Lawrence Ferlinghetti,poeta e editor,fala de Jack Kerouac,Allen Ginsberg e da poesia como arte insurgente 18/01/08


Lawrence Ferlinghetti: Oh, em qualquer lugar. Em qualquer lugar onde um pensamento me vem à cabeça. Não sou muito sistemático com isso.Amy Goodman: Voltemos ao tempo em que você nasceu. Conte-nos alguma história sobre onde nasceu, quem foram seus pais.Lawrence Ferlinghetti: Oh, nasci em South Yonkers, e –Amy Goodman: Em Nova York.Lawrence Ferlinghetti: Na cidade de Nova York, ao norte do parque Van Cortlandt. Mas minha mãe tinha – meu pai havia morrido pouco antes de meu nascimento, e minha mãe já tinha quatro filhos. Eu era muito para ela tomar conta, e ela ficou transtornada e teve que ser hospitalizada. Uma parente francesa – na realidade, a mulher do tio de minha mãe – levou-me, ainda de fraldas, para a França, e vivi em Estrasburgo durante – não estou seguro – três ou quatro anos, e falei francês antes do inglês, antes que voltássemos aos EUA. E depois cresci como um jovem tipicamente americano.Amy Goodman: Bem, não foi uma infância tão típica assim, por que então essa mãe, sua tia, era quem você pensava que era sua mãe?Lawrence Ferlinghetti: Sim. Ela conseguiu um emprego como governanta francesa em uma imensa mansão que pertencia à filha do fundador do Sarah Lawrence College, cujo nome era William Van Duzer Lawrence, em Bronxville. E a casa em que minha mãe arranjou um trabalho como governanta estava a apenas meia milha de lá. Era uma grande mansão. Ainda está lá. E minha mãe desapareceu depois – em um de seus dias livres, nunca retornou, evidentemente por uma amnésia bastante grave. Então nunca mais ouvi falar dela até que estava na Marinha e recebi uma ligação de um trabalhador do serviço social da Marinha dizendo que ela havia morrido em um hospital psiquiátrico de Central Islip, e que me identificara como seu único descendente.Amy Goodman: Então quem o criou foi a família que estabeleceu o Sarah Lawrence College.Lawrence Ferlinghetti: Sim, era a família Bisland, Anna Lawrence Bisland.Amy Goodman: Como Howard Zinn, você combateu na Segunda Guerra Mundial.Lawrence Ferlinghetti: Sim. Fui –Amy Goodman: Como muitos outros também.
Lawrence Ferlinghetti: Fui capitão de um destróier americano na invasão da Normandia, na primeira manhã, às 6 horas, no rastreamento anti-submarino nas praias da Normandia. E depois fui para o Pacífico, no último ano. Fui navegador em um transporte de tropas, e íamos rumo ao Japão. E, nas forças armadas, não te dizem nada exceto o que necessitas saber para realizar tua parte do plano geral. Assim que mal sabíamos que íamos ao Japão, mas como todos os outros barcos que seguiam na mesma direção, carregados de tropas, era óbvio que formávamos uma força de ocupação. Não, deveria ser primeiro uma força de ataque, e então quando as bombas atômicas foram lançadas, a força de ocupação se transformou em – quer dizer, a força de invasão se converteu em uma operação de ocupação. E chegamos a Sasebo, no sul do Japão. E se tratava de – chegamos utilizando fotografias aéreas capturadas do porto. Não tínhamos nenhum mapa do porto.E depois de um dia em terra, tomamos um trem para Nagasaki. Estávamos só a umas poucas horas de lá. E penso que isso deve ter ocorrido umas sete semanas depois do lançamento da bomba em Nagasaki. E houve tempo para “limpar”, durante um certo tempo, mas ainda era uma cena devastadora. Instantaneamente, me converti em pacifista. Havia uns oito quilômetros quadrados de matéria orgânica, onde apareciam cabelos e ossos humanos, e no horizonte uma espécie de – uma paisagem que se via no quadro de Anselm Kiefer daqueles dias: formas enegrecidas irreconhecíveis que se levantavam no horizonte e recipientes repletos de carne – “xícaras de chá” –Amy Goodman: Você compreendeu o que havia acontecido?Lawrence Ferlinghetti: – com carne fundida nas xícaras. Oh, não tínhamos a menor idéia do que – ninguém sabia o que era a radiação. Andávamos por lá. Eu nunca sofri nenhum efeito nocivo, mas talvez isso tenha ocorrido com alguns dos que estavam comigo. Foi somente – Amy Goodman: Você viu algum japonês vivo?Lawrence Ferlinghetti: Não. No porto de Sasebo, pensamos que haveria muitos japoneses, mas todos tinham ido embora. Toda a cidade era como uma cidade fantasma. Estava toda tapada com tábuas e todos os japoneses haviam fugido para as montanhas. Nenhum japonês em qualquer parte.Amy Goodman: E quando voltou aos EUA, como começou a assimilar o assunto e também a ganhar consciência da política?Lawrence Ferlinghetti: Creio que Nagasaki o fez. Quer dizer, eu havia crescido como um menino tipicamente americano. Havia sido escoteiro nos subúrbios, um Escoteiro Eagle [Águia], só que me rebaixaram por roubar alguns lápis numa lojinha na mesma semana em que me tornei Escoteiro Águia. Mas afora pequenos incidentes do tipo, eu era um autêntico rapaz americano, e eu –Amy Goodman: Assim que o mandaram a –
Lawrence Ferlinghetti: Eu não tinha a menor idéia – não lembro, e nem sequer ouvi falar de um objetor de consciência na Costa Leste, durante a Segunda Guerra Mundial. Foi só quando cheguei a São Francisco e comecei a escutar a KPFA, que havia sido fundada por objetores de consciência, e –Amy Goodman: Conheceu Lou Hill?Lawrence Ferlinghetti: Sim, encontrei com Lou Hill. Creio que eu estava no ar, enquanto ele ainda estava por aí. E conheci Kenneth Rexroth, embora – se pudesse dizer que eu era totalmente analfabeto do ponto de vista político até que encontrei esses caras. Quer dizer, foi onde obtive minha educação política através da KPFA, ao escutar Kenneth Rexroth e suas noites de sexta-feira. E ele se considerava anarquista filosófico. Quer dizer –
Amy Goodman: Explique quem era Kenneth Rexroth, especialmente para os jovens.Lawrence Ferlinghetti: Bem, Rexroth era o poeta maior entre os mais velhos em São Francisco, nos anos 50, quando cheguei, e tinha um programa na KPFA. E não resenhava só literatura. Tratava de qualquer assunto: geologia, antropologia, astronomia, filosofia – e parecia ter um conhecimento enciclopédico. E eu costumava ir até sua casa nas noites de sexta-feira. Simplesmente me sentava – nos primeiros seis meses nem sequer me atrevia a abrir a boca. Estava totalmente perdido. Não entendia o que ele falava a maior parte do tempo.E então, quando iniciamos a Livraria City Lights, em 1953, – meu sócio original foi Peter Dean Martin, cuja idéia era ter uma livraria só com livros de baixo custo, porque naquele tempo os livros em papel jornal nem sequer eram considerados livros de verdade pelo comércio livreiro, mas os editores em Nova York estavam começando a publicar livros baratos, mas de qualidade, e não havia nenhum lugar onde comprá-los, porque os antigos livros de baixo preço eram histórias de mistério e livros de bolso colados. E, portanto, foi uma idéia brilhante abrir um negócio onde se obtinha esses novos livros mais baratos e de qualidade, em 1953. E Peter Martin era filho de Carlo Tresca, o anarquista italiano que foi assassinado nas ruas de Nova York, provavelmente por fascistas. E assim tivemos essa orientação anarquista-pacifista desde o começo em City Lights. Eu obtive a minha de Kenneth Rexroth e da KPFA.Amy Goodman: Por que colocaram o nome de City Lights na livraria?Lawrence Ferlinghetti: Pelo filme de Chaplin.Amy Goodman: Charlie Chaplin.Lawrence Ferlinghetti: Na realidade, tínhamos um telegrama da sucessão de Chaplin nos autorizando a utilizar o título. E desse modo a livraria começou.Amy Goodman: Lawrence Felinghetti. Voltaremos à nossa conversa após o intervalo.(intervalo)Amy Goodman: Voltamos a falar com o editor e poeta, Lawrence Ferlinghetti. Quando estivemos em São Francisco, perguntei a ele sobre a Geração Beat e porque é uma expressão com a qual ele nem sempre concordou.Lawrence Ferlinghetti: Bem, não utilizamos a palavra “beat” no verso de nenhuma publicação de City Lights, incluindo os livros de Allen Ginsberg. Não fui membro da Geração Beat original. Eu estava – quando eles estavam no Columbia College – fazendo um curso de graduação em Columbia. Não conheci nenhum deles. E só depois de chegar a São Francisco comecei a encontrar com os poetas, porque uma livraria é um ponto de encontro natural para poetas. E desde o início tratamos de converter a City Lights em um centro de reuniões, o que logo ocorreu. E assim chegou Ginsberg. Associei-me com os beat, publicando-os. E isso é –Amy Goodman: O que significa “os beat”? O que significa para você?Lawrence Ferlinghetti: Bom, nunca gostei do termo, e em especial a palavra “beatnik”, que nunca foi utilizada por qualquer um dos poetas, porque era um termo evidentemente inventado por Herb Caen, o cronista de fofocas de São Francisco. Era a época do Sputnik, e essa era uma maneira cômoda para os caretas rebaixarem aqueles boêmios sujos e sem banho chamando-os de “beatniks”.Amy Goodman: Kerouac cunhou a expressão?Lawrence Ferlinghetti: Não a cunhou – transformou-a.Amy Goodman: “Beatnik,” não, mas Geração Beat.
Lawrence Ferlinghetti: Sim. Ele pensava – sendo católico –, tinha mais em mente uma certa beatitude. Mas, então, também falava da mesma coisa como o jazz. Mas existe toda esta idealização da cultura negra e da música que provinha da cultura negra. E em nossa geração também houve simplesmente um pouco da glorificação geral do homem natural, porque todos andávamos lendo D.H. Lawrence, e o homem nativo puro, e o jardineiro de Lady Chatterley e a gente no livro mexicano de D.H. Lawrence, “The Plumed Serpent”. E é o tipo de coisa que estava na consciência da minha geração, incluindo a de Kerouac.

Lawrence Ferlinghetti: A primeira edição foi feita na Inglaterra, porque lá as gráficas imprimiam muito melhor e a encadernação era muito melhor e era mais barato imprimir na Inglaterra. E não éramos mais do que uma pequena editora de uma só peça. Assim era a impressão tipográfica. As primeiras cópias de “Uivo” foram retidas pela alfândega – “Uivo e Outros Poemas”, de Allen Ginsberg. E, então, a alfândega em São Francisco reteve os livros, e finalmente os devolveram depois que a promotoria americana negou-se a nos processar. E então –Amy Goodman: Explique a importância de “Uivo” e porque publicou o poema de Allen Ginsberg.Lawrence Ferlinghetti: Bem, esta foi a reação quando o li pela primeira vez e quando o escutei pela primeira vez: nunca antes havia visto o mundo desta maneira. É uma nova realidade que vejo e escuto. E penso que assim é com as grandes obras. Quando são lidas pela primeira vez, dizemos: “Nunca soube que assim são as coisas. Nunca me dei conta de que assim é o mundo realmente”.Amy Goodman: Quando encontrou Allen Ginsberg pela primeira vez? Lawrence Ferlinghetti: Bem, ele foi até a livraria e me deu o manuscrito. E então apresentou um recital uns poucos dias depois – chegou a ser bastante famoso – na parte da frente de uma garagem no Mission District. Era chamada de Six Gallery. E fui para casa. Não conhecia suficientemente bem a nenhum dos beat para cair na farra com alguns deles depois, e eu levava uma vida matrimonial respeitável vivendo em Potrero Hill. Assim que fui para casa depois do recital e enviei um telegrama a Allen – isso foi antes de existir algum outro meio de comunicar-se rapidamente, não havia correios eletrônicos ou fax ou algo parecido – então enviei um telegrama da Western Union a Allen Ginsberg, copiando o que eu ouvira: Emerson havia escrito a Whitman depois de receber uma primeira cópia de “Leaves of Grass”, de Whitman, dizendo: “Saúdo-lhe no início de uma grande carreira,” ao que acrescentei: “Quando recebo o manuscrito?” Assim nasci como editor.Amy Goodman: Como descreveria Allen Ginsberg?
Lawrence Ferlinghetti: Oh, penso que Allen – a qualidade primordial que a gente recorda de Allen é sua compaixão, sua extraordinária compaixão por todos. E penso que uma boa parte disso vem de sua conversão ao budismo. Ele era uma pessoa muito nobre. Também era um poeta genial e um propagandista genial. Sinto que sem Allen Ginsberg não teria havido qualquer Geração Beat reconhecida como tal. Somente haveria grandes escritores separados na paisagem. Mas Allen é – ele próprio criou tudo aquilo.Amy Goodman: Então explique o que ocorreu, como foi o processo por obscenidade.Lawrence Ferlinghetti: Bom, tivemos um julgamento em um tribunal municipal em São Francisco, e tudo ocorreu em um só verão. E tivemos Al Bendich, da União Americana pelas Liberdades Civis [ACLU, por suas iniciais em inglês], em seu primeiro caso, defendendo-nos. Se não fosse – quero dizer graças a Deus – pela União Americana pelas Liberdades Civis, teríamos que fechar em seguida. Éramos apenas uma pequena livraria de uma peça só. Não tínhamos dinheiro para defesas legais. E então Jake Ehrlich, um famoso advogado criminalista, associou-se ao caso e ocupou a maior parte do tempo, citando antigos clássicos como Moll Flanders e deixando só os últimos cinco minutos do último dia ao procurador da ACLU, Al Bendich, para que apresentasse o caso constitucional pelo qual – as peças constitucionais com que ganhou o caso.E o juiz determinou que, se existisse a mínima relevância social compensatória, o livro não poderia ser censurado. E aquele precedente, embora fosse apenas em um tribunal municipal, resistiu por todos estes anos, então aconteceu que – bem, abriram-se as comportas. Isso permitiu, por exemplo, que a Grove Press publicasse, alguns anos depois, “O Amante de Lady Chatterley”, e Jean Genet, e “Os Trópicos”, de Henry Miller etc. E aquele desafio segue firme na atualidade – quero dizer, aquele precedente.
Amy Goodman: Por que escolheu São Francisco?Lawrence Ferlinghetti: Bem, tratei de chegar a alguma parte em Nova York. Tinha um diploma de jornalismo. Logo depois da Segunda Guerra Mundial tratei de entrar nos jornais de Nova York, mas havia duas pessoas para cada posto de trabalho em um jornal novaiorquino: a que o tinha antes da guerra e a que o substituíra. E assim, quando fui para a França com a Lei GI [Lei do Soldado], e obtive um doutorado na Sorbonne, já era 1951, e imaginei, bem, que me provaria em alguma outra cidade. Nova York era impossível. Tudo parecia estar fechado. E o Oeste seguia sendo a última fronteira.Amy Goodman: É o 50° aniversário de “On the Road”. Fale de Jack Kerouac.Lawrence Ferlinghetti: Bem, Kerouac era – não podia controlar a fama em absoluto. E quando “On the Road” o tornou famoso, parou logo e não foi – não voltou a sair pelos caminhos com outros poetas beat. Ficou – foi para casa cuidar de sua mãe, e viveu com sua mãe o resto de sua vida em diversos lugares, sobretudo de cima para baixo pela Costa Leste, também com um par de tentativas de se estabelecer em São Francisco. E não teve nada mais a ver com a, cito, “Geração Beat”. Ele ainda escreveu –Amy Goodman: Você o encontrou antes – Lawrence Ferlinghetti: – ainda escreveu volumosas cartas a Ginsberg.
Amy Goodman: Você o encontrou antes da publicação de “On the Road”?Lawrence Ferlinghetti: Oh, não sei bem quando o encontrei. Muito depois pediu emprestada minha cabana em Big Sur para superar seu alcoolismo – pensou em ir e buscar uma cura por desintoxicação. Foi no fim dos anos 60.Amy Goodman: E escreveu um livro, “Big Sur”.Lawrence Ferlinghetti: Sim, um livro muito deprimente, comparado com o que escrevera antes. Quer dizer, seus escritos anteriores e “On the Road” tinham este gosto pela vida, essa joie de vivre, que é o que atraiu Henry Miller nos escritos de Kerouac. E Miller quis encontrá-lo. Mas estas são passagens descritivas – “On the Road” é maravilhoso, como se estivessem com fome de vida. E em um livro, 20 anos depois, como “On the Road” – é uma velha prosa cansada em comparação com seus primeiros escritos.
Amy Goodman: Mas você preferiu não publicar “On the Road”.Lawrence Ferlinghetti: Oh, não havia outro jeito. Ele já estava comprometido com editores de Nova York. Quer dizer, o manuscrito de “On the Road” já andara por lá – quem foi? Scribner’s? Em Nova York, ele – nós finalmente publicamos vários livros de sua poesia, mas nunca tivemos realmente uma oportunidade de publicar alguns de seus romances.Amy Goodman: Que efeito diria que teve “On the Road” sobre você, sobre sua obra? Teve algum?Lawrence Ferlinghetti: Não, não teve muito efeito na minha obra. A minha era mais – meus escritos estavam mais na tradição européia, mas diria que alguns dos mesmos autores que influenciaram Kerouac me afetaram fortemente, como Marcel Proust e James Joyce, e tivemos a mesma formação, e ambos falávamos francês. Esse era um dos vínculos que tínhamos entre nós. E conversávamos em francês, porque nós dois havíamos falado francês com nossas mães. Mas ele – onde estávamos?Amy Goodman: Apenas falando do encontro com Jack Kerouac e da influência – se ele teve alguma influência sobre você.
Lawrence Ferlinghetti: Na realidade não. Allen Ginsberg afirmou que a obra de Kerouac teve uma imensa influência sobre a dele, mas de fato não o vejo assim. Penso que Allen admirava Kerouac por sua prosa muscular e seus poderes descritivos.Amy Goodman: Há um filme de Allen Ginsberg e Neal Cassady em City Lights – no porão de City Lights, em 1965. Antes de mais nada, fale-nos também de Neal Cassady, e depois conte-nos sobre esse local de reunião e esses momentos em City Lights.Lawrence Ferlinghetti: Bem, Neal era uma espécie de protótipo de herói ou anti-herói americano. Poderíamos colocá-lo na tradição dos heróis dos grandes filmes de cowboys, nas tantas fitas clássicas de vaqueiros, em que o herói é também um forasteiro, e ele é um – por exemplo, Sam Shepard andando pela base aérea onde havia sido um piloto de provas, cavalgando ao redor da base aérea, não é totalmente – é ainda assim um estranho, embora tenha alcançado sucesso no establishment. E, nos antigos filmes de cowboys, o herói chega à cidade como um espírito livre, independente, e é confrontado com alguma terrível cena nessa pequena cidade, em que é necessário livrar-se de algum mal, é preciso silenciar algum vilão, e assim, temporariamente, delegam poderes ao vaqueiro, e ele os livra do mal, e no final lhe oferecem um emprego permanente como xerife, e ele diz: “Não, obrigado”, e atira no chão a estrela e depois parte rumo ao crepúsculo, deixando para trás tanto o distintivo como a namorada. E então é – no caso de Kerouac, ele está fazendo a mesma coisa, sempre lá fora. Em seu caso, seu cavalo é o carro com motor envenenado. Era o mesmo tipo de personagem.

Amy Goodman: E as mulheres? E as mulheres naquela época, as mulheres na Geração Beat, as poetisas, as escritoras?Lawrence Ferlinghetti: Bem, quer dizer, pelo menos a metade da Geração Beat era gay. E Allen realmente temia as mulheres, pensava eu, e tendia a vê-las como se não estivessem presentes. Tenho uma amiga que foi em uma viagem com ele pelo Sudeste, e um ano depois encontrou-se com ele. Eles tinham viajados juntos neste carro com outros por vários meses e um ano mais tarde, em outra ocasião, ele olhou para ela como se não a conhecesse. É como se elas não estivessem ali para ele.Mas havia umas poucas escritoras que conseguiram ser publicadas com os Beats, como Diane di Prima, por exemplo, e um pouco depois, Anne Waldman, que agora se impõe como chefe do Instituto Naropa, a parte do Instituto Naropa que é o instituto de poesia. Mas, geralmente, se poderia dizer que talvez –Amy Goodman: Lembro que a entrevistei logo depois da morte de Allen Ginsberg em Nova York.Lawrence Ferlinghetti: Oh, sim. Poderíamos dizer que, em geral, apesar de as mulheres serem ignoradas, aquelas com quem eles saíam eram ignoradas, sobretudo pelos Beats, mas, como na tragédia grega, freqüentemente eram as mulheres que determinavam o destino dos homens.Amy Goodman: O que quer dizer?
Lawrence Ferlinghetti: Bom, simplesmente o modo como funcionavam suas vidas.Amy Goodman: Estou sentada aqui, Lawrence Ferlinghetti, com muitos de seus livros – nem de perto – nem próximo de todos eles, mas, por exemplo, “A Coney Island of the Mind” o que é? O livro de poesia mais vendido de todos os tempos?Lawrence Ferlinghetti: Acredito que sim.Amy Goodman: Fale de quando o escreveu.Lawrence Ferlinghetti: Bem, saiu todo de uma vez. E seria outra história se eu tivesse morrido pouco depois – eu o escrevi quando tinha trinta e poucos anos. Provavelmente este seria considerado meu melhor livro, e como ia dizendo antes, a melhor poesia é escrita quando a gente é muito jovem. Agora, para mim, estar na casa dos trinta soa bem jovem. Mas –Amy Goodman: Por que isso, então? Quer dizer, agora você tem a sabedoria de toda uma vida.Lawrence Ferlinghetti: Bom, você não tem tempo para se adaptar, ou adaptar das piores maneiras, pela moderna monocultura industrial corporativa, por exemplo, ou pela sociedade de consumo americana, do jeito que a sociedade consumista americana funciona, me parece que os subúrbios dos Estados Unidos são a grande morte americana.Sabe, eu gostaria de ler um poema que acabo de escrever. Realmente quero recitá-lo de uma vez.Amy Goodman: Leia.Lawrence Ferlinghetti: Especialmente já que Khalil Gibran esteve no noticiário recentemente, inclusive ontem ou no dia anterior em seu programa. “Pity the Nation,” em homenagem a Khalil Gibran.Compadece-te da nação povoada por carneiros Confundidos por seus pastores Compadece-te da nação com dirigentes mentirosos, seus sábios silenciados,E seus fanáticos assombrando as ondas do ar Compadece-te da nação que não ergue sua voz a não ser para enaltecer os conquistadores e aclamar como herói o capanga e que quer reger o mundo pela força e a tortura.Compadece-te da nação que não conhece outra linguagem que a sua E nenhuma outra cultura que a própria.Compadece-te da nação que respira dinheiro e dorme o sonho da superalimentação.Compadece-te da nação – oh, e do povo que deixa que desgastem seus direitos e que suas liberdades sejam arrasadas.Meu país, tuas lágrimas, doce terra de liberdade.Amy Goodman: Lawrence Ferlinghetti. E o que me diz da condição do mundo de hoje e de nosso papel?Lawrence Ferlinghetti: É como saltar sobre o abismo. Penso que praticamente todo o Congresso ignora por completo a crise ecológica que vem rapidamente sobre nós. Quer dizer, e tanta gente inclusive negou-se a ver o filme de Al Gore – e espero assistir ao novo filme “The Eleventh Hour” – porque as pessoas pensam que: “Oh, as calamidades não vão ocorrer agora mesmo no meu cantinho. Poderá acontecer, mas em 50 ou 100 anos. Quero dizer, minha casa não vai ser arrasada. Ou minha casa não está – ou minha vida não vai mudar. Sempre vou poder dirigir até o trabalho.”Mas isso poderia mudar de um dia para outro. O ecossistema está tão delicadamente equilibrado que poderia perder o equilíbrio de um dia para o outro e quebrar como um computador amanhã de manhã. E nem um só candidato presidencial à próxima eleição parece ter um programa ecológico verdadeiramente potente para salvar o mundo deste desastre ecológico.Amy Goodman: Pensa que a poesia é um instrumento para salvar o mundo?Lawrence Ferlinghetti: Bem, tem a ver com – penso que é bastante possível. Mas, como eu disse, a poesia deve se esforçar para mudar o mundo de tal maneira que já não tenhamos que ser dissidentes. Agora, você consegue imaginar Democracy Now! sem ter que seguir sendo dissidente?
Amy Goodman: Falando de dissidência, tenho que perguntar-lhe por sua visita a Pablo Neruda em Cuba.Lawrence Ferlinghetti: Oh, sim.Amy Goodman: Quando foi isso?Lawrence Ferlinghetti: Bem, eu estava lá – fui às Ilhas Virgens para rastrear a família judia-portuguesa-sefardí de minha mãe. O nome era Mendes Monsanto, e encontrei muitos túmulos de seus antepassados, os Mendes Monsanto, em St. Thomas.Mas, no caminho de volta, parei em Cuba. Era perfeitamente legal. Estou falando de 1959, em fins de 1959. E era o primeiro ou segundo aniversário da Revolução Cubana, e haviam convidado Pablo Neruda para que fosse falar a uma assembléia de fidelistas na grande sala de reuniões, no Congresso, onde os ditadores, senadores, se aboletavam nas poltronas de veludo. E, assim, fomos até o salão, onde estavam sentados uns 10.000 fidelistas. E havia essa atmosfera, essa fantástica atmosfera palpitante nesse salão. É o que – era óbvio – era uma euforia revolucionária, os primeiros dias de qualquer revolução. E nesta foi fantástico. Todo o lugar pulsava com essa vitalidade e, por certo – quer dizer, os fidelistas estavam lá, ainda com suas botas de combate, sentados naquelas poltronas de veludo com seus pés para cima, fumando charutos. E então, quando Neruda subiu ao palco, recebeu uma enorme ovação.E então, eu já o encontrara antes no hotel. Estava no piso superior do Habana Libre, que havia sido o Havana Hilton, e tinha diante de si imensos cadernos de notas – penso que sua visão já devia estar mal então – quer dizer, grandes volumes de tamanho oficio como se estivesse escrevendo neles com uma letra muito grande. E sua esposa [Matilde], que falava francês, estava presente. E, então, estive uns 20 minutos com ele antes de que tivesse que ir ao recital.
Evidentemente, ele estava bem informado sobre os poetas Beat. Foi assim que pude encontrá-lo, porque alguns dos jovens poetas cubanos trabalhavam no suplemento literário de segunda-feira do jornal Revolución. Muitos jovens poetas trabalhavam para “Segundas de Revolução”, e eu encontrara com dois deles em um buraco no cais em que eu estava, e nos levaram – me levaram a um restaurante, onde – uma cafeteria, onde disseram que Fidel Castro com freqüência aparecia para comer. E, de fato, na metade da refeição, sai da cozinha esse cara imenso em traje de combate e um chapéu. E disse: “Esse não é Fidel?” E disseram: “Sim, é ele.” “Bem, que tal me apresentarem a ele?” E disseram: “Oh, não poderíamos fazer algo assim. Não o conhecemos.” Desse jeito, como poetas desconhecidos diante de qualquer celebridade. De modo que simplesmente me aproximei, e poderia ser – ele estava completamente desarmado e ninguém o acompanhava. Eu poderia ser um assassino de aluguel. Tudo estaria acabado. E nessa época meu espanhol era muito limitado, e tudo o que me ocorreu dizer foi: “Soy un amigo de Allen Ginsberg” porque ele havia encontrado Ginsberg –Amy Goodman: “Sou um amigo de Allen Ginsberg”.
Lawrence Ferlinghetti: Sim. Ele encontrara Ginsberg no Hotel Lenox. Então Castro esboça um sorriso muito ingênuo no rosto e me aperta a mão. Tinha um aperto de mão muito frouxo, o que me surpreendeu. Pensava que teria esse forte aperto militarizado ou algo assim. E isso me fez compreender que ele e seu grupo original eram estudantes quando começaram a revolução. Não eram necessariamente comunistas. Haviam ido a Nova York e Washington para conseguir dinheiro, ajuda financeira, e os rechaçaram, e então necessitava desesperadamente de dinheiro, e se voltou para a União Soviética para consegui-lo.Bob Scheer escreveu seu primeiro livro, “Cuba: An American Tragedy” [Cuba: uma tragédia americana], quando trabalhava como empregado na City Lights nos anos 60. Foi a primeira obra publicada favorável a Fidel, e “Uma tragédia americana” foi a tragédia de nossa estúpida política exterior. E, por exemplo, quando estive na Nicarágua anos depois, li em um jornal espanhol na Nicarágua uma entrevista com Fidel Castro, na qual disse: “Eu não sou um seguidor de Moscou. Sou sua vítima.” Foi próximo de 1979 quando disse isso. Então é onde estamos hoje com ele, continuando nossas políticas assassinas.Amy Goodman: Bem, Lawrence Ferlinghetti, ao terminar esta hora, seu conselho para os jovens, jovens poetas, aos cidadãos do mundo.Lawrence Ferlinghetti: Tens que ser poeta? Se não tens que ser poeta, vira escritor em prosa. Irás mais rápido. A poesia – provavelmente, na atualidade, existe mais poesia publicada que em qualquer outra época na história do mundo. Entretanto, existe isto – as pessoas pensam que se tornam cegas quando vêem uma linha impressa de poesia, e simplesmente se bloqueiam. Então se puderes dizer o mesmo em prosa, provavelmente te sairás melhor. Por exemplo, este meu livrinho “Poesia como Arte Insurgente” está escrito em prosa, tratando de romper a barreira.

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