Corpos que não importam são corpos 'abjetos'. Tais corpos não são inteligíveis (um argumento epistemológico) e não têm uma existência legítima (um argumento político ou normativo). Daí, não conseguem se materializar. Entretanto, você argumenta que os corpos abjetos também 'existem', isto é, como um poder excluído, disruptivo. A essa altura, ficamos um tanto confusas: corpos que não conseguem se materializar podem mesmo assim 'ser' corpos? Se você quer que o conceito de 'abjeto' se refira a corpos que 'existem', não seria mais adequado dizer que, embora corpos abjetos sejam construídos, tenham se materializado e adquirido inteligibilidade, ainda assim não conseguem ser qualificados como totalmente humanos? Em outras palavras, não seria o caso dizer que corpos abjetos importam ontológica e epistemologicamente, mas ainda não são considerados num sentido político-normativo? JB: Realmente, em um sentido estritamente filosófico, dizer ao mesmo tempo que "há" corpos abjetos e que eles não têm reivindicação ontológica parece ser o que habermassianos denominariam uma contradição performativa. Bem, poderíamos tomar uma posição medieval e escolástica a esse respeito e dizer, ah sim, que alguns tipos de seres têm existência ontológica mais completa que outros, etcetera, etcetera. Permaneceríamos, assim, dentro de um tipo de esquema filosófico que seria conceitualmente satisfatório. Mas eu gostaria de fazer um outro tipo de pergunta. Ou seja: como é que o domínio da ontologia, ele próprio, está delimitado pelo poder? Como é que alguns tipos de sujeitos reivindicam ontologia, como é que eles contam ou se qualificam como reais? Nesse caso, estamos falando sobre a distribuição de efeitos ontológicos, que é um instrumento de poder, instrumentalizado para fins de hierarquia e subordinação, e também com vistas à exclusão e à produção de domínios do inimaginável. Todo esse território da ontologia que o bom filósofo, aquele conceitualmente puro, considera óbvio já vem profundamente corrompido em sua origem. Ora, não podemos olhar a gramática e dizer: "Se eu disser que há corpos abjetos, devo conseqüentemente ser capaz de retroceder, a partir da afirmação 'há', para uma ontologia anterior". Dificilmente, dificilmente. O que eu poderia dizer é que "há corpos abjetos", e isso poderia ser um performativo ao qual eu atribuo ontologia. Eu atribuo ontologia exatamente àquilo que tem sido sistematicamente destituído do privilégio da ontologia. O domínio da ontologia é um território regulamentado: o que se produz dentro dele, o que é dele excluído para que o domínio se constitua como tal, é um efeito do poder. E o performativo pode ser uma das formas pelas quais o discurso operacionaliza o poder. Assim , estou realizando uma contradição performativa, propositalmente. E estou fazendo isso exatamente para confundir o filósofo conceitualmente correto e para colocar a questão da condição secundária e derivativa da ontologia. Para mim não se trata de uma pressuposição. Mesmo se eu disser que "há corpos abjetos que não gozam de uma determinada situação ontológica", eu realizo essa contradição de propósito. E estou fazendo isso precisamente para jogar no rosto daqueles que diriam: "Mas você não estaria pressupondo...?" Não! Minha fala não precisa necessariamente pressupor... Ou, se o faz, tudo bem! Talvez esteja produzindo o efeito de uma pressuposição através de sua performance, OK? E isso é ótimo! Comecem a se acostumar! Mas trata-se claramente de inaugurar um novo domínio ontológico, não de pressupor um que já exista. Trata-se de instituir um domínio discursivamente.

IM e BP: Mesmo assim, ainda fica difícil apreender a noção do 'abjeto' em seu trabalho, o que pode ser devido ao caráter eminentemente abstrato da maioria de suas definições e descrições. Você parece um tanto relutante em dar exemplos mais concretos do que poderia ser considerado corpos abjetos. JB: Bem, sim, certamente. Pois, como se sabe, as tipologias são exatamente o modo pelo qual a abjeção é conferida: considere-se o lugar da tipologia dentro da patologização psiquiátrica. Entretanto, prevenindo qualquer mal-entendido antecipado: o abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e cuja materialidade é entendida como ''não importante'. Para dar uma idéia: a imprensa dos Estados Unidos regularmente apresenta as vidas dos não-ocidentais nesses termos. O empobrecimento é outro candidato freqüente, como o é o território daqueles identificados como 'casos' psiquiátricos.
IM e BP: Concordamos que falar abertamente sobre esse assunto se aproxima dos limites do que pode ser dito. Mesmo assim, você poderia desenvolver esse tópico um pouco mais?
JB: OK, farei isso, mas tenho que fazer outra coisa ao mesmo tempo. Poderia enumerar muitos exemplos do que considero ser a abjeção dos corpos. Podemos notá-la, por exemplo, na matança de refugiados libaneses: o modo pelo qual aqueles corpos, aquelas vidas, não são entendidos como vidas. Podem ser contados, geralmente causam revolta, mas não há especificidade. Posso verificar isso na imprensa alemã quando refugiados turcos são mortos ou mutilados. Seguidamente podemos obter os nomes dos alemães que cometem o crime e suas complexas histórias familiares e psicológicas, mas nenhum turco tem uma história familiar ou psicológica complexa que o Die Zeit alguma vez mencione, ou pelo menos nenhuma que eu tenha encontrado em minhas leituras desse material. Assim, recebemos uma produção diferenciada, ou uma materialização diferenciada, do humano. E também recebemos, acho eu, uma produção do abjeto. Então, não é que o impensável, que aquilo que não pode ser vivido ou compreendido não tenha uma vida discursiva; ele certamente a tem. Mas ele vive dentro do discurso como a figura absolutamente não questionada, a figura indistinta e sem conteúdo de algo que ainda não se tornou real. Mas seria um grave erro pensar que a definição do abjeto se esgota nos exemplos que dou. Gostaria de protelar qualquer solução fácil até encontrar um aparato conceitual que proporcionasse à operação da abjeção uma espécie de autonomia relativa, de até mesmo um vazio, uma falta de conteúdo ¾ exatamente para não poder ser captada através de seus exemplos, de modo que seus exemplos não pudessem se tornar normativos do que queremos significar por abjeto. O que seguidamente acontece é que as pessoas apresentam teorias abstratas sobre coisas do tipo da abjeção, depois dão os exemplos, e então os exemplos se tornam normativos de todo o resto. O processo se torna paradigmático e acaba por produzir suas próprias exclusões. Torna-se fixo e normativo no sentido de rigidez. IM e BP: Então, a abjeção é um processo? Um processo discursivo? JB: Acho que sim! Acho que tem que ser, sim.
IM e BP: Então, não se trata de corpos em si, mas do modo como aparecem no discurso? Nós, por exemplo, nos perguntamos se o corpo oriental, o corpo velado, o corpo feminino sob véus, quando entra no espaço público, conta como exemplo do abjeto. Hesitamos a esse respeito, porque esse corpo, essa mulher, age de acordo com uma norma estabelecida. De certa forma não conseguimos conciliar abjeção com normatividade. JB: Esta pergunta leva a algumas outras questões diferentes. Assim, deixem-me dar algumas outras respostas. Uma delas é que eu acho que discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue.
E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. Então, não quero afirmar que haja uma construção discursiva de um lado e um corpo vivido de outro. Mas o outro aspecto, que talvez seja mais importante aqui, é que nós também devemos nos preocupar com certas formas de descrever o orientalismo e especialmente aquele orientalismo que diz respeito a mulheres, a corpos de mulheres e à auto-representação das mulheres. Por exemplo, há vários debates sobre o véu. Existem algumas teóricas, teóricas feministas, que argumentam que o véu é, na verdade, muito complexo e que muitas vezes um certo tipo de poder que as mulheres exercem no contexto de países islâmicos de se expressar e ter influência é facilitado pelo véu, exatamente porque esse poder é desviado e tornado menos identificável. Então, se vocês me falassem da 'mulher sob o véu', significaria a mulher no Irã? A mulher de uma certa classe social? Em que contexto? Com que propósito? Qual é a ação, qual é a prática de que estamos falando? Em que contexto estamos tentando decidir se a mulher sob o véu é ou não um exemplo do abjeto? O que me preocupa é que, em certos casos, isso poderia ser visto como uma abjeção: no sentido de que essa mulher é literalmente proibida de mostrar sua face e assim entrar no domínio público de humanos com face. Em um outro nível, no entanto, poderíamos dizer que, como ocidentais, estamos reconhecendo mal um certo artefato cultural e instrumento religioso que tem sido uma das formas tradicionais de as mulheres exercerem poder. Esse debate específico sobre o véu tem atrapalhado os debates feministas. A questão é: as feministas estão sendo orientalistas quando assumem que a mulher sob o véu é sempre uma mulher abjeta? Quero deixar essa questão em aberto; é por isso que eu acho que deve haver uma incomensurabilidade entre a elaboração teórica da abjeção e seus exemplos. E pode até ser que o exemplo funcione em alguns contextos e não em outros. IM e BP: Falando em contexto, não seria isso o outro lado da questão do "há"? Como você mencionou antes, uma das funções da fórmula "há" é que você se engaja em um debate sobre ontologia, sobre o que é e o que pode ser pensado. Em Gender Trouble, você intervém no debate sobre a construção das identidades de gênero. Conforme você observa aqui, "a coerência interna ou unidade de cada gênero, homem ou mulher, requer uma heterossexualidade tanto estável quanto oposicional. Essa heterossexualidade institucional tanto requer quanto produz a univocidade de cada um dos termos gendrados que constituem o limite das possibilidades gendradas dentro de um sistema oposicional, binário de gênero".7 Nossa pergunta se refere à mencionada necessidade do caráter heterossexual de práticas que geram identidades estáveis. A matriz heterossexual também não obscurece os poderes performativos da divisão sexual entre mulheres? Historiadoras feministas têm mostrado que a estabilidade das identidades de gênero não dependem automaticamente de negociações heterossexuais, mas também de diferenças entre mulheres 'respeitáveis' e outras mulheres, entre homens 'respeitáveis' e outros homens. Questionar a normatividade da heterossexualidade é um gesto poderoso, mas será que não obscurece o fato de que as pessoas constroem noções de diferença não apenas através do gênero mas também de divisões sexuais/sexualizantes no interior dos gêneros através de categorias de raça, classe ou habilidades físicas? Mulheres portadoras de deficiência sofrem por serem estigmatizadas como menos femininas do que suas companheiras sem problemas físicos. Por outro lado, mulheres negras são às vezes estereotipadas como sendo mais 'mulheres', enquanto que em outros contextos são consideradas menos femininas (ladylike) do que mulheres brancas. A construção de identidades de gênero, estamos sugerindo, deu-se não apenas pela repetição da diferença entre mulheres e homens, femininidade e masculinidade, mas também pela constante afirmação da oposição hierárquica entre femininidade e falta de femininidade, entre masculinidade e falta de masculinidade. O que você acha do argumento de que o oposto de femininidade é freqüentemente não a masculinidade mas a falta de femininidade e de que essas noções nem sempre coincidem?

JB: Gosto muito da idéia de que o oposto de masculinidade não seja necessariamente a femininidade. Não tenho problemas com isso. Mas a relação entre sexualidade e gênero, da forma como vocês a colocam aqui, se baseia em Bodies That Matter. Na verdade, em Gender Trouble escrevi algo semelhante ao que vocês estão sugerindo. Embora em Bodies That Matter eu enfatize que a sexualidade é regulada através da degradação do gênero, isso certamente não funcionaria se o gênero não fosse ele próprio visto como adequado somente no contexto de uma certa regulação da sexualidade. Então não vejo problema com isso. Mas tenho lido muita história feminista que assume que tanto o que é adequado quanto o que é 'impróprio' na sexualidade feminina são tipos de heterossexualidade (dentro do casamento e fora dele, ou seja, doméstica e profissional). A questão que quero colocar tem a ver com o que permanece fora desses binários, o que não é nem mesmo mencionável como parte do impróprio ou incorreto. Temo que a questão da homossexualidade feminina é silenciada exatamente por esses esquemas históricos feministas que permanecem acriticamente amarrados a esses binarismos. Suponho que vocês estejam sugerindo que a sexualidade imprópria é uma rubrica ampla, que poderia acomodar todo tipo de prática sexual. Mas o que me preocupa é que a distinção entre o que é próprio e impróprio busca elidir a questão da homossexualidade. E acho que aí estou provavelmente disposta a cometer uma espécie de exagero retórico para manter viva a questão da homossexualidade, particularmente a do lesbianismo. O que não é a mesma coisa do que dizer que toda a investigação deveria fazer isso ou que essa é a opressão primária, ou a chave do problema, ou seja lá o que for. Mas indica onde eu me insiro no debate crítico atualmente. IM e BP: Ao colocar a heteronormatividade no centro, você não corre o risco de reproduzir sua importância? Não é uma recaída? Quando se quer estudar o conceito de mulher em um determinado tempo ou lugar, quando se quer saber quem pode ser considerada mulher e quem não pode ser, não seria mais esclarecedor olhar 'lateralmente', por exemplo, para a noção da não-mulher (unwomanly) ou do não-feminino?
JB: Bem, vocês sabem, o que me preocupa é isso. Se o lesbianismo for entendido como uma dentre muitas formas de impropriedade, então a relação entre sexualidade e gênero permanece intacta no sentido de que não nos perguntaríamos sob quais condições o lesbianismo realmente afeta a noção de gênero. Não é simplesmente a questão de o que é uma mulher própria ou imprópria, mas o que não é absolutamente concebível como uma mulher! E é aqui que retornamos para a noção de abjeção. Eu acho que a abjeção tenta sinalizar o que permanece fora dessas oposições binárias, a ponto mesmo de possibilitar esses binarismos. Quem é considerada uma mulher 'imprópria'? Quem passa a ser denominada imprópria no texto que a historiadora estuda? Que tipos de atos são classificados ou designados ou nomeados? E quais são tão inomináveis e inclassificáveis que se tornam impróprios à impropriedade, ficando fora do impróprio? Refiro-me a atos que constituem um domínio daquilo que não pode ser dito e que condiciona a distinção entre impróprio e próprio. Ainda não somos capazes de considerar aqueles atos e práticas e modos de vida que foram brutalmente excluídos desse mesmíssimo binário próprio e impróprio. Eles não são a pré-história benigna desse binarismo, mas sim seu violento e inominável avesso. E é isso que eu quero continuar a abordar.


IM e BP: E assim voltamos ao abjeto.
JB: Acho que sim. O que vai ser realmente interessante é ver como se escreve uma história disso; os traços que foram, ou que estão sendo, na sua maior parte, apagados. É um problema muito interessante para uma historiadora. Como ler os traços daquilo que chega a ser falado. Não acho que seja impossível de fazer, mas acho que é um problema realmente interessante: como escrever a história daquilo que não deveria ter sido possível.
IM e BP: Em seu desejo de ampliar o domínio de bodies that matter, você não está sozinha. Essa ambição é compartilhada por intelectuais de filiações filosóficas bastante diferentes. Lembramos especialmente os estudiosos da filosofia da ciência como Donna Haraway e Bruno Latour. Entretanto, suas propostas no sentido de ampliar nossos horizontes a respeito dessa questão não se concentram exclusivamente no domínio do que poderia ser considerado corpos humanos. Eles também desejam transformar nossos conceitos de 'Natureza' e das 'Coisas', para desenvolver considerações mais radicais da ecologia e da tecnologia. Por essa razão, preferem a noção de 'ator' à noção (humanista) de 'sujeito'. Ao contrário da subjetividade, o agenciamento não é uma prerrogativa dos humanos. Animais, árvores, máquinas ¾ por exemplo, qualquer coisa que tenha um impacto sobre ou que afete alguma outra coisa ¾ pode ser percebida como um ator. Tanto Haraway quanto Latour utilizam a noção do 'híbrido' para se referir a essa vasta área de atores que não são (vistos como) humanos. Como você avalia a relação entre sua própria teorização de corpos abjetos como desafios que produzem ruptura no que conta como totalmente humano e a afirmação de híbridos (não-humanos) por teóricos da ciência como Haraway e Latour? Por exemplo, seu conceito de corpos 'abjetos' acomoda a possibilidade de que corpos não-humanos passem a ser considerados matéria/se materializem? Ou o conceito se restringe ao universo do que 'pode ser vivido' como totalmente humano? JB: Acho que o trabalho de Haraway e Latour é muito importante. E não vejo problema com a noção de ator. Mesmo assim, acho que existem razões para se trabalhar com a noção de sujeito, razões que têm tudo a ver com o modo pelo qual ele está relacionado ao legado do humanismo. Gostaria de sugerir também que a noção de sujeito carrega com ela uma duplicidade que é crucial enfatizar: o sujeito é aquele que se presume ser a pressuposição do agenciamento, como vocês sugerem, mas o sujeito é também aquele que está submetido a um conjunto de regras que o precedem. Este segundo sentido funciona a contrapelo da concepção humanista de um self autônomo ou de um ator humano firmemente enraizado. Na verdade, a palavra 'ator' carrega uma ressonância teatral que seria muito difícil de ser adotada em meu trabalho, devido à tendência de ler 'performatividade' como um projeto goffmanesco de colocar uma máscara e escolher representar um papel. Prefiro trabalhar o legado do humanismo contra ele próprio, e acho que tal projeto não entra necessariamente em choque com aqueles/as que buscam desalojar o humanismo com vocabulários que dispersam o agenciamento através do campo ecológico. Há duas maneiras de desfazer o mesmo problema, e me parece importante ter teóricas e ativistas trabalhando em ambos os pólos.




Saturday, May 26, 2007

entrevista com Domenico De Masi .26/05/07

Você já imaginou fazer apenas o que gosta a vida inteira? Mas e daí, viveria do quê? Sonhos? Se imaginarmos o trabalho como um fardo, a situação realmente parece impossível. Mas e se o trabalho, o lazer e o estudo começassem a se misturar em nossas vidas de tal forma que não desse mais para diferenciar uma coisa da outra?Esta é a proposta de Domenico de Masi, sociólogo italiano da Universidade La Sapienza, de Roma, e presidente da Escola de Especialização em Ciências Organizativas, a S3 Studium. Ele defende a idéia que é chegado o momento de cultivarmos o ócio criativo para uma nova era. Utopia? Não. Cada vez mais pessoas e empresas aderem aos seus conceitos e passam a ter vidas mais felizes e produtivas.A produção desta entrevista ocorreu dentro do conceito de teletrabalho e envolveu pessoas comprometidas com esta idéia. Luiz Carlos Pires, jornalista e antropólogo, coordenou a equipe formada por Sonia Grisolia, Manoel Fernandes Neto e Mario Persona. A tradução é de Cristina Fioretti.
Pergunta: Quais foram os ganhos tangíveis e os que continuam intangíveis na revolução virtual do trabalho e no tempo livre, observados no XV Seminário de Ravello, onde o senhor foi um dos organizadores ?Domenico De Masi: Os ganhos tangíveis consistem no fato de que se consegue produzir mais bens e serviços com menor esforço físico e menos stress intelectual. Os ganhos intangíveis estão na possibilidade de se usufruir, em tempo real, de uma rede de interlocutores, de amigos, de colaboradores.Pergunta: Reunidos no Japão na mesma época do Seminário, os sete países mais ricos do mundo acharam que para a nova economia ser implantada em todo o planeta os ricos precisariam dar Internet para os pobres. Como os filósofos em Ravello viram isto ?
Domenico De Masi: De espontânea vontade os ricos nunca darão nada aos pobres. É necessário que os pobres saibam defender os seus direitos e obter as próprias vantagens. Em todos estes anos nos quais o G7 se reuniu, na América o número de presos dobrou e em todo o mundo aumentou a distância entre ricos e pobres.Pergunta: Na Widebiz, na Nova-e e na wwwWriters, empresas virtuais, o teletrabalho faz parte dos seus cotidianos, onde se mistura prazer, estudo e trabalho, mas também se sente culpa pela liberdade, o que nos leva a trabalhar mais e, às vezes, não sabemos se estamos trabalhando por culpa ou diversão. O aprendizado do ócio criativo passa por esta etapa em que não percebemos que estamos transformando o paraíso num inferno ?Domenico De Masi: O ócio criativo é uma arte que se aprende e se aperfeiçoa com o tempo e com o exercício. Existe uma alienação por excesso de trabalho pós-industrial e de ócio criativo, assim como existia uma alienação por excesso de exploração pelo trabalho industrial. É necessário aprender que o trabalho não é tudo na vida e que existem outros grandes valores: o estudo para produzir saber; a diversão para produzir alegria; o sexo para produzir prazer; a família para produzir solidariedade, etc.Pergunta: Hoje na Internet percebemos, por um lado, os poderosos de sempre tentando cercear e organizar o caos, e por outro, os "criativos" inventando soluções que pulam estas barreiras, como os programas Napster e o Gutnella. A sociedade criativa sobre a qual o senhor fala estaria nascendo aqui e como se distribuiria nela o poder ?Domenico De Masi: Na sociedade industrial a maioria das funções de trabalho exigia pouquíssimas aptidões profissionais. Mesmo um macaco poderia trabalhar na linha de montagem. Na sociedade pós-industrial a maioria das funções de trabalho exige notáveis aptidões intelectuais. Disso deriva o perigo de um superpoder das classes profissionais, de uma ditadura dos clérigos sobre os leigos.
Pergunta: O senhor acha que as novas empresas ponto-com já administram seus recursos humanos de forma inovadora?Domenico De Masi: Os call-center são linhas de montagem muito parecidas com aquelas com as quais a Ford construía o velho Modelo T. As empresas pós-industriais ponto-com administram os recursos humanos como se fossem velhas empresas industriais. Ainda ninguém inaugurou modelos organizacionais baseados na motivação (no lugar do controle), na desestruturação do tempo e do espaço, na redução do horário de trabalho, na perfeita igualdade entre homens e mulheres.Pergunta: O senhor vê o teletrabalho que algumas empresas já adotam como a forma correta de motivar, bastando para isso estar longe da empresa no mundo real para ser mais criativo? O que é, na sua opinião, um modelo de relação de trabalho ideal?Domenico De Masi: O teletrabalho serve para economizar tempo, dinheiro e stress. Sozinho, não assegura nenhuma criatividade. Uma relação de trabalho ideal permite aos trabalhadores não apenas ganhar dinheiro, mas também de satisfazer as necessidades de introspecção, amizade, amor, diversão, beleza e convivência.Pergunta: O senhor enxerga a instituição do trabalho como a conhecemos hoje como inadequada. Suas idéias não poderiam vir a se tornar em uma nova instituição, sujeita também ao envelhecimento?Domenico De Masi: Todas as idéias estão sujeitas ao envelhecimento. Esta é a lei do progresso.Pergunta: Idéias são importantes, porém colocá-las em prática são sempre um desafio. O senhor acredita que suas idéias devam ser colocadas em prática, ou seriam elas apenas uma previsão do que acontecerá naturalmente ?Domenico De Masi: Nenhum progresso acontece automaticamente. É necessário criar um movimento de opinião e depois um grupo de luta para colocar em prática as idéias inovadoras.Pergunta: Toda a economia convencional está baseada na forma como trabalhamos hoje. Não haveria uma mudança drástica na economia caso suas idéias fossem postas em prática, ou será que seria necessário primeiro uma mudança na economia para criar o ambiente propício à concretização de suas idéias?Domenico De Masii: As mudanças estruturais e aquelas culturais se influenciam entre si. Eu espero que a difusão de minhas idéias consiga criar um grupo crítico de pessoas dispostas a mudar realmente o seu modelo de vida e lutar para conquistar a felicidade.Pergunta: O senhor poderia dar um exemplo de algum país ou empresas que já estejam aplicando suas idéias, ou parte delas, com resultados positivos e que possamos identificar?Domenico De Masi: Em todo o mundo começa a haver pessoas ou grupos ou empresas ou cidades que impõem os seus modelo de vida sobre bases completamente novas. No Brasil é suficiente ver o caso de Ricardo Semler em São Paulo, o caso de Lerner em Curitiba, o caso de Oscar Niemeyer no Rio.Pergunta: Muitas pessoas simpatizam com suas idéias. Estariam elas apenas concordando com sua natureza abstrata porque não gostariam de mudar tanto ?Domenico De Masi: A maioria das pessoas que concorda com as minhas idéias sente uma real necessidade de modificar o modelo de vida imposto ao ocidente americanizado sob o impulso do pensamento empresarial: competitividade cruel, stress existencial, prevalência da esfera racional sobre a esfera emocional.Pergunta: Sabemos que todos estamos, de um modo ou de outro, descontentes com o modo de vida que levamos, o que nos leva a filosofar sobre alternativas sonhadas. O sucesso de suas idéias não poderia ser atribuído justamente ao fato de poder ser tomado como algo intangível pelas pessoas, algo irrealizável ?
Domenico De Masi: Espero que não.Pergunta: O senhor disse que gostaria de alimentar seus dias de ócio criativo no Brasil. Como isto seria possível num país que, apesar de sua dança, oralidade, alegria e sensualidade, é extremamente injusto socialmente ?Domenico De Masi: Diz Oscar Niemeyer, isto é, o maior arquiteto vivo: "O que conta não é a arquitetura mas os amigos, a vida e este mundo injusto que devemos modificar". E diz também: "Se eu fosse um homem rico, me envergonharia". Se eu vivesse no Brasil, procuraria imitar Oscar Niemeyer.Pergunta: A natureza das empresas hoje é bem diferente daquilo que o senhor imagina como sendo ideal. O senhor acredita que mudanças drásticas precisariam ser feitas em todo o sistema produtivo para poder abraçar uma nova forma de trabalho?Domenico De Masi: Não. Podem começar também em empresas individuais. Quando uma empresa inaugura um modelo organizacional baseado em minhas idéias, ganha muito mais e os seus trabalhadores são muito mais felizes.Pergunta: Como o senhor vê a contribuição da Internet e de uma sociedade voltada para o virtual na concretização de suas idéias ?Domenico De Masi: A Internet é uma oportunidade maravilhosa. Estou feliz em viver em um mundo onde existe a Internet.Pergunta: Que conselho o senhor daria a um empresário que quer redesenhar sua empresa levando em consideração suas idéias ?Domenico De Masi: Que venha para a Itália, para minha escola, e fique conosco todo o tempo necessário para projetar uma empresa feliz.Pergunta: Na relação de trabalho, o senhor acha que o Estado deve ajudar a direcionar para o ideal ou simplesmente tirar sua mão do processo e deixar que ele aconteça naturalmente ?Domenico De Masi: No contexto humano, nada acontece naturalmente: tudo é fruto da inteligência, da programação e da vontade das pessoas. Só o liberalismo crê que o mercado resolve "naturalmente" todos os problemas.Pergunta: Quanto mais a sua teoria é debatida mais empresas surgem com conceitos duvidosos: desenvolvem uma nova visão da escravidão onde o chicote é um sistema interno de comunicação terrorista que apregoa o trabalho e a servidão como único bálsamo para o desenvolvimento profissional. Gostaríamos que o senhor comentasse esta questão e dissesse quanto tempo vai demorar para estas empresas perceberem o equívoco.Domenico De Masi: Muitos seres humanos são masoquistas. Depois se tornam sádicos. Depois se tornam sadomasoquistas. Não sei se ou quando as minhas idéias triunfarão. O meu dever é difundi-las e agir tenazmente para que se firmem o mais rápido possível.Pergunta: Quando o homem vai usar a tecnologia favoravelmente a um estilo de vida enriquecedor?Domenico De Masi: Ricos economicamente? Hoje já é usada com esta finalidade. Ricos humanamente? Quando substituirmos uma sociedade competitiva por uma sociedade solidária.Pergunta: É possível humanizar o capitalismo ?Domenico De Masi: O capitalismo é baseado no egoísmo e na competitividade: isto é, sobre premissas brutais, não humanas. Portanto é impossível humanizá-lo.Pergunta: A nanotecnologia prevê um futuro sem fome, doenças, velhice e trabalho. O natural seria estar desempregado e fertilizando uma sociedade efetivamente criativa e ociosa. Mas como somos impulsionados pelas ambições pessoais de TER e não de SER, esta mudança de foco drástica não seria pura utopia, relegando a nanotecnologia a categoria de não compatível com a espécie humana?Domenico De Masi: A espécie humana sempre combate a sua incansável luta contra a morte, a dor, a miséria, o cansaço. Um bilhão de pessoas já conseguiu vencer esta batalha contra a dor, a miséria e o cansaço. Resta a morte, mesmo se vivemos o dobro de nossos bisavós.Pergunta: Como o senhor sente o ócio contemplativo, o ócio pelo ócio, o simples prazer de contemplar a vida ?Domenico De Masi: Eu não gosto do ócio puro: depois de um pouco de tempo, me aborrece. Eu gosto do ócio "criativo": isto é, a síntese do trabalho, do estudo e da diversão. O ócio criativo nunca me aborrece. Nem mesmo se tenho que responder a 22 perguntas.



Friday, May 25, 2007

entrevista toni negri.


http://www.youtube.com/watch?v=_uPvPh_9iMY O filósofo italiano Antonio Negri, autor do livro "Império", uma espécie de bíblia dos alter-mundialistas, escrito com um ex-aluno, Michael Hardt, fez uma grande viagem à América do Sul, em novembro de 2003, quando visitou a Argentina e o Brasil. Ficou impressionado com o que viu. Um governo de esquerda no Brasil destacando-se na cena internacional, movimentos sociais ativos na Argentina.Acusado de ser o mentor intelectual das Brigadas Vermelhas, Negri se exilou na França por 14 anos. Resolveu voltar à Itália, em 1997, foi preso e julgado e até 2002 cumpriu prisão domiciliar. No ano passado, Negri readquiriu sua liberdade plena. Hoje viaja pelo mundo dando conferências e cursos e vendo de perto os movimentos sociais que tanto o entusiasmam.Nesta entrevista, de sua casa em Roma, por telefone, o filósofo marxista analisa o governo Lula, fala da Argentina, da configuração do mundo pós-guerra do Iraque e da construção da Europa, que, segundo ele, os Estados Unidos querem impedir.
Sobre o Fórum Social Mundial, o senhor disse ao jornal "Le Monde": "É um momento fundamental na construção de um contra-império. Faz anos que eu não via num movimento social essa capacidade e inteligência para compreender a violência do poder e preparar continuamente de maneira tão imprevisível estratégias de lutas novas e inventivas". Como avalia o governo do PT ?Toni Negri: O PT representa algo de totalmente imprevisível porque era um governo de esquerda tradicional que se baseava em forças de esquerda também tradicionais. E, no entanto, o que foi feito é um enorme esforço de inovação, de invenção e de experimentação política. O PT começou imediatamente a falar em nível mundial, algo extremamente importante. Ninguém esperava isso. Meu julgamento sobre a política do governo Lula é absolutamente positiva.
É evidente que os problemas do Brasil -e os da América Latina em geral- são enormes e que não é em alguns meses que se vai resolvê-los. Mas é também evidente que a única maneira de resolvê-los é procurar uma solução a nível mundial. Nesses países, a revolução não é possível, ela já não era possível na União Soviética, na América Latina então... Seria completamente estúpido imaginar um futuro revolucionário para países como o Brasil ou a Argentina, e estou muito zangado com certas camadas da esquerda local que não entenderam nada do que Lula procura fazer, do que Kirchner procura fazer.Tem-se a impressão de que elas perderam a capacidade crítica. Compreender a decisão do governo argentino de não pagar a dívida, eis o que é importante! Compreender que isso não teria sido possível sem o apoio do governo brasileiro. Compreender que para bloquear Cancún, isto é um projeto imperial violento e injusto, era preciso obter a aliança da Índia e da China -e aí também foi através de Lula que isso foi possível.Quer dizer que o senhor aprova 100% a política interna de Lula?Negri: Eu não seria capaz de dizer muita coisa sobre a política interna dele porque não conheço suas posições e realizações tão bem quanto a política externa. Mas acredito firmemente que os problemas do Brasil são insolúveis a não ser que a comunidade internacional faça um verdadeiro esforço. A escravidão ainda não acabou, o Brasil, infelizmente é um país escravagista, um país no qual a cor da pele determina a vida das pessoas e isso não mudará se não se fizer uma convergência muito ampla das forças políticas novas. Tenho a impressão de que o governo Lula vai por esse caminho.
O Brasil é mesmo um país escravagista?Negri: Em Brasília, só me apresentaram um negro: Gilberto Gil. Os negros representam 70% da população, não ? Eles não têm nada, vivem na miséria. Jamais uma revolução tentou se aliar aos negros. Nos Estados Unidos, houve movimentos negros, no Brasil não. A esquerda brasileira tem a consciência tranqüila. Ela não pensa nisso, prefere não pensar.


O senhor encontrou no Brasil Marco Aurélio Garcia, um dos articuladores da política externa do governo Lula. Além dele, esteve com o líder do MST, João Pedro Stédile, e com Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo. Qual a impressão que lhe causou cada uma dessas pessoas?Negri: Prefiro não comentar esses encontros estritamente pessoais.Como o senhor vê a sociedade civil argentina depois da grande crise que arruinou o país?Negri: Com a crise, surgiu uma espécie de insurreição. O governo Kirchner conseguiu estabelecer um diálogo com as forças populares e foi sobre essa base que ele pôde pedir ajuda aos países capitalistas centrais mantendo uma certa abertura democrática no país. E quando falo de abertura democrática não falo somente da representação política tradicional, mas dos movimentos, da capacidade excepcional dos "piqueteros" e dos outros, das assembléias, das organizações de bairros e de vilas, de construir um outro discurso e outras práticas políticas no seio da sociedade argentina.
Acho que a única possibilidade de sair disso tudo é a construção do Mercosul, uma unidade política entre um certo número de grandes países, Argentina, Brasil e os andinos. Os Andes são importantes: lá também parece-me que acontece uma verdadeira revolução social, profunda, a partir de certas reivindicações dos nativos. Talvez seja a primeira vez que os índios ousam se levantar contra as oligarquias locais.O senhor fala da Bolívia?Negri: Falo da Bolívia, da Colômbia… A eleição do prefeito de Bogotá é um sinal importante. Mas falo também do Uruguai, do Paraguai, do Peru e até do Equador: há movimentos muito interessantes, mesmo se são evidentemente ainda frágeis e menos visíveis que os do Brasil e da Argentina. Volto ao que dizia no início, que Lula interpretou uma virada histórica essencial: não é simplesmente o representante da esquerda tradicional, mais ou menos interna à sociedade civil e que segue uma concepção muito pragmática da democracia.Ele é alguém que compreendeu que lutas e movimentos sociais estão acontecendo e que uma transformação social profunda está ocorrendo, não apenas ao Brasil e na Argentina, mas em toda a América do Sul -que recusa agora ser apenas o lugar onde os americanos vêm fazer seus negócios sujos e que pede a dignidade política e social que sempre lhe foi negada.Como Lula pode fazer um governo realmente de esquerda e seguir as receitas do FMI?Negri: O Brasil está muito distante da Itália para que eu possa dizer -minha viagem durou apenas um mês. Mas estou certo que todos os governos da América Latina acabarão por aprender com Lula o que significa fazer uma política ativa e tornar-se um verdadeiro ator político na cena internacional. É preciso parar de ser vítimas. É preciso expressar-se como homens capazes de decidir seus próprios destinos e o do país. Só se precisa disso, e contudo é uma mudança enorme. Alguns chamam a isso uma revolução.Seu percurso é dramaticamente ligado à história contemporânea da Itália. Como o senhor avalia o governo atual de seu país?Negri: Berlusconi representa uma experiência extremamente interessante do ponto de vista da ciência política. A Itália tem uma história que foi populista, fascista -ela inventou o fascismo- e hoje está inventando o populismo midiático. Berlusconi é isso: um homem de televisão que dirige um país a partir de técnicas de marketing, de gestão de imagem -a começar pela sua. Mas a saúde do país é outra coisa: o clima social está em ebulição, as pessoas vivem mal.



A Itália hoje é um país no qual as lutas -operárias, cidadãs, sociais- estão surgindo, um país onde se vêem programas de organização pós-socialistas importantes e amplos. Estou ao mesmo tempo pessimista sobre a situação política do país e bastante otimista diante dos movimentos populares de protesto que tendem a crescer cada vez mais.Muitos viram na invasão do Iraque uma ação dirigida contra a ONU. A Organização das Nações Unidas ainda tem um papel e qual é ele num mundo em que os Estados Unidos se autorizam a fazer "guerras preventivas"?Negri: Não, eu não acho que foi uma guerra contra a ONU. Para mim, independentemente dos pretextos usados para justificá-la, a guerra do Iraque teve características de um golpe de Estado. Foi um golpe de Estado com implicações complexas, por exemplo, contra a Europa, contra o euro, contra a idéia de um espaço europeu ao mesmo tempo financeiro, comercial, monetário e político capaz de ameaçar uma ordem mundial até então centrada nos EUA. A guerra no Iraque é a fachada visível de uma nova guerra fria, agora entre os Estados Unidos e a Europa. E isso não pode ser compreendido sem o roteiro imperial.A função da ONU já estava provavelmente esgotada antes da guerra. A ONU foi totalmente incapaz de impor um número infinito de resoluções relativas ao conflito israelense-palestino. Ela não soube intervir nos genocídios mais terríveis. A estrutura está morta há muito tempo, sua eficácia é atualmente nula, é preciso reconhecer. A ONU é uma organização de nações, que sentido ela pode ter ainda num contexto já totalmente globalizado?
Qual será o futuro para as nações sem a ONU?Negri: Infelizmente não sou vidente, não faço profecias! Talvez tenhamos a vitória das forças democráticas no nível global, quer dizer a derrocada da linha atualmente imposta pelo governo americano, a construção de uma ordem global imperial na qual a reconstrução das Nações Unidas teria um sentido -sabendo-se que isso não seria mais a União de nações num sentido estrito. O que é atualmente visível é que o mundo está impregnado de forças democráticas poderosas: são elas que poderão decretar o fim do poder das nações, do egoísmo das elites capitalistas, dos interesses do capital. A nova organização mundial deverá ser uma organização democrática das multidões e não dos Estados-nações.
Quando o senhor escreveu "Império", os Estados Unidos ainda não tinham vivido o 11 de Setembro. Como esse atentado muda o mundo?Negri: De fato. Mas acho que o governo americano já tinha estabelecido um novo programa de antecipação da guerra que passava pela definição de uma capacidade de intervenção no mundo inteiro e por um programa que levava em conta a constituição do Império. Considero o 11 de Setembro como algo que aconteceu num contexto que tinha sido já amplamente antecipado e que causou uma reação que se pode considerar como um verdadeiro golpe de Estado. O 11 de Setembro em si é uma coisa horrível, é evidente. Mas quero crer que os Estados Unidos fizeram dele um pretexto para um golpe de Estado em escala mundial. Isto é, o momento de resolver o verdadeiro problema que se colocava : quem comandará o Império? Quem vai ser o dono da soberania no Império?
No seu livro o senhor diz que o Império não é americano, "o Império é capitalista, é a ordem do ‘capital coletivo’, esta força que ganhou a guerra civil do século XX". Viveremos já a quarta guerra mundial como pretende a doutrina Bush, que considera a guerra fria como tendo sido a Terceira Guerra Mundial?

Negri: Não sei se estamos na terceira, na quarta ou na quinta guerra mundial e não sei se isto interessa. Mas repito: o Império que tentei descrever depois de analisar sua constituição e seu funcionamento não são os Estados Unidos. Não se pode reduzir o Império ao imperialismo americano, mesmo se ele participa do Império, evidentemente. O que está em jogo atualmente na escala do Império é um novo tipo de soberania. E os Estados Unidos tentam se apropriar dessa soberania -daí o interesse de uma guerra preventiva ou, infelizmente, efetiva, sem fim, em escala mundial.É dentro do capitalismo que se confrontam as forças que procuram se apropriar do poder imperial: como na Antiguidade, os monarcas e as aristocracias se chocam. As duas primeiras guerras mundiais eram ainda essencialmente guerras entre Estados-nações. Hoje, o Império não é nem o bem nem o mal, é uma outra estrutura mundial -uma estrutura que enterrou definitivamente a velha estrutura dos poderes, das prerrogativas e das fronteiras nacionais. O espaço não é mais o mesmo. E as guerras, reais ou virtuais, de baixa ou de alta intensidade, não são mais as mesmas. Mas os mortos e o sofrimento se assemelham ao que foram sempre: uma barbárie.Em "A Europa, a América, a guerra", o filósofo Étienne Balibar pensa uma Europa que faria um contrapeso à potência americana. Os Estados Unidos têm uma pretensão de soberania universal além de um projeto imperialista, como pensa Balibar?Negri: Sim, penso que os Estados Unidos têm uma pretensão de soberania universal, mas a partir de um projeto que se mantém imperialista. Por isso, a construção da Europa é essencial. A Europa deve ser aberta, ela não deve se pensar como uma super-nação. Deve, ao contrário, escolher a via do federalismo, um federalismo aberto que não procura unificar e reduzir as diversidades, o poder das singularidades sob o jugo de uma entidade de Estado soberano.Em suma, um verdadeiro pluralismo, a federação das singularidades. Penso, realmente, que o projeto europeu pode ser uma abertura política importante para o mundo e transformar-se num "experimentum", uma tentativa de governo democrático de um novo tipo.Em que termos pode ser feita a reestruturação das instituições e do direito internacional ?Negri: Não acho que possa haver um novo direito internacional. Existe um direito imperial, interior ao Império. É necessário um direito democrático e cosmopolita real, um direito que não tenha como objetivo manter e assegurar a coexistência pacífica das nações, mas construir uma democracia global sob a pressão de grupos democráticos que existem dentro do próprio Império.Na revista "The New Republic", o jornalista Andrew Sullivan escreveu que a principal potência que se beneficiará com a construção da Europa é a França. Os americanos querem destruir a França para destruir a Europa?Negri: É mais que evidente que os EUA fazem tudo para destruir a Europa, faz 50 anos que eles tentam impedir a construção da Europa. No "New York Times", eles exultavam mais com o fracasso do projeto de constituição européia do que com a captura de Saddam. Por outro lado, é verdade que a França procura representar a Europa e se comporta com uma certa arrogância, mas não penso que seja uma solução. A Europa é um projeto mais complexo e mais vasto que a realidade da França. Não se pode limitar ao clássico confronto de nações soberanas.Os americanos vão conseguir dobrar a Europa?
Negri: Não sei mas de fato, se não houver um movimento parecido com o que indica Etienne Balibar, isto é, democrático radical, não somente na Europa, mas no mundo inteiro, é possível que eles consigam.


O cavaleiro do mortos vivos.artigo de Slavoj Zizek.

Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?

Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).



É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável. O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.

Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.


Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.

Saturday, May 19, 2007

Contra os répteis que se arrastam em suas tocas

O filósofo alemão Peter Sloterdijk contra-ataca.Os principais jornais alemães trazem diariamente um caderno de cultura, chamado de "Feuilleton", que abre espaço à opinião de escritores, filósofos e pensadores. A palavra "Feuilleton", que vem de folhetim, sugere histórias de crimes e intrigas; mas esses suplementos desempenham um importante papel no debate político e cultural, como verdadeiros formadores de opinião pública.Foi justamente no "Feuilleton" do Frankfurter Rundschau (edição de 27/09), numa linguagem ao mesmo tempo folhetinesca, profunda e virtuose, que Sloterdijk voltou à carga, depois de sua entrevista à revista austríaca Profil (veja nosso artigo). O polêmico filósofo alemão denunciou o que ele considera a "guerra civil semântica", desencadeada pelos atentados contra as torres do WTC.Desde então, o chamado "mundo civilizado" que se autodenominou "Ocidente" tratou de elaborar um pensamento estratégico para defender uma suposta "paz interior", contra os ataques de um "exterior terrorista". O front dos democratas ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, estaria partindo para uma cruzada contra os muçulmanos, mas empunhando a bandeira que não é a dos cristãos, e sim a salpicada de estrelas cintiladas [a bandeira americana].Os dois OcidentesEntretanto, as ordens de marcha enviadas pelo comando central de Washington (como "eixo do mal", por exemplo) não estão sendo bem compreendidas na Europa, constata Sloterdijk. Isto é um indício de que o "Ocidente" é mais diversificado do que se imagina, e que este exército supostamente monolítico desintegrou-se de agora em diante em pelo menos dois: o "Primeiro Ocidente", do império americano, e o "Segundo Ocidente", da Europa que busca uma forma correspondente ao seu peso econômico.Sloterdijk voltou a defender o chanceler federal Gerhard Schröder que foi, segundo ele, o único estadista alemão a expressar claramente a não identidade dos interesses do Primeiro com o do Segundo Ocidente. A rejeição de Schröder a um ataque militar contra o Iraque foi "a mais notável declaração dos últimos tempos"; ressalta uma diferença que existe não apenas entre alemães e americanos, mas entre europeus e americanos, afirmou o filósofo.A cultura da desconfiança exacerbadaDito isso, Sloterdijk, trata de analisar as virulentas reações da mídia e dos políticos alemães à posição supostamente "anti-americana" de Schröder. Sua linguagem muda completamente: abandona as irônicas metáforas militares, que usou para caracterizar a comunicação unilateral entre os Estados Unidos e a Europa, e envereda por associações psicoanalíticas e antropomórficas, a fim de trazer à tona o inconsciente da opinião pública alemã.Sloterdijk denuncia diferentes formas de censura que se estratificaram no "plasma do sentido" do inconsciente político alemão: a censura parlamentar, a censura de dizer as coisas claramente, de articular o explícito. Em seu lugar, instalou-se a cultura da desconfiança exacerbada, dos porta-vozes da "guerra civil semântica", que nunca dizem o que pensam.
Os répteis que se banham descaradamente ao solQuem são esses fazedores de opinião que supostamente representam a alma da sociedade alemã? A resposta do filósofo não podia ser mais contundente: são os pequenos répteis que se arrastam sorrateiramente de suas tocas, para desfrutar, descaradamente, de uns poucos momentos da luz do sol.A consciência política tornou-se venenosa. Em vez de dizer as coisas claramente, adotou a postura dissimulada dos répteis, que surgem se arrastando, se infiltram no inconsciente coletivo. Temas como o antifeminismo, anti-americanismo e anti-semitismo formam a trindade tabu deste plasma clandestino. São os pseudo-intelectuais dos folhetins, e não mais os políticos, que supostamente tratam de desmascará-lo."As opiniões são para serem expressas." Quando isto não mais acontece, quando os répteis se escondem dentro de suas tocas, e só as deixam se arrastando, por alguns momentos apenas, então a guerra, com a sua capacidade de simplificar tudo, chegou de novo à cabeça dos alemães, denuncia Sloderdijk.Para os interessados na história, a tevê irá mostrar brevemente os homens ocidentais que, com a despreocupação dos criminosos, dizem exatamente o que pensam das mulheres, americanos e judeus.Sloderdijk invoca aqui o sombrio passado alemão, para lançar um sério alerta ao presente: não seria justamente este comportamento de "réptil" que levou os alemães a esconderem-se neste "plasma do inconsciente coletivo", fechando os olhos às atrocidades nazistas?

Bertrand Russel,19/05/07

Nas páginas que seguem, confinei-me por via de regra aos problemas da filosofia a respeito dos quais me pareceu possível dizer algo positivo e construtivo, pois que a crítica meramente negativa se me afigurou fora de propósito. A teoria do conhecimento, por esse motivo, ocupa neste volume bem mais espaço que a metafísica, e temas discutidíssimos pelos filósofos são aqui tratados com brevidade extrema, e até por vezes omitidos.Tirei valioso proveito de escritos inéditos do Sr. G. E. Moore e do Sr. J. M. Keynes; do primeiro, pelo que toca às relações dos dados sensíveis com os objectos físicos; do segundo, no que concerne à probabilidade e à indução. Utilíssimas, outrossim, me foram as críticas e as sugestões do professor Gilbert Murray.

Estudo elaborado pelo filósofo galês, originado por uma conferência da época da 1ª Grande Guerra, no qual analisa os ideais políticos partindo da premissa de que estão totalmente equivocados, estimulando os impulsos predatórios do homem.

Bertrand Russel, vencedor do prêmio Nobel de Literatura, é autor de "História do Pensamento Ocidental", novo volume da Coleção Clássicos de Ouro Ilustrados, publicado pela Ediouro. Com introdução inédita do renomado historiador Nicolau Sevcenko, a nova lição desse clássico da literatura mundial irá atiçar a curiosidade intelectual de seus leitores. Além de trazer novas percepções conceituais aos leitores já iniciados no assunto, o livro deve ser lido também pelos iniciantes, pois Russel apresenta assuntos complexos com rara habilidade e clareza. através de diversos diagramas e ilustrações. Venha conhecer um dos mais notáveis pensadores do século XX, algumas das questões fundamentais que os filósofos têm discutido.

Friday, May 18, 2007

ENSAIOS SOBRE IDEOLOGIA, PODER E DOMINAÇÃO NO ESTADO CONTEMPORÂNEO,PARTE 1 18/05/07 A busca do real



Quais são os reais jogos de poder que se escondem atrás das representações do mundo contemporâneo? A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é significar. Não utilizo o termo aqui como representação política mas representação como reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se vê e se interpreta e logo como atribuição de significado às coisas. Representação é exibir ou encenar.A representação pode, portanto, ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é. Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência revelar o que se esconde atrás desta[1] e de outra forma encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder.
Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes[2]. Tem poder quem é capaz de >>>tornar as coisas naturais, “a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.”[3] Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonha-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; darth vader e lucky skywalker; a democracia e o fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo. Duas técnicas comuns neste processo de dominação são: a nomeação de grupos, criando identidades ou identificações e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real. O problema não é que o fato particular seja real, o problema consiste na explicação de algo complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer explicar. Comum assistir a este tipo de geração de preconceito na mídia, diariamente. Um exemplo comum diz respeito a recorrente crítica ao estado de bem estar social: o estado de bem estar social tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos, objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em culturas e países diferentes. Entretanto é comum ouvirmos, inclusive de intelectuais, que o estado social é assistencialista (ou pior clientelista) e logo gera pessoas preguiçosas que não querem trabalhar.

O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construídas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública uma vez que a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre mas que de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema “estado de bem estar social”, quem detém a mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar estas “verdades”. A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação.Entretanto, este poder não é intocável. A dominação tem limites e estes limites não são ficções cinematográficas.Este poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida)[4] funda-se em ideologias, em mentiras.[5] A grande mentira na qual estamos mergulhados é a mentira do mercado, da liberdade econômica fundada numa naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador diariamente sem que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isto encontra fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais a pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix.Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não tem alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina.



Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo estado, pelo Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isto ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.[6]A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência a luta pela apropriação dos termos
espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas.”[7] Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A
naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas são direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmamos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza? Presidentes do Banco Central?[1] Carlo Ginsburg menciona o estranhamento e o distanciamento como mecanismos que permitem enxergar o real escondido pelas representações. No estranhamento, a arte ao distorcer a imagem do real revela as relações reais escondidas pela imagem. A pompa do poder, os discursos políticos, a cobertura da mídia e sua pretensa isenção, encobrem a falibilidade e a insegurança do humano no poder. A oratória e sua forma escondem a ausência de conteúdo ou um conteúdo que significa o oposto do que diz significar. A isenção da mídia encobre a distorção dos fatos, a manipulação da opinião. Isto nos leva a pensar porque exércitos de pessoas ontem e hoje defendem bravamente interesses que não só não são os seus como são contra os seus. O melhor exemplo é dos cães de guarda do sistema, sempre tão explorados pelo próprio sistema: mais ou menos como o policial que dá a vida para proteger a propriedade do latifundiário. A ordem que ele pensa defender não é a sua ordem. A ordem que ele pensa defender é contra ele, seus filhos, seus pais, sua mulher e seus sonhos. Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos de madeira, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001.[2] Os significantes são os símbolos. Exemplo: a palavra liberdade é um significante composto de signos diversos. A combinação das letras LIBERDADE resulta na palavra que ganha sentido ou significados diferentes em diferentes épocas e lugares. O texto não existe se não for lido e a partir do momento que é lido são atribuídos sentidos aos seus significantes. É impossível não interpretar e interpretar significa atribuir sentido, o que por sua vez significa jogar toda uma carga de valores, de pré-compreensões que pertencem a uma cultura específica, e mesmo a pessoas específicas.

[3] GINSBURG, Carlo. Olhos de Madeira, ob.cit. pg. 16. Nesta página Gisnsburg cita Chklovski que diz o seguinte a respeito do estranhamento: “Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas, pra fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a que tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração. Na arte, o processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para ela, o que foi não tem a menor importância.”[4] Importante lembrar que não negamos a condição autopoiética da vida. Somos seres interpretativos. Tudo é interpretação e a interpretação é condicionada por cada condição humana. A representação distorcida com o objetivo de manipulação é feita com este objetivo. Estamos aqui falando de honestidade nas comunicações. Honestidade dos argumentos utilizados no diálogo democrático. A representação distorcida que encobre os jogos de poder é desonesta. O objetivo é dominar, enganar e não dialogar.[5] “…a ideologia oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Esse mundo de aparências constituído pela esfera de circulação não só gera formas econômicas de ideologia, como também é um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem, onde reinam a liberdade e igualdade. (O Capital I, cap. VI) “Sob este aspecto, o mercado é também a fonte da ideologia política burguesa: a igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e liberdade. “(Crundise, Capítulo sobre o capital) “Mas é claro que a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade oculta o que ocorre sob o processo superficial de troca, onde essa aparente igualdade e liberdade individuais desaparecem e revelam-se como desigualdade e falta de liberdade.” (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).[6] Algumas palavras problemáticas apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido marxista: “Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica a religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um elo necessário entre formas “invertidas” de consciência e a existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em conseqüência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica.