FOUCAULT PENSOU COM TODOS E CONTRA TODOS:Entrevista com Felisa Santos.
“Foucault se expõe. Seu pensamento se arma fundamentalmente contra outros pensamentos”, afirma a filósofa Felisa Santos, definindo Foucault como um filósofo aberto. Professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.O campo de trabalho de Felisa Santos é o pensamento contemporâneo e a comunicação visual. Sobre Michel Foucault, a professora publicou Más de una muerte, em Vidas filosóficas (Buenos Aires: Eudeba, 1999); e El riesgo de pensar, em El último Foucault (Buenos Aires: Sudamericana, 2003). E sobre Foucault e Derrida, Felisa Santos escreveu El sueño del maestro, em Tensiones filosóficas (Buenos Aires: Sudamericana, 2001). Realizou traduções de obras de Bourdieu, Certeau, Derrida, Rorty, Slotjerdyk, Foucault, Weber, Offe. O último livro por ela traduzido é Las mujeres piensan diferente, de Marit Rullmann e Werner Schlegel (Buenos Aires: Sudamericana, 2004). Atualmente, trabalha sobre Deleuze e prepara um livro sobre imaginação, imagem e o imaginário.
Como caracterizaria Foucault como filósofo? Felisa Santos- Foucault é, diferentemente de muitos de seus contemporâneos, um filósofo aberto. Há pensadores que enclausuram a possibilidade de seguir pensando, enredados em caminhos que não só não levam a lugar nenhum, mas que, também, se tornam lugar de passagem para acólitos, caminhos que levam a uma espécie de claustro com portas e janelas fechadas. Foucault as tem aberto. E as tem aberto justamente porque não há algo assim como uma filosofia foucaultiana. Divergentemente de Deleuze e de Derrida, que morreu na sexta-feira passada, que construíram caminhos filosóficos muito idiossincrásicos, diria que muito íntimos,Foucault se expõe. Seu pensamento se arma fundamentalmente contra outros pensamentos. Ocupou-se do que estava passando, e é por isso que foi tão criticado. Não erigiu uma reserva própria para poder refletir, pensou com todos e contra todos. É um percurso singular que mais que se atar a fantasmas fundacionais, uma escola, uma ontologia, um mestre, certas idéias dirigentes, tenta sempre pôr em questão as escolas, as idéias dirigentes, a mesma noção de mestre. Difícil de enquadrar, então, sempre nas fronteiras, filósofo nas pedreiras da história, Foucault é um pensador lúcido que reflete sobre a atualidade, um gesto da Aufklärung ainda vigente. É preciso destacar que Foucault não é como propõem algumas leituras, especialmente as norte-americanas, um filósofo pós-moderno, é um crítico. Alguém que despreza o sinuoso percurso dos hermeneutas que fazem proliferar a filosofia em todas as partes, mantendo seu lugar de maître, que não é só mestre, mas também dono ou senhor, pelo menos dos textos, dissimulando seu lugar de poder. Foucault permaneceu sempre, digamos, indiferente diante dos avatares do pensamento pós-moderno. “O que se chama de pós-modernidade? Não estou a par.” [1] Mas, nesse mesmo texto, disse que considerar “o momento presente como sendo na história o da ruptura, ou da consumação, ou do cumprimento, ou o da aurora que volta” lhe parece um estigma, ao mesmo tempo nos convida; “é necessário ter a modéstia de dizer ao mesmo tempo que - inclusive sem essa solenidade - o momento no qual se vive, é muito interessante, e demanda ser analisado, e demanda ser descomposto, e que, com efeito, temos que nos perguntar: O que é hoje? ” […] a tarefa da filosofia é responder [...]o que somos nós hoje? E esta função de diagnóstico “não consiste em caracterizar simplesmente o que somos, senão, seguindo as linhas de fragilidade de hoje, chegar a captar por onde o que é, como o que é poderia não ser o que é.” Por último, Foucault aborda a atualidade na obra kantiana como o eixo que permite a ele mesmo dedicar-se à filosofia crítica: “é esta a forma de filosofia que, de Hegel à Escola do Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber, criou uma forma de reflexão na qual tentei trabalhar.”[2] A filiação dos filósofos é coisa estranha. Parece mais tarefa da história da filosofia que da filosofia propriamente dita. Se é que há algo assim, porque, em geral, os grandes pensadores o que fazem é erigir uma forma de pensar como a filosofia e aí as contribuições dos outros, que sempre as há, são somente um componente, no melhor dos casos, dessa maneira pretendidamente nova de encarar a atividade. A autofiliação a maioria das vezes não é outra coisa que autolegitimidade, mas, na versão foucaultiana, é a remissão de uma cadeia de pensamento que, abertamente, deve ser continuada, pois, situação contingente, o pensar se faz sobre o que acontece, e esse horizonte que nos obriga a refletir, será elucidado por quem pense depois de nós. Precariedade, e não absolutez do pensamento. Ainda que seja essa mesma precariedade que permite pensar. Restrição e produção estão juntas em todas as partes. Situar-se no pensamento não é só pensar o impensado. É também saber que esse impensado será base para desfazer. Virão outros operários para prosseguir a obra. E é por isso que não há, em Foucault, uma filosofia, entretanto, ele é filósofo. Sua própria obra nos propõe, não a conformação de uma filosofia nova, mas uma investigação na história do pensamento. A história – dos sistemas de pensamento e então também da filosofia - não é uma barreira que nos impede de pensar e que terá de ser levantada, para que o pensamento flua. É o que nos obriga a refletir.
Quais são as principais ferramentas que existem em suas obras, para entender a sociedade contemporânea?Felisa Santos-Foucault tentou entender, e nos fazer entender, o que nos acontece; sua idéia de uma ontologia de nós mesmos nos três sulcos em que está traçada, como sujeitos de conhecimento, como sujeitos do poder, como sujeitos éticos, assinala o deslocamento de sua análise: das práticas discursivas que ordenam o saber às relações de poder e destas às relações do indivíduo consigo mesmo que permitem falar de sujeito, em sentido estrito. Não são só deslocamentos de corpus a estudar, são deslocamentos teóricos, fundamentalmente, porque não é possível a abordagem de um objeto sem uma reflexão sobre o como, quer dizer, uma metodologia. Não há receitas, então, senão trabalho, rigor, ao construir um roteiro.
Foi escrito muito sobre o poder em Foucault. Parece que sua concepção de poder foi suficientemente inovadora para dar lugar a interpretações diversas e, melhor ainda, a considerações muito diferentes sobre o que dizia Foucault e, conseqüentemente, de sua tomada de posição, grandemente crítica, por exemplo, em relação a Habermas ou aos pensadores norte-americanos. Algo nesta concepção de poder não estava correto para eles: Se o poder era onipresente – como entendiam que Foucault questionava, onde estava a liberdade? Foucault definia o poder em um texto publicado em 1982[1]: Ação sobre ação. E sublinhava que “o “o poder não existe mais que em ato, inclusive se, é obvio, inscreve-se em um campo de possibilidades dispersas, apoiando-se sobre estruturas permanentes.” Isso lhe permite: 1.º- Distinguir nitidamente entre a dominação que não é uma ação sobre ação, é ação sobre os corpos, sobre as coisas e, portanto, exclui qualquer outra coisa que não seja a passividade, a impotência. Uma relação de poder exige que “ ‘o outro’ (aquele sobre o qual se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação, e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.” 2.º- Dar conta, então, da liberdade dos sujeitos operantes. Liberdade entendida “como espaço de liberdade concreta, quer dizer de transformação possível.” [2] Mas me parece que há um aspecto de Foucault que nos pode servir para seguir pensando. É a obsessão pelos métodos: a arqueologia, a genealogia, a “acontecimentalização”, a problematização não são só palavras. São formas de acesso ao que é. E ali a riqueza é impressionante. São estas perspectivas que fazem surgir o aparelho conceitual: a disciplina, o dispositivo, o biopoder.Que atualidade têm os conceitos biopoder, sociedade de controle, disciplina e governabilidade?Felisa Santos- Podemos perguntar-nos se estamos ou não diante, ou melhor, em uma sociedade de controle, ou já, de fato, imersos em uma sociedade de outro tipo, uma sociedade pós- disciplinar. Nesse sentido, o texto do Deleuze, Pós-data às sociedades de controle[1], marca uma possibilidade de pensar sociedades posteriores. Na América Latina, pode ser uma má piada, porque em muitos países ainda se exerce um poder sobre a vida, que é anterior, historicamente falando, ao biopoder foucaultiano. Quer dizer, o direito de vida ou morte sobre os outros, o poder de soberania que é o outro lado do biopoder se exerce cotidianamente e não só na América Latina. Foucault tinha forjado essa noção para dar conta da irrupção de uma forma de governo que produzia a vida dos sujeitos em vez de ter direito sobre a vida dos súditos, isto é, o direito de matá-los. E define o biopoder como aquele que aparece quando são dadas as possibilidades técnicas e políticas não só de ordenar a vida, mas de fazê-la proliferar. Entretanto a função mortífera, no sentido literal do termo, do estado se ressegura no racismo. O racismo é a possibilidade de seguir, matando em uma sociedade regida pelo biopoder. Não está muito longe do que se está passando no mundo hoje. Temos que refletir que, fundamentalmente, Foucault forja estes conceitos para expor no que as sociedades atuais diferem de outras. A ruptura, que fixa no século XVIII, é manifesta. Foucault vê, no Estado, uma matriz da individualização ou uma nova forma de poder pastoral. É assim que a polícia surge nesse século, “cuida-se” a vida dos indivíduos. E há também a proliferação das instituições de cuidado nas quais deverá haver um pensamento claro: a assistência social, a educação, a medicina, a psicologia. A sociedade disciplinadora se vê na fábrica, no hospital, na escola; seu modelo é o cárcere. O tempo se abre, os lugares se dividem, a disciplina conforma os corpos. Informa-nos com uma forma nova, e que tal forma esteja condenada a aniquilar-se não deve nos surpreender. As sociedades atuais não têm o trabalho como princípio dirigente e, entretanto, tais formas de controle são menos afins à disciplina in situ. Elas se abrandaram, aparentemente, e, ao mesmo tempo, se tornaram mais sinuosas: o hospital-dia, o trabalho em casa, a detenção domiciliar, a educação não-presencial não são protótipos de liberdade, mas de outras formas de controle, inclusive, mais duras. Podemos saber onde está cada pessoa em qualquer momento, em que gasta seu dinheiro, do que gosta. A disciplina se faz nos corpos e gera almas pertinentemente disciplinadas. O controle daquilo que queremos pressupõe almas disciplinadas ainda em suas opções contra-sistema, porque o modelo disciplinador se forja para uma sociedade produtiva, produtora de mercadorias; o controle chega a uma sociedade que se apresenta como sociedade de consumo. E o consumo é individual e necessita da aceitação. Indica cada indivíduo. Vendem-se serviços. Compram-se ações. É uma liberdade que existe como pano de fundo. Que desafios se apresentam a quem se dedica a traduzir a obra do Foucault?Felisa Santos- O maior desafio é que há muitos Foucaults: o barroco e estilista das primeiras obras, o da prosa quase inglesa, linear, das últimas; o que fala com os alunos, muito diferente do dos livros; o que dita conferências em inglês; o das intervenções políticas, que mostra um domínio dos idiomas clássicos, grego e latim. O problema é mais o valorizar o conjunto da obra. Quer dizer, os artigos, as entrevistas têm um peso maior na circulação da obra, porque são considerados “mais claros”. As aulas são um material difícil de manejar: são desgravadas e, no caso dos cursos, com edição do Ewald e com o recurso das notas de trabalho do próprio Foucault. Sempre segue vigente o fato de que Foucault pediu que não houvesse póstumos. Um problema ainda existente é que proliferam as transcrições de termos gregos nos últimos trabalhos: em muitas das versões, se transcreve tal qual a versão francesa, e temos coisas como phusis, que é uma aberração, porque é a transcrição francesa de uma palavra grega, physis. Outro problema é que o corpus que ele trabalha ultimamente, as palavras gregas e romanas, tem traduções, em espanhol, muito distintas das que ele faz. É preciso selecionar as mais confiáveis e, além disso, procurar as que estão de acordo com o pensamento que está sendo exposto. E há alguns dos autores citados que não estão traduzidos para o espanhol, assim é necessário comparar versões inglesas, francesas com as originais, isto é, em relação a estes últimos materiais é preciso fazer uma tradução crítica. A outra questão, talvez a maior, é a necessidade de criar neologismos para certos barbarismos. Ele constrói a noção e a designa, criando palavras novas. E o espanhol não aceita muito bem os neologismos. Além disso, o tradutor não deve esquecer que já há uma espécie de nomenclatura dos conceitos vigentes, porque já existem traduções que assim a estabelecem. Por mais que me pareça imprópria a tradução da inquietação de si, é o segundo tiro da História da Sexualidade, devo usá-la. Esclarecerei, em todo o caso que se trata do Cuidado de si, la cura sui, como cuidado, como ocupação e preocupação da gente mesmo e não de uma inquietação entendida como ambição ou um estado de intranqüilidade.Qual é a mensagem que sua vida e obra podem deixar 20 anos depois de sua morte?Felisa Santos- Deixo falar o próprio Foucault: “Precisamos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos desembaraçar desta espécie de “dupla coerção” política que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno. Poder-se-ia dizer, para concluir, que os problemas político, ético, social e filosófico que se expõem a nosso hoje não são os de tentar liberar o indivíduo do Estado e suas instituições, mas os de nos liberar do Estado e do tipo de individualização que com ele se relaciona. Necessitamos promover novas formas de subjetividade, negando o tipo de individualidade que nos foi imposta durante tantos séculos.” [1] Primeiro, então, a tarefa da filosofia quer dizer o que somos nós hoje, e isso “não consiste em caracterizar simplesmente o que somos, mas, seguindo as linhas de fragilidade de hoje, chegar a captar por onde o que é, como o que é poderia não ser o que é”. Foucault nos chamou a pensar de modo diferente, a pensar como um trabalho, como uma experiência modificadora de nós mesmos. É preciso estar à altura dessa demanda.- Algum outro aspecto que queira destacar da obra e vida do filósofo?Felisa Santos- Primeiro, a vida. A vida de um filósofo não é sempre uma pedra de toque para a filosofia. Nem tem muito sentido expor uma obra a partir de fantasmas fundacionais, como faz Miller em sua biografia, por isso mesmo amarela. Nem tem sentido argumentar ad hominen como faz Zizek em A revolução branda. A homossexualidade não faz filosofia necessariamente. E a vida de um homem é a vida de um homem. Neste caso, uma ampla geografia que tentou não coagular nunca. Percursos diversos, temas diversos, métodos diversos. A singularidade desse homem construiu isso. Se se alcançou ou não essa estética da existência que tematiza em suas últimas obras, é uma questão de recepção, de o que significa Foucault para nós. Não posso deixar de pensar um Foucault feliz. Na Salpétrière, onde morre, posso pensar em um Foucault feliz, porque, se a morte é a impossibilidade radical de pensar de outra maneira, não é menos certo que esgotou o campo do possível. “Pensar não salva nem faz feliz”, diz Foucault no Theatrum philosophicum”. Terei que tomá-lo ao pé da letra, porque pensar não é comentar, pensar não é uma obrigação, nem pensamos porque o pensamento nos arrasta, mas temos que atrever-nos, há a espontaneidade em jogo que podemos praticar “a arte de não-servidão voluntária e a indocilidade reflexiva” [1]. Então nos propomos, duzentos anos depois, intempestivamente: sapere audete. E que nos atrevamos a pensar é todo um esforço, sobretudo quando os pensadores comentam, conversam ou exercem o solilóquio. E, nestas épocas, de pensamento débil, se estranha sua dureza, sua criatividade, seu rigor, sua curiosidade e, inclusive, sua malícia, sua lucidez, sua inteligência.
Quais são as principais ferramentas que existem em suas obras, para entender a sociedade contemporânea?Felisa Santos-Foucault tentou entender, e nos fazer entender, o que nos acontece; sua idéia de uma ontologia de nós mesmos nos três sulcos em que está traçada, como sujeitos de conhecimento, como sujeitos do poder, como sujeitos éticos, assinala o deslocamento de sua análise: das práticas discursivas que ordenam o saber às relações de poder e destas às relações do indivíduo consigo mesmo que permitem falar de sujeito, em sentido estrito. Não são só deslocamentos de corpus a estudar, são deslocamentos teóricos, fundamentalmente, porque não é possível a abordagem de um objeto sem uma reflexão sobre o como, quer dizer, uma metodologia. Não há receitas, então, senão trabalho, rigor, ao construir um roteiro.
Foi escrito muito sobre o poder em Foucault. Parece que sua concepção de poder foi suficientemente inovadora para dar lugar a interpretações diversas e, melhor ainda, a considerações muito diferentes sobre o que dizia Foucault e, conseqüentemente, de sua tomada de posição, grandemente crítica, por exemplo, em relação a Habermas ou aos pensadores norte-americanos. Algo nesta concepção de poder não estava correto para eles: Se o poder era onipresente – como entendiam que Foucault questionava, onde estava a liberdade? Foucault definia o poder em um texto publicado em 1982[1]: Ação sobre ação. E sublinhava que “o “o poder não existe mais que em ato, inclusive se, é obvio, inscreve-se em um campo de possibilidades dispersas, apoiando-se sobre estruturas permanentes.” Isso lhe permite: 1.º- Distinguir nitidamente entre a dominação que não é uma ação sobre ação, é ação sobre os corpos, sobre as coisas e, portanto, exclui qualquer outra coisa que não seja a passividade, a impotência. Uma relação de poder exige que “ ‘o outro’ (aquele sobre o qual se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação, e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.” 2.º- Dar conta, então, da liberdade dos sujeitos operantes. Liberdade entendida “como espaço de liberdade concreta, quer dizer de transformação possível.” [2] Mas me parece que há um aspecto de Foucault que nos pode servir para seguir pensando. É a obsessão pelos métodos: a arqueologia, a genealogia, a “acontecimentalização”, a problematização não são só palavras. São formas de acesso ao que é. E ali a riqueza é impressionante. São estas perspectivas que fazem surgir o aparelho conceitual: a disciplina, o dispositivo, o biopoder.Que atualidade têm os conceitos biopoder, sociedade de controle, disciplina e governabilidade?Felisa Santos- Podemos perguntar-nos se estamos ou não diante, ou melhor, em uma sociedade de controle, ou já, de fato, imersos em uma sociedade de outro tipo, uma sociedade pós- disciplinar. Nesse sentido, o texto do Deleuze, Pós-data às sociedades de controle[1], marca uma possibilidade de pensar sociedades posteriores. Na América Latina, pode ser uma má piada, porque em muitos países ainda se exerce um poder sobre a vida, que é anterior, historicamente falando, ao biopoder foucaultiano. Quer dizer, o direito de vida ou morte sobre os outros, o poder de soberania que é o outro lado do biopoder se exerce cotidianamente e não só na América Latina. Foucault tinha forjado essa noção para dar conta da irrupção de uma forma de governo que produzia a vida dos sujeitos em vez de ter direito sobre a vida dos súditos, isto é, o direito de matá-los. E define o biopoder como aquele que aparece quando são dadas as possibilidades técnicas e políticas não só de ordenar a vida, mas de fazê-la proliferar. Entretanto a função mortífera, no sentido literal do termo, do estado se ressegura no racismo. O racismo é a possibilidade de seguir, matando em uma sociedade regida pelo biopoder. Não está muito longe do que se está passando no mundo hoje. Temos que refletir que, fundamentalmente, Foucault forja estes conceitos para expor no que as sociedades atuais diferem de outras. A ruptura, que fixa no século XVIII, é manifesta. Foucault vê, no Estado, uma matriz da individualização ou uma nova forma de poder pastoral. É assim que a polícia surge nesse século, “cuida-se” a vida dos indivíduos. E há também a proliferação das instituições de cuidado nas quais deverá haver um pensamento claro: a assistência social, a educação, a medicina, a psicologia. A sociedade disciplinadora se vê na fábrica, no hospital, na escola; seu modelo é o cárcere. O tempo se abre, os lugares se dividem, a disciplina conforma os corpos. Informa-nos com uma forma nova, e que tal forma esteja condenada a aniquilar-se não deve nos surpreender. As sociedades atuais não têm o trabalho como princípio dirigente e, entretanto, tais formas de controle são menos afins à disciplina in situ. Elas se abrandaram, aparentemente, e, ao mesmo tempo, se tornaram mais sinuosas: o hospital-dia, o trabalho em casa, a detenção domiciliar, a educação não-presencial não são protótipos de liberdade, mas de outras formas de controle, inclusive, mais duras. Podemos saber onde está cada pessoa em qualquer momento, em que gasta seu dinheiro, do que gosta. A disciplina se faz nos corpos e gera almas pertinentemente disciplinadas. O controle daquilo que queremos pressupõe almas disciplinadas ainda em suas opções contra-sistema, porque o modelo disciplinador se forja para uma sociedade produtiva, produtora de mercadorias; o controle chega a uma sociedade que se apresenta como sociedade de consumo. E o consumo é individual e necessita da aceitação. Indica cada indivíduo. Vendem-se serviços. Compram-se ações. É uma liberdade que existe como pano de fundo. Que desafios se apresentam a quem se dedica a traduzir a obra do Foucault?Felisa Santos- O maior desafio é que há muitos Foucaults: o barroco e estilista das primeiras obras, o da prosa quase inglesa, linear, das últimas; o que fala com os alunos, muito diferente do dos livros; o que dita conferências em inglês; o das intervenções políticas, que mostra um domínio dos idiomas clássicos, grego e latim. O problema é mais o valorizar o conjunto da obra. Quer dizer, os artigos, as entrevistas têm um peso maior na circulação da obra, porque são considerados “mais claros”. As aulas são um material difícil de manejar: são desgravadas e, no caso dos cursos, com edição do Ewald e com o recurso das notas de trabalho do próprio Foucault. Sempre segue vigente o fato de que Foucault pediu que não houvesse póstumos. Um problema ainda existente é que proliferam as transcrições de termos gregos nos últimos trabalhos: em muitas das versões, se transcreve tal qual a versão francesa, e temos coisas como phusis, que é uma aberração, porque é a transcrição francesa de uma palavra grega, physis. Outro problema é que o corpus que ele trabalha ultimamente, as palavras gregas e romanas, tem traduções, em espanhol, muito distintas das que ele faz. É preciso selecionar as mais confiáveis e, além disso, procurar as que estão de acordo com o pensamento que está sendo exposto. E há alguns dos autores citados que não estão traduzidos para o espanhol, assim é necessário comparar versões inglesas, francesas com as originais, isto é, em relação a estes últimos materiais é preciso fazer uma tradução crítica. A outra questão, talvez a maior, é a necessidade de criar neologismos para certos barbarismos. Ele constrói a noção e a designa, criando palavras novas. E o espanhol não aceita muito bem os neologismos. Além disso, o tradutor não deve esquecer que já há uma espécie de nomenclatura dos conceitos vigentes, porque já existem traduções que assim a estabelecem. Por mais que me pareça imprópria a tradução da inquietação de si, é o segundo tiro da História da Sexualidade, devo usá-la. Esclarecerei, em todo o caso que se trata do Cuidado de si, la cura sui, como cuidado, como ocupação e preocupação da gente mesmo e não de uma inquietação entendida como ambição ou um estado de intranqüilidade.Qual é a mensagem que sua vida e obra podem deixar 20 anos depois de sua morte?Felisa Santos- Deixo falar o próprio Foucault: “Precisamos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos desembaraçar desta espécie de “dupla coerção” política que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno. Poder-se-ia dizer, para concluir, que os problemas político, ético, social e filosófico que se expõem a nosso hoje não são os de tentar liberar o indivíduo do Estado e suas instituições, mas os de nos liberar do Estado e do tipo de individualização que com ele se relaciona. Necessitamos promover novas formas de subjetividade, negando o tipo de individualidade que nos foi imposta durante tantos séculos.” [1] Primeiro, então, a tarefa da filosofia quer dizer o que somos nós hoje, e isso “não consiste em caracterizar simplesmente o que somos, mas, seguindo as linhas de fragilidade de hoje, chegar a captar por onde o que é, como o que é poderia não ser o que é”. Foucault nos chamou a pensar de modo diferente, a pensar como um trabalho, como uma experiência modificadora de nós mesmos. É preciso estar à altura dessa demanda.- Algum outro aspecto que queira destacar da obra e vida do filósofo?Felisa Santos- Primeiro, a vida. A vida de um filósofo não é sempre uma pedra de toque para a filosofia. Nem tem muito sentido expor uma obra a partir de fantasmas fundacionais, como faz Miller em sua biografia, por isso mesmo amarela. Nem tem sentido argumentar ad hominen como faz Zizek em A revolução branda. A homossexualidade não faz filosofia necessariamente. E a vida de um homem é a vida de um homem. Neste caso, uma ampla geografia que tentou não coagular nunca. Percursos diversos, temas diversos, métodos diversos. A singularidade desse homem construiu isso. Se se alcançou ou não essa estética da existência que tematiza em suas últimas obras, é uma questão de recepção, de o que significa Foucault para nós. Não posso deixar de pensar um Foucault feliz. Na Salpétrière, onde morre, posso pensar em um Foucault feliz, porque, se a morte é a impossibilidade radical de pensar de outra maneira, não é menos certo que esgotou o campo do possível. “Pensar não salva nem faz feliz”, diz Foucault no Theatrum philosophicum”. Terei que tomá-lo ao pé da letra, porque pensar não é comentar, pensar não é uma obrigação, nem pensamos porque o pensamento nos arrasta, mas temos que atrever-nos, há a espontaneidade em jogo que podemos praticar “a arte de não-servidão voluntária e a indocilidade reflexiva” [1]. Então nos propomos, duzentos anos depois, intempestivamente: sapere audete. E que nos atrevamos a pensar é todo um esforço, sobretudo quando os pensadores comentam, conversam ou exercem o solilóquio. E, nestas épocas, de pensamento débil, se estranha sua dureza, sua criatividade, seu rigor, sua curiosidade e, inclusive, sua malícia, sua lucidez, sua inteligência.
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