Sobre a Globalização
O Nosso Próximo Programa: Oximoro!
Por Sub-comandante Marcos
"A figura do oximoro aplica-se a palavra
ou epíteto que parece contradizê-la
assim os gnósticos falarão de uma luz escura
e os alquimistas de um sol negro."
Jorge Luis Borges
ADVERTENCIA, INTRODUÇÃO E PROMESSA
Atenção: se você não leu a epígrafe, será bom que o faça agora, porque pode não perceber algumas coisas. Um facto irrefutável: a globalização está aqui. Não a qualifico já, assinalo apenas uma realidade. Porém, ainda que tal seja um oximoro, é preciso notar que se trata de uma globalização fragmentada
A globalização foi possível, entre outras coisas, por causa de duas revoluções: a tecnológica e a da informática. Foi e será dirigida pelo poder financeiro. Juntas, a tecnologia e a informática - e com elas o capital financeiro - diminuíram distâncias e romperam fronteiras. Hoje é possível ter informações sobre qualquer parte do mundo, a qualquer momento e de uma forma simultânea. Mas também o dinheiro tem agora o dom da ubiquidade, move-se de maneira vertiginosa, como se estivesse em todas as partes ao mesmo tempo. E mais, o dinheiro dá uma nova forma ao mundo, a forma de um mercado, de um megamercado.
No entanto, apesar da globalização do planeta, ou melhor, precisamente por ela, a homogeneidade está longe de ser a característica desta viragem de século e de milénio. O mundo é um arquipélago, um quebra-cabeças cujas peças se tornam outros tantos quebra-cabeças e a única coisa realmente globalizada é a proliferação do heterogêneo.
Se a tecnologia e a informática estão a unir o mundo, o poder financeiro utiliza-as como armas, como armas numa guerra. Anteriormente havíamos dito - o texto chama-se "Sete peças soltas no quebra-cabeças mundial", EZLN, 1997 - que na globalização se trava uma guerra mundial, a quarta, e que se desenvolve um processo de destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento (estou a tentar resumir apressadamente, sejam benevolentes) em todo o planeta. Para a construção da nova ordem mundial (planetária, permanente, imediata e imaterial, segundo Ignacio Ramonet), o poder financeiro conquista territórios e derruba fronteiras, e consegue-o fazendo a guerra, uma nova guerra. Uma das baixas desta guerra é o mercado nacional, base fundamental do Estado-Nacional. Este último está em vias de extinção, ou pelo menos o Estado-Nacional tradicional está-o. No seu lugar surgem mercados integrados ou, melhor, lojas de departamentos do grande shopping mundial, o mercado globalizado.
As consequências políticas e sociais desta globalização constituem um oximoro reiterado e completo: menos pessoas com mais riquezas, produzidas com a exploração de mais pessoas com menos riquezas, "a pobreza do nosso século não é comparável a nenhuma outra. Não é, como já foi alguma vez, o resultado natural da escassez, mas o conjunto de prioridades impostas pelos ricos ao resto do mundo"(1); para uns poucos de poderosos o planeta abriu-se cada vez mais; para milhões de pessoas o mundo não oferece lugar e elas vagueiam errantes de um lado para outro; o crime organizado forma a coluna vertebral dos sistemas jurídicos e dos governos (os ilegais fazem as leis e "cuidam da ordem pública", e a "integração" mundial multiplica as fronteiras).
Deste modo, se ressaltarmos algumas das principais características da época actual, diríamos: supremacia do poder financeiro, revolução tecnológica e informática, guerra, destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento, ataques aos Estados Nacionais, a consequente redefinição do poder e da política, o mercado como figura hegemónica que atravessa todos os aspectos da vida humana em todas as partes, maior concentração de riqueza em poucas mãos, maior distribuição de pobreza, aumento da exploração e do desemprego, milhões de pessoas sem tecto, delinquentes que integram o governo, desintegração de territórios. Em resumo: globalização fragmentada.
Ora bem, de acordo com isto, no caso dos intelectuais (haja em vista que têm a ver com a sociedade, o poder e o Estado) cabe perguntar: estarão eles padecendo do mesmo processo de destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento? Que papel lhes atribui o poder financeiro? Como usam (ou são usados por eles) os avanços tecnológicos e da informática? Que posição têm nessa guerra? Como se relacionam com os enfraquecidos Estados Nacionais? Qual o seu vínculo com esse poder e política? Que lugar têm no mercado? E como se posicionam frente às consequências políticas e sociais da globalização? Em suma: como se inserem nesta globalização fragmentada?
O mundo teria mudado por e para esta guerra. Se as coisas de facto são assim, os intelectuais clássicos não existiriam mais, nem suas antigas funções. Em seu lugar, uma nova geração de "cabeças pensantes" - para usar um termo criado pelo comandante zapatista Tacho - teria emergido (ou está por emergir), e preencheriam novas funções na sua actividade intelectual.
Ainda que pretendamos aqui limitar-nos aos intelectuais de direita, serão evidentes algumas observações sobre os intelectuais em geral e sobre as suas relações com o poder. Como o propósito deste texto é participar e alimentar a polémica entre os intelectuais de direita e esquerda, fica aqui uma reflexão mais profunda (sobre os intelectuais e o poder, e sobre os intelectuais e a transformação) para futuros e improváveis escritos.
Saudações, e tenha à mão o seu controle remoto. Começamos imediatamente…
I -- A GLOBALIZAÇÃO: PAY PER VIEW
Na página do calendário, o ano dois mil está entre os séculos 20 e 21. Não me parece muito importante esta contagem do tempo, mas julgo que é um momento adequando para que, por todos os lados, surjam oximoros. Para não ir muito longe, poderia dizer que esta época é o princípio do fim ou o fim do princípio de "algo". "Algo", forma irresponsável de eludir um problema. Porém já se sabe que a nossa especialidade não é a solução de problemas, mas sim a sua criação. "A sua criação?" Não, é muito presunçoso, melhor seria dizer a sua proposição. Sim, nossa especialidade é propor problemas. Tudo parece já ter acontecido antes, como num velho filme que se repete com outras imagens, outros recursos cinematográficos, incluindo actores diferentes, mas com o mesmo roteiro. Como se a modernidade (ou a "pós-modernidade", deixo a precisão para quem se dê ao trabalho) da globalização se vestisse com seu oximoro e nos presenteasse com uma modernidade arcaica, ferrugenta e antiga.
Se isto que digo lhes parece mera apreciação subjectiva, atribua isso ao facto de estarmos na montanha, resistindo e em rebeldia, mas conceda-nos o privilégio da leitura e veja se se trata de um sintoma a mais de "mal de montanha" ou se você partilha desta sensação de dejà vu que flui pelo hipercinema que é este mundo globalizado.
O mundo não é quadrado, pelo menos isso é o que nos ensinam na escola. Porém, no fio cortante da união dos milénios, o mundo também não é redondo. Ignoro qual seja a figura geométrica adequada para representar a forma actual do mundo, mas, considerando que estamos na época da comunicação digital audiovisual, poderíamos tentar defini-la como um gigantesco ecrã. Você pode agregar "um ecrã de televisão", ainda que eu prefira "um ecrã de cinema". Não apenas por preferir o cinema, mas também, e acima de tudo, porque me parece que há na nossa frente um filme, uma velha película, modernamente velha (para continuar com oximoro).
É, além disso, um desses ecrãs onde se pode programar a apresentação simultânea de várias imagens (chamam-na de picture in picture). No caso do mundo globalizado, de imagens que se sucedem em qualquer recanto do planeta. Mas ali não estão todas as imagens. E não por falta de espaço no ecrã, mas porque "alguém" seleccionou estas imagens e não outras. Quer dizer, estamos a ver um ecrã com diversos quadros que apresentam imagens simultâneas - de diferentes partes do mundo, é certo -, mas nem toda a gente está ali.
Ao chegar a este ponto, perguntamos inevitavelmente "quem tem o controlo remoto deste ecrã audiovisual? e quem faz a programação?". Boas perguntas, mas você não encontrará aqui as respostas. E não apenas porque não as temos de ciência certa, mas também porque não são o tema deste texto.
Posto que não podemos trocar de canal no cinema, vejamos alguns dos diferentes quadros que nos oferece o mega-ecrã da globalização.
Vamos ao continente americano. Lá você tem, num quadro, a imagem da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) ocupada por um grupo paramilitar do governo: a chamada Polícia Federal Preventiva. Não parece que estes homens de uniforme cinza estejam a estudar. Mais adiante, demarcada pelas montanhas do sudeste mexicano, uma coluna cinza de tanques blindados cruza uma comunidade indígena do Chiapas. Do outro lado, a imagem cinza apresenta um polícia norte-americano que detém, com uma violência requintada, um jovem num lugar que pode ser Seatlle ou Washington.
No quadro europeu proliferam também os cinzas. Na Áustria é Joer Heider e o seu fervor pró-nazi. Na Itália, com a ajuda desinteressada de D'Alema, Silvio Berlusconi ajeita a gravata. No Estado Espanhol, Felipe Gonzáles maquilha o rosto de José Maria Aznar. Na França é Le Pen quem nos sorri. A Ásia, África e Oceania apresentam a mesma cor, que se repete em cada recanto.
Humm... tantos cinzentos... Humm... nós podemos protestar... depois de tudo, eles nprometeram-nos um programa multicor... Pelo menos, aumentemos o volume. Vamos tentar entender que coisa isso é...
II. - UM ESQUECIMENTO MEMORÁVEL
Tal como a globalização fragmentada, os intelectuais estão aí, são uma realidade da sociedade moderna. E o "estar aí" deles não se limita à época actual, remontando antes aos primeiros passos da sociedade humana. Mas a arqueologia dos intelectuais escapa ao nosso conhecimento e possibilidades, e por isso partimos do facto de que "estão aí". Em todo o caso, o que nos propomos descobrir é a sua forma de "estar aí".
"Os intelectuais enquanto categoria são algo muito vago, já se sabe. Diferente, por outro lado, é definir a "função intelectual". A função intelectual consiste em determinar criticamente o que se considera uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade; e qualquer um pode desenvolvê-la, inclusive um marginal que reflicta de alguma forma sobre sua própria condição e de alguma maneira a expresse, enquanto um escritor pode traí-la por reagir aos acontecimentos com paixão, sem impor o crivo da reflexão"(2).
Se é assim, então o trabalho intelectual é, fundamentalmente, analítico e crítico. Frente a um facto social (para nos limitar a um universo), o intelectual analisa o evidente, o afirmativo e o negativo, buscando o ambíguo, o que não é nem uma coisa nem outra (embora assim se apresente) e mostra (comunica, desvenda, denuncia) não apenas o que não é evidente, mas inclusive o que se contradiz ao evidente.
É de se supor que as sociedades humanas tenham pessoas que se dediquem profissionalmente a esta análise crítica e a comunicar os seus resultados. Nas palavras de Norberto Bobbio: "Os intelectuais são todos aqueles para os quais transmitir mensagens é a ocupação habitual e consciente (...) e, falando de uma maneira que pode até parecer brutal, quase sempre representa a maneira de ganhar o pão de cada dia". Fiquemos com esta aproximação ao intelectual, ao profissional da análise crítica e da comunicação.
Já havíamos sido advertidos de que o intelectual nem sempre exerce a função intelectual. "A função intelectual exerce-se sempre com antecedência (ao que pode acontecer) ou com atraso (sobre o que já aconteceu); raramente sobre aquilo que está a acontecer, por razões de ritmo, porque os acontecimentos são sempre mais rápidos e urgentes do que a reflexão sobre os acontecimentos"(3).
Pela sua função intelectual, este profissional da análise crítica e da sua comunicação seria uma espécie de consciência incómoda e impertinente da sociedade (nesta época da sociedade globalizada) no seu conjunto e em cada uma das suas partes. Um inconformado com tudo, com as forças políticas e sociais, com o Estado, com o governo, com os meios de comunicação, com a cultura, com as artes, com a religião e mais o que o leitor quiser agregar. Se o actor social diz "aqui está", o intelectual murmura, cético: "falta", ou "sobra algo".
Teríamos então que o intelectual no seu papel é um crítico da imobilidade, um promotor da mudança, um progressista. No entanto, este comunicador de ideias críticas está inserido numa sociedade polarizada, confrontada consigo mesmo de muitas maneiras e com diferentes argumentos, mas dividida fundamentalmente entre aqueles que usam o poder para que as coisas não mudem e os que lutam pela mudança. "O intelectual deve, por um elementar sentido de ridículo, compreender que não lhe é outorgado um papel de bruxo do espírito em torno do qual vai girar o ser ou não ser histórico, mas evidentemente ele tem conhecimentos (...) que pode alinhar em um ou outro sentido histórico. Pode alinhar na busca da elucidação das injustiças presentes no mundo actual ou na cumplicidade com a paralisação e a instalação do Limbo"(4).
E é aqui que o intelectual opta, elege, escolhe entre sua função intelectual e a função que lhe propõem os actores sociais. Aparece assim a divisão (e a luta) entre intelectuais progressistas e reaccionários. Ambos seguem trabalhando com a comunicação de análise crítica, mas enquanto os progressistas continuam na crítica da imobilidade, da permanência, da hegemonia e do homogéneo; os reaccionários desenvolvem a crítica à mudança, ao movimento, à rebelião e à diversidade. O intelectual reaccionário "esquece" a sua função intelectual, renuncia à reflexão crítica e a sua memória opera de modo que não exista passado ou futuro. O presente e o imediato são o único tempo possível e, por isso, inquestionável.
Ao dizer "intelectuais progressistas e reaccionários" referimo-nos aos intelectuais "de esquerda e de direita". Aqui convém lembrar que o intelectual de esquerda exerce a sua função intelectual, ou seja, a sua análise crítica também frente à esquerda (social, partidária, ideológica), mas na época actual a sua crítica é fundamentalmente dirigida ao poder hegemónico: o dos senhores do dinheiro e quem os representa no campo da política e das ideias.
Deixemos agora os intelectuais progressistas e de esquerda, e vamos aos intelectuais reaccionários, a direita intelectual.
III -- O PRAGMATISMO INTELECTUAL
No princípio os gigantes intelectuais de direita foram progressistas. Falo dos grandes intelectuais de direita, os "think tanks" da reacção, não dos anões que foram ingressando nos seus clubes "pensantes". Octavio Paz, excelente poeta e ensaísta, o maior intelectual de direita dos últimos anos no México, declarou: "Venho do pensamento chamado de esquerda. Foi algo muito importante na minha formação. Não sei agora...a única coisa que sei é que meu diálogo - às vezes minha discussão - é com eles (os intelectuais de esquerda). Não tenho muito para falar com os outros"(5). Casos como o de Paz repetem-se no mega-ecrã global.
O intelectual progressista, enquanto comunicador de análise crítica, converte-se em objecto e objectivo para o poder dominante. Objecto a comprar e objectivo a destruir. Enormes recursos são mobilizados para as duas coisas. O intelectual progressista "nasce" no meio deste ambiente de sedução persecutória. Alguns resistem e defendem-se (quase sempre sozinhos, a solidariedade entre grupos não parece ser a característica do intelectual progressista), mas outros, talvez fatigados, vasculham a sua bagagem de ideias e escolhem as que são ao mesmo tempo crítica e razão para legitimar o poder. O novo exige muito, o velho está aí, sendo que basta usar o argumento de "inevitável" para que lhe ofereçam uma cómoda poltrona (às vezes em forma de bolsa de estudos, posição, prémio, espaço) por conta do Príncipe antes tão criticado.
"O inevitável" tem nome hoje: globalização fragmentada, pensamento único -- isto é, "a tradução em termos ideológicos e com pretensão universal dos interesses de um conjunto de forças económicas, em particular as do capital internacional" (6). Fim da história, omnipresença e omnipotência do dinheiro, substituição da política pela polícia, o presente como único futuro possível, racionalização da desigualdade social, justificação da sobre-exploração dos seres humanos e dos recursos naturais, racismo, intolerância, guerra.
Numa época marcada por dois novos paradigmas, comunicação e mercado, o intelectual de direita (e o ex-esquerda) entende que ser "moderno" significa seguir o slogan: adaptam-se ou percam os vossos lugares privilegiados!
Não é necessário sequer ser original, o intelectual de direita já tem o canteiro de onde haverá de tirar as pedras que adornem a globalização fragmentada: o pensamento único. A assepsia não importa muito, o pensamento único tem suas principais "fontes" no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional, na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, na Organização Mundial do Comércio, na Comissão Europeia, no Bundesbank, no Banco de França "que, mediante o seu financiamento, alinham ao serviço dos seus ideais, em todo o planeta, numerosos centros de investigação, universidades e fundações, os quais, por sua vez,anunciam e difundem a boa nova".(7)
Com tal abundância de recursos, é fácil que floresçam elites que há muitos anos, se empenham a fundo em fazer o elogio do "pensamento único"; que exercem uma verdadeira chantagem contra toda a reflexão crítica em nome da "modernização", do "realismo", da "responsabilidade" e da "razão"; que afirmam o "caráter inevitável" da actual evolução das coisas; que propõem a capitulação intelectual, que condenam à escuridão irracional todos aqueles que se negam as aceitar que "o estado natural da sociedade é o mercado".(8)
Longe da reflexão, do pensamento crítico, os intelectuais de direita tornam-se pragmáticos por excelência, exilados da função intelectual e transformados em ecos, mais ou menos estilizados, dos spots publicitários que inundam o megamercado da globalização fragmentada.
Refuncionalizados na globalização fragmentada, os intelectuais de direita modificam o seu ser e adquirem novas "virtudes" (entre elas reaparece o oximoro): uma audaz cobardia e uma profunda banalidade. Ambas brilham em suas "análises" do presente globalizado e das suas contradições, das suas revisões do passado histórico, das suas clarividências. Podem dar-se ao luxo da audaz cobardia e da profunda banalidade, já que a hegemonia universal quase absoluta do dinheiro protege-os com torres de vidro blindado.
Por isso, a direita intelectual é particularmente sectária e tem, além disso, o respaldo de não poucos meios de comunicação e governos. Ingressar nessas altas torres intelectuais não é fácil, é preciso renunciar à imaginação crítica e autocrítica, à inteligência, à argumentação, à reflexão, e optar pela nova teologia: a teologia liberal.
Posto que a globalização se vende como o melhor dos mundos possíveis, mas carece de exemplos concretos de vantagens para a humanidade, é preciso recorrer à tecnologia e substituir com dogmas e fé neoliberal a falta de argumentos. O papel do teólogo neoliberal inclui denunciar e perseguir os "hereges", os "mensageiros do mal", ou seja, os intelectuais de esquerda. E que melhor forma de combater os críticos do que acusá-los de "messianismo"?
Frente ao intelectual de esquerda, o de direita impõe o rótulo lapidar de "messianismo tresloucado". Quem pode questionar um presente pleno de liberdades, onde qualquer um pode decidir o que comprar, sejam artigos de primeira necessidade, ideologias, propostas políticas ou comportamentos para qualquer ocasião?
Mas o paradoxo não perdoa. Se em algum lado há messianismo, é na direita intelectual. "O Grande Circo de Intelectuais Neoliberais Quimicamente Puros ou Ex Marxistas Arrependidos ou a Trilateral pode ser messiânico quando pressagia a fatalidade de um universo baseado em uma verdade única, o mercado único e o exército -- gendarme único vigiando o brilho do flash que regista a foto final da História, disparado ante as melhores paisagens das melhores sociedades abertas." (9)
A foto final. O cenário culminante do filme da globalização.
IV- OS CLARIVIDENTES CEGOS
Parafraseando Régis Debray, o problema aqui não é porque ou como a globalização é irremediável, mas sim porque ou como toda gente, ou quase toda a gente, acredita que ela seja irremediável. Uma resposta possível: "A tecnologia do fazer-crer (...) O poder da informação.. . Inf-formar:dar forma, formatar. Con-formar: dar conformidade. Trans-formar: modificar uma situação".(10)
Com a globalização da economia, globaliza-se também a cultura. E a informação. Normal, portanto, que as grandes empresas de comunicação "estendam" sobre o mundo inteiro a sua rede eletrónica sem que nada nem ninguém as impeça. "Nem Ted Turner, da CNN; nem Rupert Murdoch, da News Corporation Limited; nem Bill Gates, da Microsoft; nem Jeffrey Vinik, da Fidelity Investments; nem Larry Rong, do China Trust and International Investment; nem Robert Allen, de ATT; assim como George Soros ou dezenas de outros novos amos do mundo, submeteram jamais os seus projectos ao sufrágio universal".(11)
Na globalização fragmentada, as sociedades são fundamentalmente sociedades mediáticas. Os media são o grande espelho, não do que uma sociedade é, mas do que deve aparentar. Plena de tautologias e evidências, a sociedade mediática é avara em razões e argumentos. Aqui, repetir é demonstrar.
E o que se repete são as imagens, como estes cinzas que nos mostra agora o grande ecrã globalizado. Debray disse-nos: A equação da era visual é alguma coisa como: o visível = o real = o verdadeiro. Eis aqui a idolatria revisitada (e sem dúvida redefinida)" (12). Os intelectuais de direita têm aprendido bem a sua lição. Mais, esse é mesmo um dos dogmas da sua teologia.
Onde se deu o salto que iguala o visível ao verdadeiro? Truques do ecrã globalizado.
O mundo inteiro, melhor ainda, o conhecimento inteiro está à mão de qualquer um com uma televisão ou um computador portátil. Sim, mas não qualquer mundo e não qualquer conhecimento. Debray explica que o centro de gravidade das informações foi deslocado do escrito para o audiovisual, do signo para a imagem. As vantagens para os intelectuais de direita (e as desvantagens para os progressistas) são óbvias.
Analisando o comportamento da informação na França durante a guerra do Golfo Pérsico, revela-se o poder das mídias: no começo do conflito, 70% dos franceses mostravam-se hostis à guerra; no final, a mesma percentagem aprovava-a. Sob o bombardeio dos media, a opinião pública francesa "mudou" e o governo obteve vantagens pela sua participação bélica.
Estamos na "era visual". Assim, as informações apresentam-se na evidência de sua imediatez, portanto é real o que nos é mostrado, portanto é verdadeiro o que vemos. Não há lugar para a reflexão intelectual crítica, no máximo há espaço para comentaristas que "completem" a leitura da imagem. O visual desta era não foi feito para ser visto, mas para oferecer "conhecimento". O mundo tornou-se uma mera representação multimédia, que omite o mundo exterior, capaz de ser conhecida na mesma medida em que é vista. Sim, indícios do terceiro milénio, século XXI, enquanto a filosofia flutuante em nosso mundo "moderno" é o idealismo absoluto.
Já se podem tirar algumas conclusões: o novo intelectual de direita tem que desempenhar a sua função legitimadora na era visual; optar pelo directo e imediato; passar do signo à imagem e da reflexão ao comentário televisivo. Nem sequer tem que se esforçar para legitimar um sistema totalitário, brutal, genocida, racista, intolerante e excludente. O mundo que é objecto da sua "função intelectual" é o apresentado pelos meios de comunicação: uma representação virtual. Se no hipermercado da globalização o Estado-Nacional se redefine como uma empresa, mais, os governantes como gerentes de vendas e os exércitos e polícias em agências de vigilância, então a direita intelectual faz o papel de relações públicas.
Por outras palavras, na globalização, os intelectuais de direita são "multiuso", coveiros da análise crítica e da reflexão, ilusionistas nas rodas de moinho da teologia neoliberal, "pontos" de governos que esqueceram o "script", comentaristas do evidente, instigadores de soldados e polícias, juizes gnósticos que separam em rótulos de "verdadeiro" e "falso" o que lhes convêm. Guarda-costas teóricos do Príncipe, e anunciadores da "nova história".
V- O FUTURO PASSADO
"Queimar livros e erguer fortificações é tarefa comum dos príncipes", disse Jorge Luis Borges. E acrescenta que todo o príncipe quer que a história comece a partir dele. Na era da globalização fragmentada não se queimam livros (embora se ergam fortificações), eles apenas são substituídos. Mesmo desta maneira, mais que suprimir a história, o príncipe neoliberal instrui seus intelectuais para que a refaçam de maneira que o presente seja o fim dos tempos.
"Os Maquilhadores da História", assim Luis Hernández Navarro intitulou um artigo dedicado ao debate com os intelectuais de direita no México (13). Além de provocar o presente texto (escrito com a intenção de dar seguimento às suas posições), Hernández Navarro adverte sobre uma nova ofensiva: a nova direita intelectual dirige suas baterias contra figuras representativas da intelectualidade progressista mexicana. "Rentista tardia da tranquilidade planetária do "pensamento único", renegada de sua identidade, herdeira de papel passado da queda do muro de Berlim, sócia e emuladora do circuito cultural conservador norte-americano, esta direita está convencida de que a crítica cultural outorga credenciais suficientes para emitir, sem argumentação, juízos sumários sobre os seus adversários no terreno político".
As razões não-ideológicas deste ataque devem ser buscadas na disputa pelo espaço de credibilidade. No México os intelectuais de esquerda têm grande influência na cultura e na universidade. Estorvam, é esse o seu delito.
Ou melhor, este é um de seus delitos. Outro é o apoio destes intelectuais progressistas à luta zapatista por uma paz justa e digna, pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e pelo fim da guerra contra os índios do país. Este pecado não é menor. "O levantamento zapatista inaugura uma nova etapa, a do começo dos movimentos indígenas como actores da oposição à globalização neoliberal" (14). Não somos os melhores nem os únicos: aí estão os indígenas do Equador e do Chile, os protestos em Seattle e Washington (e os que se sigam em ordem cronológica, não em importância). Mas somos uma das imagens que distorcem a mega-ecrã da globalização fragmentada e, como fenómeno social e histórico, demandamos reflexão e análise crítica.
E a reflexão e a análise crítica não estão no "arsenal" da direita intelectual. Como cantar as glórias da nova ordem mundial (e sua imposição no México) se um grupo de indígenas "pré-modernos" não apenas desafia o poder, mas também conquista a simpatia de uma importante faixa dos intelectuais? Em consequência, o Príncipe ditou as suas ordens: "ataquem uns e outros, eu entro com o exército e os meios de comunicação, vocês, com as ideias". Assim a nova direita intelectual dedicou zombarias e calúnias aos seus pares da esquerda. Aos indígenas rebeldes zapatistas, dedicou-nos...uma nova história.
E, enquanto o zapatismo teve impacto internacional, a direita intelectual, em várias partes do mundo (não apenas no México), dedicou-se a esta tarefa. Os intelectuais de direita não apenas maquilham a história, refazem-na, reescrevem-na com a conveniência do Príncipe e à maneira de sua função intelectual.
Mas voltemos ao México. "Ao longo deste século, os intelectuais no México têm desempenhado funções diversas: cortesãos de luxo do poder de turno, decoração do Estado, vozes dissidentes (que, para se institucionalizarem são chamadas de Consciências Críticas), intérpretes privilegiados da história e da sociedade, espectáculos em si mesmos"(15).
O último grande intelectual de direita no México, Octavio Paz, cumpriu cabalmente o trabalho encomendado pelo Príncipe. Não economizou palavras para desprestigiar os zapatistas e quem mostrasse simpatia por sua causa (atenção: não pela sua forma de luta). Uma das melhores mostras de Paz ao serviço do Príncipe está nos seus textos e declarações do início de 1994. Ali, Octavio Paz definia não o EZLN, mas sim os argumentos sobre os quais os seus soldados intelectuais deveriam aprofundar: maoísmo, messianismo, fundamentalismo, e alguns outros "ismos" mais que agora me escapam à memória. Frente aos intelectuais progressistas, Paz não economizou acusações: eles eram responsáveis pelo "clima de violência" que marcou o ano de 1994 (e todos os anos do México moderno, mas a direita intelectual nunca brilhou pela sua memória histórica). Concretamente, pelo assassinato do candidato oficial à presidência da Republica, Colosio. Anos depois, antes de morrer, Paz retificaria e assinalaria que o sistema estava em crise e que, mesmo sem o levante zapatista, estes fatos ocorreriam de qualquer forma(16).
Nenhum dos actuais herdeiros de Paz têm a sua estatura, mesmo que não lhes falte ambição para ocupar o seu lugar. Não como intelectuais, pois falta-lhes inteligência e brilho, mas pelo lugar privilegiado que ocupou ao lado do Príncipe. Ainda assim, travam o seu combate. E seguem empenhados em criar, para o zapatismo, uma história que lhes seja cómoda - não apenas para atacá-lo, mas sim, sobretudo, para evitar a análise crítica e uma reflexão séria e responsável.
Mas os intelectuais de direita não reescrevem apenas a história do zapatismo e dos povos índios. A história inteira do México vem sendo refeita para demonstrar que estamos, agora, no melhor dos Méxicos possíveis. É dessa maneira que os anões da direita intelectual revêem o passado e nos vendem uma nova imagem de Porfírio Díaz, de Santa Ana, de Calleja, de Cárdenas.
Mas esta ânsia de reescrever a história não é exclusiva do México. No ecrã da globalização, já nos é oferecida uma nova versão, onde o Holocausto nazi contra os judeus foi uma espécie de Disneylândia selectiva, Adolf Hitler uma espécie de alegre Mickey Mouse ariano e, mais recentemente, as guerras do Golfo Pérsico e de Kosovo como "humanitárias". No futuro passado que nos prepara a direita intelectual, a globalização é o deus ex machina que trabalha sobre o mundo para preparar o seu próprio advento.
Mas, essas imagens cinzentas que nos mostra agora o mega-ecrã da globalização, que futuro anunciam?
VI- O LIBERAL FASCISTA
Eu afirmo que este filme já foi visto antes, e se não nos lembramos é porque a história não é um artigo atraente no mercado globalizado. Esses cinzas podem significar algo: a reaparição do fascismo.
Paranóia? Umberto Eco, num texto chamado "O fascismo eterno", de obra já citada, dá algumas chaves para entender que o fascismo permanece latente na sociedade moderna e que, ainda que seja pouco provável que se repitam os campos de extermínio nazis, alguns lugares do planeta assistem ao que se chama "Ur Fascismo". Depois de advertir que o fascismo era um totalitarismo fuzzy, ou seja, disperso, difuso em todo o social, propõe algumas de suas características: rejeição ao avanço do saber, irracionalismo, a cultura suspeita de fomentar atitudes críticas, o que não está de acordo com o hegemónico é uma traição, medo da diferença e racismo, aparecimento da frustração individual ou social, xenofobia, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais, a vida como uma guerra permanente, elitismo aristocrático, sacrifício individual para o benefício da causa, machismo, populismo qualitativo difundido pela televisão, "neolinguagem" (de léxicos pobres e de sintaxe elementar).
Todas estas características podem ser encontradas nos valores que defendem e difundem os media e os intelectuais de direita na era visual, na era da globalização fragmentada. "Será que hoje, assim como ontem, não se está a usar o cansaço democrático, a náusea diante do nada, o desconcerto perante a desordem como aval para uma nova situação histórica de excepção que requer um novo autoritarismo persuasivo, unificador da cidadania dos clientes e dos consumidores de um sistema, um mercado, uma repressão centralizada?", pergunta Manuel Vázquez Montalbán na já citada obra.
Olhe para o mega-ecrã: todos esses cinzentos são a resposta à desordem. É o que é necessário para enfrentar quem se nega a desfrutar o mundo virtual da globalização e resiste. E, no entanto, parece que o número de descontentes cresce. Um dos anões mexicanos que aspiram a ocupar a cadeira deixada por Octavio Paz constatava, aterrorizado, que numa pesquisa feita no México em 1994, pelo Instituto de Investigações Sociais da UNAM, 29% dos entrevistados dizia que as leis não devem ser obedecidas se injustas. Em Novembro de 1999, para 49% das pessoas pesquisadas na revista "Educación 2001", a resposta à pergunta "pode o povo desobedecer as leis se elas parecem injustas?" era sim. Depois de reconhecer que é preciso resolver problemas de crescimento económico, educação, emprego e saúde, assinalava o autor: "Todas estes coisas só podem ser alcançadas se a sociedade se encontrar segura no nível mais básico, que é o da segurança pública e do cumprimento da lei. Este piso está cheio de buracos no México, e tende a piorar"(17). O raciocínio é sintomático: na falta de legitimidade e consenso, polícia!
O clamor da direita intelectual por "ordem e legalidade" não é um exclusivo do México. Na França, o fascista Le Pen está disposto a responder à chamada. Na Áustria, o neonazi Heider já está pronto, assim como o franquista Aznar no Estado Espanhol. Na Itália, Berlusconi (aliás, o "Duce Multimedia") e Gianfranco Fini preparam-se para o momento.
A Europa comparece novamente ao balcão do fascismo? Soa duro...e distante. Mas aí estão as imagens da mega-ecrã. Estes skinheads que mostram seus cacetes na esquina: estão na Alemanha, na Inglaterra, na Holanda? "São minoritários e estão sob controlo", tranquiliza-nos o áudio da mega-ecrã. Mas parece que o fascismo renovado nem sempre tem a cabeça rapada e o corpo tatuado com suásticas. Mesmo assim não deixa de ser uma direita sinistra.
Se digo "direita sinistra" pode parecer que jogo com as palavras e recorro novamente a oximoro, mas quero chamar atenção sobre algo. Depois da queda do murro de Berlim, o espectro político europeu, na sua maioria correu desordenadamente para o centro. Isso é evidente na esquerda tradicional europeia, mas também nos partidos de direita (18). Com uma máscara moderna, a direita fascista começa a conquistar espaço que já ultrapassa muito as notas policiais nos media. Tal apenas é possível porque estão a esforçar-se por construir uma nova imagem, distante do passado violento e autoritário.
Também por estarem a apropriar-se da teologia neoliberal com uma facilidade espantosa (por algo será), e porque nas suas campanhas eleitorais têm vindo a insisitir muito em temas de segurança pública e emprego (alertando contra a "ameaça" dos imigrantes). Alguma diferença das propostas da social-democracia ou da esquerda tradicional?
O fascismo espreita por trás da "terceira via" europeia, e também da esquerda que não se define (em teoria e prática) contra o neoliberalismo. Às vezes, a direita pode vestir-se com os trapos da esquerda. No México, no recente debate televisivo entre os seis candidatos à presidência da República, o candidato que obteve consenso da direita intelectual foi Gilberto Rincón Gallardo, do Partido Democrata Social, aparentemente de esquerda. Por acaso a televisão não mostrou que alguns dos militantes e candidatos do PDS em Chiapas são líderes de vários grupos paramilitares, responsáveis, entre outras coisas, pelo massacre de Acteal.
Que a direita fascista e a nova direita intelectual estejam prontas para mostrar as suas habilidades aos senhores do dinheiro não surpreende. O desconcertante é que, algumas vezes, são a social-democracia ou a esquerda institucional quem lhes prepara o caminho.
Se no Estado Espanhol, Felipe González (este político tão aplaudido pela direita intelectual) trabalhou para a vitória do direitista Partido Popular de José María Aznar, na Itália, o caminho pelo qual a direita se dirige ao poder chama-se Massimo D'Alema. Antes de renunciar, D'Alema fez todo o necessário para que a esquerda naufragasse. "D'Alema e os seus financiaram com o dinheiro de todos a educação religiosa e prepararam a privatização da educação pública, participaram plenamente da aventura da NATO contra a Jugoslávia e da ocupação virtual da Albânia, privatizaram o que puderam, atentaram contra os aposentados, reprimiram os imigrantes, submeteram-se a Washington, reabilitaram os corruptos e até mesmo a Bettino Craxi, em cuja residência no exílio, como fugitivo da justiça, desfilaram para pedir-lhe ajuda, redigiram uma lei sobre os carabineros ditada pelo comando golpista dos mesmos..." (19). Resultado? Boa parte do eleitorado de esquerda absteve-se de votar.
Na complicada geometria política europeia, a chamada "terceira via" não apenas tem resultado letal para a esquerda, mas também tem sido o ponto de partida do neofascismo.
Talvez esteja exagerando, mas "a memória é uma faculdade estranha. Quanto mais intenso e isolado é o estímulo que a memória recebe, mais lembra-se; quanto mais amplo, menos intensa é a lembrança0"(20), e eu suspeito que esta avalanche de imagens cinzentas no ecrã é para que lembremos com menos intensidade, com preguiça, desejando esquecer.
E se os livros não mentem (ver Umberto Eco, em obra citada), foi o fascismo italiano que chamou muitos líderes liberais europeus porque considerava que estavam levando a cabo interessantes reformas sociais, e poderiam ser uma alternativa à "ameaça comunista".
Em Agosto de 1997, Fausto Bertinotti, secretario do Partido de Refundação Comunista italiano, escreveu numa carta ao EZLN: "Está aberta, na Europa, uma verdadeira crise de civilização. Poderíamos, infelizmente, narrar centenas, milhares de episódios de barbárie quotidiana, de violência gratuita, de agressão a pessoas, ao corpo, de tráfico de pessoas, de corpos, de órgãos, sem nenhum sentido. E acima de tudo, com uma grossa capa de indiferença, como se a vida tivesse perdido o sentido. Poderia contar coisas que acontecem na periferia urbana, realidade e metáfora da tragédia humana em que se transformou este novo ciclo de desenvolvimento capitalista".
Diante desta vida sem sentido, o liberal fascista oferece sua cara amável e argumenta, vincando as suas bondades, em favor do recurso à violência legalizada, institucional.
O horizonte anuncia a tempestade, e a direita intelectual trata de tranquilizar-nos dizendo que não é mais do que uma chuva, sem importância. Tudo para garantir o pão, o sal... e o seu lugar junto ao Príncipe. Protegei-o! Não importa que a sua camisa seja cinzenta e que no seu aconchegante seio se cultive o ovo da serpente.
"O ovo da serpente". Sim, se não me engano, é o título de um filme de Bergman que descreve o ambiente em que se gerou o fascismo. E o que fazer? Continuarmos sentados até que termine o filme? Sim? Não? Um momento! Muitos já levantaram de seus lugares e fazem barulho! O burburinho aumenta! Alguns atiram objectos ao ecrã e vaiam! Em vez de se dirigirem ao ecrã, olham para cima! Como se quisessem encontrar o projeccionista do filme! E parece que o encontraram pois apontam insistentemente para um lugar situado lá no alto! Quem são essas pessoas e com que direito interrompem a projecção? Uma delas levanta uma faixa que diz: "Tomemos então nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicamos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres." (21) O dever de nossos deveres? Que alguém explique, porque não percebemos! Silêncio! Alguém toma então a palavra...
VII- A CÉPTICA ESPERANÇA
Os intelectuais progressistas. Os de esperança céptica. O sociólogo francês Alain Touraine propõe uma classificação (22): o mais clássico é o intelectual que denuncia, onde toda a atenção se concentra sobre a crítica ao sistema dominante; o segundo tipo identifica-se com tal luta ou tal força de oposição e torna-se o seu intelectual orgânico; o terceiro acredita na existência, na consciência e na eficácia dos actores, ao mesmo tempo em que conhece os seus limites; o quarto são os utópicos: identificam-se com as novas tendências culturais, da sociedade ou da existência pessoal. Todos eles - e elas, pois ser intelectual não é privilégio masculino - empenham os seus esforços em entender, criticamente, a sociedade, a sua história e o seu presente, e tratam de desentranhar a incógnita do seu futuro.
Não é nada fácil a vida dos pensadores progressistas. Na sua função intelectual dão-se conta de como vão as coisas e, noblesse oblige, devem revelá-lo, exibi-lo, denunciá-lo, comunicá-lo. Mas para fazê-lo, precisam enfrentar a teologia neoliberal da direita intelectual, e por trás dela estão os media, os bancos, as grandes corporações, os Estados (ou o que resta deles), os governos, os exércitos, as forças policiais.
E devem fazê-lo, além disso, na era visual. Aqui estão em franca desvantagem, pois é preciso levar em conta as grandes dificuldades que implica enfrentar o poder da imagem unicamente com o recuso da palavra. Mas o seu cepticismo frente às aparências já lhes permitiu descobrir a trama. E com o mesmo cepticismo estruturam as suas análises críticas para desestruturar conceptualmente a máquina das belezas virtuais e as misérias reais. Existe esperança?
Fazer da palavra bisturi e megafone é um desafio descomunal. E não apenas porque nesta época o reino é o da imagem. Também porque o despotismo da era visual confinou a palavra nos bordéis e nas barracas de truques e porcarias. "Ainda assim, só podemos confessar a nossa confusão e a nossa impotência, a nossa ira e as nossas opiniões, com palavras. Com palavras, nomeamos ainda as nossas perdas e as nossas resistências porque não temos outro recurso, porque os homens estão inevitavelmente abertos à palavra e porque, pouco a pouco, são elas que moldam o nosso julgamento. O nosso julgamento, muito temido pelos detentores do poder, molda-se lentamente, como o leito de um rio, por meio de correntes de palavras. Mas as palavras só formam correntes quando elas são profundamente credíveis" (23).
Credibilidade. Algo de que carece a direita intelectual e que, afortunadamente, sobra entre os intelectuais progressistas. As suas palavras produziram, e produzem em muitos, primeiro a surpresa; depois a inquietude. Para essa inquietude não seja abatida pelo conformismo que a era visual prescreve, fazem falta mais coisas que escapam do âmbito do trabalho intelectual.
Mas mesmo quando a palavra já se transformou em corrente, a função intelectual não termina. Os movimentos sociais de protesto diante do poder - neste caso, a globalização e o neoliberalismo - devem ainda atravessar um longo caminho, não só para conseguirem os seus objectivos, mas até para se consolidarem como alternativa de organização para muitos. Enfim, é preciso reconhecer a responsabilidade particular dos intelectuais. Depende da acção destes, mais do que qualquer outra categoria, saber se o protesto se esgotará em denúncia sem perspectiva ou, ao contrário, levará à formação de novos actores sociais e, indirectamente, a novas políticas económicas e sociais (24).
O intelectual progressista debate-se continuamente entre Narciso e Prometeu. Às vezes, a imagem no espelho engana-o e começa o seu inexorável caminho de transmutação num funcionário mais do megamercado neoliberal. Mas às vezes também quebra o espelho e descobre não apenas a realidade que está por trás do reflexo, mas também outros que não são como ele e que, tal como ele, têm vindo a quebrar os seus respectivos espelhos.
A transformação de uma realidade não é tarefa de apenas um actor, por mais forte, inteligente, criativo e visionário que este possa ser. Sozinhos, nem os actores políticos e sociais, nem os intelectuais podem levar a um bom termo essa transformação. É um trabalho colectivo. E envolve não apenas acção, mas também análises da realidade e decisões sobre os rumos e ênfases do movimento de transformação.
Contam que Michelangelo Buonarroti realizou o seu "David" com sérias limitações materiais."O pedaço de mármore sobre o qual esculpiu já havia sido trabalhado por outra pessoa, já tinha perfurações. O talento do escultor consistiu em fazer uma figura que se ajustasse a estes limites intransponíveis e tão restritos, daí a postura, a inclinação da peça final" (25).
Da mesma maneira, o mundo que queremos transformar foi trabalhado anteriormente pela história e contém já muitas perfurações. Devemos descobrir o talento necessário para, a partir destes limites, transformá-lo e moldar a figura simples e sincera de um mundo novo.
Saúde para todos! Enão se esqueçam de que esta ideia é também um formão.
Das montanhas do sudeste mexicano,
Subcomandante Insurgente Marcos
PS: Alguém terá um martelo à mão?
Por Sub-comandante Marcos
"A figura do oximoro aplica-se a palavra
ou epíteto que parece contradizê-la
assim os gnósticos falarão de uma luz escura
e os alquimistas de um sol negro."
Jorge Luis Borges
ADVERTENCIA, INTRODUÇÃO E PROMESSA
Atenção: se você não leu a epígrafe, será bom que o faça agora, porque pode não perceber algumas coisas. Um facto irrefutável: a globalização está aqui. Não a qualifico já, assinalo apenas uma realidade. Porém, ainda que tal seja um oximoro, é preciso notar que se trata de uma globalização fragmentada
A globalização foi possível, entre outras coisas, por causa de duas revoluções: a tecnológica e a da informática. Foi e será dirigida pelo poder financeiro. Juntas, a tecnologia e a informática - e com elas o capital financeiro - diminuíram distâncias e romperam fronteiras. Hoje é possível ter informações sobre qualquer parte do mundo, a qualquer momento e de uma forma simultânea. Mas também o dinheiro tem agora o dom da ubiquidade, move-se de maneira vertiginosa, como se estivesse em todas as partes ao mesmo tempo. E mais, o dinheiro dá uma nova forma ao mundo, a forma de um mercado, de um megamercado.
No entanto, apesar da globalização do planeta, ou melhor, precisamente por ela, a homogeneidade está longe de ser a característica desta viragem de século e de milénio. O mundo é um arquipélago, um quebra-cabeças cujas peças se tornam outros tantos quebra-cabeças e a única coisa realmente globalizada é a proliferação do heterogêneo.
Se a tecnologia e a informática estão a unir o mundo, o poder financeiro utiliza-as como armas, como armas numa guerra. Anteriormente havíamos dito - o texto chama-se "Sete peças soltas no quebra-cabeças mundial", EZLN, 1997 - que na globalização se trava uma guerra mundial, a quarta, e que se desenvolve um processo de destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento (estou a tentar resumir apressadamente, sejam benevolentes) em todo o planeta. Para a construção da nova ordem mundial (planetária, permanente, imediata e imaterial, segundo Ignacio Ramonet), o poder financeiro conquista territórios e derruba fronteiras, e consegue-o fazendo a guerra, uma nova guerra. Uma das baixas desta guerra é o mercado nacional, base fundamental do Estado-Nacional. Este último está em vias de extinção, ou pelo menos o Estado-Nacional tradicional está-o. No seu lugar surgem mercados integrados ou, melhor, lojas de departamentos do grande shopping mundial, o mercado globalizado.
As consequências políticas e sociais desta globalização constituem um oximoro reiterado e completo: menos pessoas com mais riquezas, produzidas com a exploração de mais pessoas com menos riquezas, "a pobreza do nosso século não é comparável a nenhuma outra. Não é, como já foi alguma vez, o resultado natural da escassez, mas o conjunto de prioridades impostas pelos ricos ao resto do mundo"(1); para uns poucos de poderosos o planeta abriu-se cada vez mais; para milhões de pessoas o mundo não oferece lugar e elas vagueiam errantes de um lado para outro; o crime organizado forma a coluna vertebral dos sistemas jurídicos e dos governos (os ilegais fazem as leis e "cuidam da ordem pública", e a "integração" mundial multiplica as fronteiras).
Deste modo, se ressaltarmos algumas das principais características da época actual, diríamos: supremacia do poder financeiro, revolução tecnológica e informática, guerra, destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento, ataques aos Estados Nacionais, a consequente redefinição do poder e da política, o mercado como figura hegemónica que atravessa todos os aspectos da vida humana em todas as partes, maior concentração de riqueza em poucas mãos, maior distribuição de pobreza, aumento da exploração e do desemprego, milhões de pessoas sem tecto, delinquentes que integram o governo, desintegração de territórios. Em resumo: globalização fragmentada.
Ora bem, de acordo com isto, no caso dos intelectuais (haja em vista que têm a ver com a sociedade, o poder e o Estado) cabe perguntar: estarão eles padecendo do mesmo processo de destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento? Que papel lhes atribui o poder financeiro? Como usam (ou são usados por eles) os avanços tecnológicos e da informática? Que posição têm nessa guerra? Como se relacionam com os enfraquecidos Estados Nacionais? Qual o seu vínculo com esse poder e política? Que lugar têm no mercado? E como se posicionam frente às consequências políticas e sociais da globalização? Em suma: como se inserem nesta globalização fragmentada?
O mundo teria mudado por e para esta guerra. Se as coisas de facto são assim, os intelectuais clássicos não existiriam mais, nem suas antigas funções. Em seu lugar, uma nova geração de "cabeças pensantes" - para usar um termo criado pelo comandante zapatista Tacho - teria emergido (ou está por emergir), e preencheriam novas funções na sua actividade intelectual.
Ainda que pretendamos aqui limitar-nos aos intelectuais de direita, serão evidentes algumas observações sobre os intelectuais em geral e sobre as suas relações com o poder. Como o propósito deste texto é participar e alimentar a polémica entre os intelectuais de direita e esquerda, fica aqui uma reflexão mais profunda (sobre os intelectuais e o poder, e sobre os intelectuais e a transformação) para futuros e improváveis escritos.
Saudações, e tenha à mão o seu controle remoto. Começamos imediatamente…
I -- A GLOBALIZAÇÃO: PAY PER VIEW
Na página do calendário, o ano dois mil está entre os séculos 20 e 21. Não me parece muito importante esta contagem do tempo, mas julgo que é um momento adequando para que, por todos os lados, surjam oximoros. Para não ir muito longe, poderia dizer que esta época é o princípio do fim ou o fim do princípio de "algo". "Algo", forma irresponsável de eludir um problema. Porém já se sabe que a nossa especialidade não é a solução de problemas, mas sim a sua criação. "A sua criação?" Não, é muito presunçoso, melhor seria dizer a sua proposição. Sim, nossa especialidade é propor problemas. Tudo parece já ter acontecido antes, como num velho filme que se repete com outras imagens, outros recursos cinematográficos, incluindo actores diferentes, mas com o mesmo roteiro. Como se a modernidade (ou a "pós-modernidade", deixo a precisão para quem se dê ao trabalho) da globalização se vestisse com seu oximoro e nos presenteasse com uma modernidade arcaica, ferrugenta e antiga.
Se isto que digo lhes parece mera apreciação subjectiva, atribua isso ao facto de estarmos na montanha, resistindo e em rebeldia, mas conceda-nos o privilégio da leitura e veja se se trata de um sintoma a mais de "mal de montanha" ou se você partilha desta sensação de dejà vu que flui pelo hipercinema que é este mundo globalizado.
O mundo não é quadrado, pelo menos isso é o que nos ensinam na escola. Porém, no fio cortante da união dos milénios, o mundo também não é redondo. Ignoro qual seja a figura geométrica adequada para representar a forma actual do mundo, mas, considerando que estamos na época da comunicação digital audiovisual, poderíamos tentar defini-la como um gigantesco ecrã. Você pode agregar "um ecrã de televisão", ainda que eu prefira "um ecrã de cinema". Não apenas por preferir o cinema, mas também, e acima de tudo, porque me parece que há na nossa frente um filme, uma velha película, modernamente velha (para continuar com oximoro).
É, além disso, um desses ecrãs onde se pode programar a apresentação simultânea de várias imagens (chamam-na de picture in picture). No caso do mundo globalizado, de imagens que se sucedem em qualquer recanto do planeta. Mas ali não estão todas as imagens. E não por falta de espaço no ecrã, mas porque "alguém" seleccionou estas imagens e não outras. Quer dizer, estamos a ver um ecrã com diversos quadros que apresentam imagens simultâneas - de diferentes partes do mundo, é certo -, mas nem toda a gente está ali.
Ao chegar a este ponto, perguntamos inevitavelmente "quem tem o controlo remoto deste ecrã audiovisual? e quem faz a programação?". Boas perguntas, mas você não encontrará aqui as respostas. E não apenas porque não as temos de ciência certa, mas também porque não são o tema deste texto.
Posto que não podemos trocar de canal no cinema, vejamos alguns dos diferentes quadros que nos oferece o mega-ecrã da globalização.
Vamos ao continente americano. Lá você tem, num quadro, a imagem da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) ocupada por um grupo paramilitar do governo: a chamada Polícia Federal Preventiva. Não parece que estes homens de uniforme cinza estejam a estudar. Mais adiante, demarcada pelas montanhas do sudeste mexicano, uma coluna cinza de tanques blindados cruza uma comunidade indígena do Chiapas. Do outro lado, a imagem cinza apresenta um polícia norte-americano que detém, com uma violência requintada, um jovem num lugar que pode ser Seatlle ou Washington.
No quadro europeu proliferam também os cinzas. Na Áustria é Joer Heider e o seu fervor pró-nazi. Na Itália, com a ajuda desinteressada de D'Alema, Silvio Berlusconi ajeita a gravata. No Estado Espanhol, Felipe Gonzáles maquilha o rosto de José Maria Aznar. Na França é Le Pen quem nos sorri. A Ásia, África e Oceania apresentam a mesma cor, que se repete em cada recanto.
Humm... tantos cinzentos... Humm... nós podemos protestar... depois de tudo, eles nprometeram-nos um programa multicor... Pelo menos, aumentemos o volume. Vamos tentar entender que coisa isso é...
II. - UM ESQUECIMENTO MEMORÁVEL
Tal como a globalização fragmentada, os intelectuais estão aí, são uma realidade da sociedade moderna. E o "estar aí" deles não se limita à época actual, remontando antes aos primeiros passos da sociedade humana. Mas a arqueologia dos intelectuais escapa ao nosso conhecimento e possibilidades, e por isso partimos do facto de que "estão aí". Em todo o caso, o que nos propomos descobrir é a sua forma de "estar aí".
"Os intelectuais enquanto categoria são algo muito vago, já se sabe. Diferente, por outro lado, é definir a "função intelectual". A função intelectual consiste em determinar criticamente o que se considera uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade; e qualquer um pode desenvolvê-la, inclusive um marginal que reflicta de alguma forma sobre sua própria condição e de alguma maneira a expresse, enquanto um escritor pode traí-la por reagir aos acontecimentos com paixão, sem impor o crivo da reflexão"(2).
Se é assim, então o trabalho intelectual é, fundamentalmente, analítico e crítico. Frente a um facto social (para nos limitar a um universo), o intelectual analisa o evidente, o afirmativo e o negativo, buscando o ambíguo, o que não é nem uma coisa nem outra (embora assim se apresente) e mostra (comunica, desvenda, denuncia) não apenas o que não é evidente, mas inclusive o que se contradiz ao evidente.
É de se supor que as sociedades humanas tenham pessoas que se dediquem profissionalmente a esta análise crítica e a comunicar os seus resultados. Nas palavras de Norberto Bobbio: "Os intelectuais são todos aqueles para os quais transmitir mensagens é a ocupação habitual e consciente (...) e, falando de uma maneira que pode até parecer brutal, quase sempre representa a maneira de ganhar o pão de cada dia". Fiquemos com esta aproximação ao intelectual, ao profissional da análise crítica e da comunicação.
Já havíamos sido advertidos de que o intelectual nem sempre exerce a função intelectual. "A função intelectual exerce-se sempre com antecedência (ao que pode acontecer) ou com atraso (sobre o que já aconteceu); raramente sobre aquilo que está a acontecer, por razões de ritmo, porque os acontecimentos são sempre mais rápidos e urgentes do que a reflexão sobre os acontecimentos"(3).
Pela sua função intelectual, este profissional da análise crítica e da sua comunicação seria uma espécie de consciência incómoda e impertinente da sociedade (nesta época da sociedade globalizada) no seu conjunto e em cada uma das suas partes. Um inconformado com tudo, com as forças políticas e sociais, com o Estado, com o governo, com os meios de comunicação, com a cultura, com as artes, com a religião e mais o que o leitor quiser agregar. Se o actor social diz "aqui está", o intelectual murmura, cético: "falta", ou "sobra algo".
Teríamos então que o intelectual no seu papel é um crítico da imobilidade, um promotor da mudança, um progressista. No entanto, este comunicador de ideias críticas está inserido numa sociedade polarizada, confrontada consigo mesmo de muitas maneiras e com diferentes argumentos, mas dividida fundamentalmente entre aqueles que usam o poder para que as coisas não mudem e os que lutam pela mudança. "O intelectual deve, por um elementar sentido de ridículo, compreender que não lhe é outorgado um papel de bruxo do espírito em torno do qual vai girar o ser ou não ser histórico, mas evidentemente ele tem conhecimentos (...) que pode alinhar em um ou outro sentido histórico. Pode alinhar na busca da elucidação das injustiças presentes no mundo actual ou na cumplicidade com a paralisação e a instalação do Limbo"(4).
E é aqui que o intelectual opta, elege, escolhe entre sua função intelectual e a função que lhe propõem os actores sociais. Aparece assim a divisão (e a luta) entre intelectuais progressistas e reaccionários. Ambos seguem trabalhando com a comunicação de análise crítica, mas enquanto os progressistas continuam na crítica da imobilidade, da permanência, da hegemonia e do homogéneo; os reaccionários desenvolvem a crítica à mudança, ao movimento, à rebelião e à diversidade. O intelectual reaccionário "esquece" a sua função intelectual, renuncia à reflexão crítica e a sua memória opera de modo que não exista passado ou futuro. O presente e o imediato são o único tempo possível e, por isso, inquestionável.
Ao dizer "intelectuais progressistas e reaccionários" referimo-nos aos intelectuais "de esquerda e de direita". Aqui convém lembrar que o intelectual de esquerda exerce a sua função intelectual, ou seja, a sua análise crítica também frente à esquerda (social, partidária, ideológica), mas na época actual a sua crítica é fundamentalmente dirigida ao poder hegemónico: o dos senhores do dinheiro e quem os representa no campo da política e das ideias.
Deixemos agora os intelectuais progressistas e de esquerda, e vamos aos intelectuais reaccionários, a direita intelectual.
III -- O PRAGMATISMO INTELECTUAL
No princípio os gigantes intelectuais de direita foram progressistas. Falo dos grandes intelectuais de direita, os "think tanks" da reacção, não dos anões que foram ingressando nos seus clubes "pensantes". Octavio Paz, excelente poeta e ensaísta, o maior intelectual de direita dos últimos anos no México, declarou: "Venho do pensamento chamado de esquerda. Foi algo muito importante na minha formação. Não sei agora...a única coisa que sei é que meu diálogo - às vezes minha discussão - é com eles (os intelectuais de esquerda). Não tenho muito para falar com os outros"(5). Casos como o de Paz repetem-se no mega-ecrã global.
O intelectual progressista, enquanto comunicador de análise crítica, converte-se em objecto e objectivo para o poder dominante. Objecto a comprar e objectivo a destruir. Enormes recursos são mobilizados para as duas coisas. O intelectual progressista "nasce" no meio deste ambiente de sedução persecutória. Alguns resistem e defendem-se (quase sempre sozinhos, a solidariedade entre grupos não parece ser a característica do intelectual progressista), mas outros, talvez fatigados, vasculham a sua bagagem de ideias e escolhem as que são ao mesmo tempo crítica e razão para legitimar o poder. O novo exige muito, o velho está aí, sendo que basta usar o argumento de "inevitável" para que lhe ofereçam uma cómoda poltrona (às vezes em forma de bolsa de estudos, posição, prémio, espaço) por conta do Príncipe antes tão criticado.
"O inevitável" tem nome hoje: globalização fragmentada, pensamento único -- isto é, "a tradução em termos ideológicos e com pretensão universal dos interesses de um conjunto de forças económicas, em particular as do capital internacional" (6). Fim da história, omnipresença e omnipotência do dinheiro, substituição da política pela polícia, o presente como único futuro possível, racionalização da desigualdade social, justificação da sobre-exploração dos seres humanos e dos recursos naturais, racismo, intolerância, guerra.
Numa época marcada por dois novos paradigmas, comunicação e mercado, o intelectual de direita (e o ex-esquerda) entende que ser "moderno" significa seguir o slogan: adaptam-se ou percam os vossos lugares privilegiados!
Não é necessário sequer ser original, o intelectual de direita já tem o canteiro de onde haverá de tirar as pedras que adornem a globalização fragmentada: o pensamento único. A assepsia não importa muito, o pensamento único tem suas principais "fontes" no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional, na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, na Organização Mundial do Comércio, na Comissão Europeia, no Bundesbank, no Banco de França "que, mediante o seu financiamento, alinham ao serviço dos seus ideais, em todo o planeta, numerosos centros de investigação, universidades e fundações, os quais, por sua vez,anunciam e difundem a boa nova".(7)
Com tal abundância de recursos, é fácil que floresçam elites que há muitos anos, se empenham a fundo em fazer o elogio do "pensamento único"; que exercem uma verdadeira chantagem contra toda a reflexão crítica em nome da "modernização", do "realismo", da "responsabilidade" e da "razão"; que afirmam o "caráter inevitável" da actual evolução das coisas; que propõem a capitulação intelectual, que condenam à escuridão irracional todos aqueles que se negam as aceitar que "o estado natural da sociedade é o mercado".(8)
Longe da reflexão, do pensamento crítico, os intelectuais de direita tornam-se pragmáticos por excelência, exilados da função intelectual e transformados em ecos, mais ou menos estilizados, dos spots publicitários que inundam o megamercado da globalização fragmentada.
Refuncionalizados na globalização fragmentada, os intelectuais de direita modificam o seu ser e adquirem novas "virtudes" (entre elas reaparece o oximoro): uma audaz cobardia e uma profunda banalidade. Ambas brilham em suas "análises" do presente globalizado e das suas contradições, das suas revisões do passado histórico, das suas clarividências. Podem dar-se ao luxo da audaz cobardia e da profunda banalidade, já que a hegemonia universal quase absoluta do dinheiro protege-os com torres de vidro blindado.
Por isso, a direita intelectual é particularmente sectária e tem, além disso, o respaldo de não poucos meios de comunicação e governos. Ingressar nessas altas torres intelectuais não é fácil, é preciso renunciar à imaginação crítica e autocrítica, à inteligência, à argumentação, à reflexão, e optar pela nova teologia: a teologia liberal.
Posto que a globalização se vende como o melhor dos mundos possíveis, mas carece de exemplos concretos de vantagens para a humanidade, é preciso recorrer à tecnologia e substituir com dogmas e fé neoliberal a falta de argumentos. O papel do teólogo neoliberal inclui denunciar e perseguir os "hereges", os "mensageiros do mal", ou seja, os intelectuais de esquerda. E que melhor forma de combater os críticos do que acusá-los de "messianismo"?
Frente ao intelectual de esquerda, o de direita impõe o rótulo lapidar de "messianismo tresloucado". Quem pode questionar um presente pleno de liberdades, onde qualquer um pode decidir o que comprar, sejam artigos de primeira necessidade, ideologias, propostas políticas ou comportamentos para qualquer ocasião?
Mas o paradoxo não perdoa. Se em algum lado há messianismo, é na direita intelectual. "O Grande Circo de Intelectuais Neoliberais Quimicamente Puros ou Ex Marxistas Arrependidos ou a Trilateral pode ser messiânico quando pressagia a fatalidade de um universo baseado em uma verdade única, o mercado único e o exército -- gendarme único vigiando o brilho do flash que regista a foto final da História, disparado ante as melhores paisagens das melhores sociedades abertas." (9)
A foto final. O cenário culminante do filme da globalização.
IV- OS CLARIVIDENTES CEGOS
Parafraseando Régis Debray, o problema aqui não é porque ou como a globalização é irremediável, mas sim porque ou como toda gente, ou quase toda a gente, acredita que ela seja irremediável. Uma resposta possível: "A tecnologia do fazer-crer (...) O poder da informação.. . Inf-formar:dar forma, formatar. Con-formar: dar conformidade. Trans-formar: modificar uma situação".(10)
Com a globalização da economia, globaliza-se também a cultura. E a informação. Normal, portanto, que as grandes empresas de comunicação "estendam" sobre o mundo inteiro a sua rede eletrónica sem que nada nem ninguém as impeça. "Nem Ted Turner, da CNN; nem Rupert Murdoch, da News Corporation Limited; nem Bill Gates, da Microsoft; nem Jeffrey Vinik, da Fidelity Investments; nem Larry Rong, do China Trust and International Investment; nem Robert Allen, de ATT; assim como George Soros ou dezenas de outros novos amos do mundo, submeteram jamais os seus projectos ao sufrágio universal".(11)
Na globalização fragmentada, as sociedades são fundamentalmente sociedades mediáticas. Os media são o grande espelho, não do que uma sociedade é, mas do que deve aparentar. Plena de tautologias e evidências, a sociedade mediática é avara em razões e argumentos. Aqui, repetir é demonstrar.
E o que se repete são as imagens, como estes cinzas que nos mostra agora o grande ecrã globalizado. Debray disse-nos: A equação da era visual é alguma coisa como: o visível = o real = o verdadeiro. Eis aqui a idolatria revisitada (e sem dúvida redefinida)" (12). Os intelectuais de direita têm aprendido bem a sua lição. Mais, esse é mesmo um dos dogmas da sua teologia.
Onde se deu o salto que iguala o visível ao verdadeiro? Truques do ecrã globalizado.
O mundo inteiro, melhor ainda, o conhecimento inteiro está à mão de qualquer um com uma televisão ou um computador portátil. Sim, mas não qualquer mundo e não qualquer conhecimento. Debray explica que o centro de gravidade das informações foi deslocado do escrito para o audiovisual, do signo para a imagem. As vantagens para os intelectuais de direita (e as desvantagens para os progressistas) são óbvias.
Analisando o comportamento da informação na França durante a guerra do Golfo Pérsico, revela-se o poder das mídias: no começo do conflito, 70% dos franceses mostravam-se hostis à guerra; no final, a mesma percentagem aprovava-a. Sob o bombardeio dos media, a opinião pública francesa "mudou" e o governo obteve vantagens pela sua participação bélica.
Estamos na "era visual". Assim, as informações apresentam-se na evidência de sua imediatez, portanto é real o que nos é mostrado, portanto é verdadeiro o que vemos. Não há lugar para a reflexão intelectual crítica, no máximo há espaço para comentaristas que "completem" a leitura da imagem. O visual desta era não foi feito para ser visto, mas para oferecer "conhecimento". O mundo tornou-se uma mera representação multimédia, que omite o mundo exterior, capaz de ser conhecida na mesma medida em que é vista. Sim, indícios do terceiro milénio, século XXI, enquanto a filosofia flutuante em nosso mundo "moderno" é o idealismo absoluto.
Já se podem tirar algumas conclusões: o novo intelectual de direita tem que desempenhar a sua função legitimadora na era visual; optar pelo directo e imediato; passar do signo à imagem e da reflexão ao comentário televisivo. Nem sequer tem que se esforçar para legitimar um sistema totalitário, brutal, genocida, racista, intolerante e excludente. O mundo que é objecto da sua "função intelectual" é o apresentado pelos meios de comunicação: uma representação virtual. Se no hipermercado da globalização o Estado-Nacional se redefine como uma empresa, mais, os governantes como gerentes de vendas e os exércitos e polícias em agências de vigilância, então a direita intelectual faz o papel de relações públicas.
Por outras palavras, na globalização, os intelectuais de direita são "multiuso", coveiros da análise crítica e da reflexão, ilusionistas nas rodas de moinho da teologia neoliberal, "pontos" de governos que esqueceram o "script", comentaristas do evidente, instigadores de soldados e polícias, juizes gnósticos que separam em rótulos de "verdadeiro" e "falso" o que lhes convêm. Guarda-costas teóricos do Príncipe, e anunciadores da "nova história".
V- O FUTURO PASSADO
"Queimar livros e erguer fortificações é tarefa comum dos príncipes", disse Jorge Luis Borges. E acrescenta que todo o príncipe quer que a história comece a partir dele. Na era da globalização fragmentada não se queimam livros (embora se ergam fortificações), eles apenas são substituídos. Mesmo desta maneira, mais que suprimir a história, o príncipe neoliberal instrui seus intelectuais para que a refaçam de maneira que o presente seja o fim dos tempos.
"Os Maquilhadores da História", assim Luis Hernández Navarro intitulou um artigo dedicado ao debate com os intelectuais de direita no México (13). Além de provocar o presente texto (escrito com a intenção de dar seguimento às suas posições), Hernández Navarro adverte sobre uma nova ofensiva: a nova direita intelectual dirige suas baterias contra figuras representativas da intelectualidade progressista mexicana. "Rentista tardia da tranquilidade planetária do "pensamento único", renegada de sua identidade, herdeira de papel passado da queda do muro de Berlim, sócia e emuladora do circuito cultural conservador norte-americano, esta direita está convencida de que a crítica cultural outorga credenciais suficientes para emitir, sem argumentação, juízos sumários sobre os seus adversários no terreno político".
As razões não-ideológicas deste ataque devem ser buscadas na disputa pelo espaço de credibilidade. No México os intelectuais de esquerda têm grande influência na cultura e na universidade. Estorvam, é esse o seu delito.
Ou melhor, este é um de seus delitos. Outro é o apoio destes intelectuais progressistas à luta zapatista por uma paz justa e digna, pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e pelo fim da guerra contra os índios do país. Este pecado não é menor. "O levantamento zapatista inaugura uma nova etapa, a do começo dos movimentos indígenas como actores da oposição à globalização neoliberal" (14). Não somos os melhores nem os únicos: aí estão os indígenas do Equador e do Chile, os protestos em Seattle e Washington (e os que se sigam em ordem cronológica, não em importância). Mas somos uma das imagens que distorcem a mega-ecrã da globalização fragmentada e, como fenómeno social e histórico, demandamos reflexão e análise crítica.
E a reflexão e a análise crítica não estão no "arsenal" da direita intelectual. Como cantar as glórias da nova ordem mundial (e sua imposição no México) se um grupo de indígenas "pré-modernos" não apenas desafia o poder, mas também conquista a simpatia de uma importante faixa dos intelectuais? Em consequência, o Príncipe ditou as suas ordens: "ataquem uns e outros, eu entro com o exército e os meios de comunicação, vocês, com as ideias". Assim a nova direita intelectual dedicou zombarias e calúnias aos seus pares da esquerda. Aos indígenas rebeldes zapatistas, dedicou-nos...uma nova história.
E, enquanto o zapatismo teve impacto internacional, a direita intelectual, em várias partes do mundo (não apenas no México), dedicou-se a esta tarefa. Os intelectuais de direita não apenas maquilham a história, refazem-na, reescrevem-na com a conveniência do Príncipe e à maneira de sua função intelectual.
Mas voltemos ao México. "Ao longo deste século, os intelectuais no México têm desempenhado funções diversas: cortesãos de luxo do poder de turno, decoração do Estado, vozes dissidentes (que, para se institucionalizarem são chamadas de Consciências Críticas), intérpretes privilegiados da história e da sociedade, espectáculos em si mesmos"(15).
O último grande intelectual de direita no México, Octavio Paz, cumpriu cabalmente o trabalho encomendado pelo Príncipe. Não economizou palavras para desprestigiar os zapatistas e quem mostrasse simpatia por sua causa (atenção: não pela sua forma de luta). Uma das melhores mostras de Paz ao serviço do Príncipe está nos seus textos e declarações do início de 1994. Ali, Octavio Paz definia não o EZLN, mas sim os argumentos sobre os quais os seus soldados intelectuais deveriam aprofundar: maoísmo, messianismo, fundamentalismo, e alguns outros "ismos" mais que agora me escapam à memória. Frente aos intelectuais progressistas, Paz não economizou acusações: eles eram responsáveis pelo "clima de violência" que marcou o ano de 1994 (e todos os anos do México moderno, mas a direita intelectual nunca brilhou pela sua memória histórica). Concretamente, pelo assassinato do candidato oficial à presidência da Republica, Colosio. Anos depois, antes de morrer, Paz retificaria e assinalaria que o sistema estava em crise e que, mesmo sem o levante zapatista, estes fatos ocorreriam de qualquer forma(16).
Nenhum dos actuais herdeiros de Paz têm a sua estatura, mesmo que não lhes falte ambição para ocupar o seu lugar. Não como intelectuais, pois falta-lhes inteligência e brilho, mas pelo lugar privilegiado que ocupou ao lado do Príncipe. Ainda assim, travam o seu combate. E seguem empenhados em criar, para o zapatismo, uma história que lhes seja cómoda - não apenas para atacá-lo, mas sim, sobretudo, para evitar a análise crítica e uma reflexão séria e responsável.
Mas os intelectuais de direita não reescrevem apenas a história do zapatismo e dos povos índios. A história inteira do México vem sendo refeita para demonstrar que estamos, agora, no melhor dos Méxicos possíveis. É dessa maneira que os anões da direita intelectual revêem o passado e nos vendem uma nova imagem de Porfírio Díaz, de Santa Ana, de Calleja, de Cárdenas.
Mas esta ânsia de reescrever a história não é exclusiva do México. No ecrã da globalização, já nos é oferecida uma nova versão, onde o Holocausto nazi contra os judeus foi uma espécie de Disneylândia selectiva, Adolf Hitler uma espécie de alegre Mickey Mouse ariano e, mais recentemente, as guerras do Golfo Pérsico e de Kosovo como "humanitárias". No futuro passado que nos prepara a direita intelectual, a globalização é o deus ex machina que trabalha sobre o mundo para preparar o seu próprio advento.
Mas, essas imagens cinzentas que nos mostra agora o mega-ecrã da globalização, que futuro anunciam?
VI- O LIBERAL FASCISTA
Eu afirmo que este filme já foi visto antes, e se não nos lembramos é porque a história não é um artigo atraente no mercado globalizado. Esses cinzas podem significar algo: a reaparição do fascismo.
Paranóia? Umberto Eco, num texto chamado "O fascismo eterno", de obra já citada, dá algumas chaves para entender que o fascismo permanece latente na sociedade moderna e que, ainda que seja pouco provável que se repitam os campos de extermínio nazis, alguns lugares do planeta assistem ao que se chama "Ur Fascismo". Depois de advertir que o fascismo era um totalitarismo fuzzy, ou seja, disperso, difuso em todo o social, propõe algumas de suas características: rejeição ao avanço do saber, irracionalismo, a cultura suspeita de fomentar atitudes críticas, o que não está de acordo com o hegemónico é uma traição, medo da diferença e racismo, aparecimento da frustração individual ou social, xenofobia, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais, a vida como uma guerra permanente, elitismo aristocrático, sacrifício individual para o benefício da causa, machismo, populismo qualitativo difundido pela televisão, "neolinguagem" (de léxicos pobres e de sintaxe elementar).
Todas estas características podem ser encontradas nos valores que defendem e difundem os media e os intelectuais de direita na era visual, na era da globalização fragmentada. "Será que hoje, assim como ontem, não se está a usar o cansaço democrático, a náusea diante do nada, o desconcerto perante a desordem como aval para uma nova situação histórica de excepção que requer um novo autoritarismo persuasivo, unificador da cidadania dos clientes e dos consumidores de um sistema, um mercado, uma repressão centralizada?", pergunta Manuel Vázquez Montalbán na já citada obra.
Olhe para o mega-ecrã: todos esses cinzentos são a resposta à desordem. É o que é necessário para enfrentar quem se nega a desfrutar o mundo virtual da globalização e resiste. E, no entanto, parece que o número de descontentes cresce. Um dos anões mexicanos que aspiram a ocupar a cadeira deixada por Octavio Paz constatava, aterrorizado, que numa pesquisa feita no México em 1994, pelo Instituto de Investigações Sociais da UNAM, 29% dos entrevistados dizia que as leis não devem ser obedecidas se injustas. Em Novembro de 1999, para 49% das pessoas pesquisadas na revista "Educación 2001", a resposta à pergunta "pode o povo desobedecer as leis se elas parecem injustas?" era sim. Depois de reconhecer que é preciso resolver problemas de crescimento económico, educação, emprego e saúde, assinalava o autor: "Todas estes coisas só podem ser alcançadas se a sociedade se encontrar segura no nível mais básico, que é o da segurança pública e do cumprimento da lei. Este piso está cheio de buracos no México, e tende a piorar"(17). O raciocínio é sintomático: na falta de legitimidade e consenso, polícia!
O clamor da direita intelectual por "ordem e legalidade" não é um exclusivo do México. Na França, o fascista Le Pen está disposto a responder à chamada. Na Áustria, o neonazi Heider já está pronto, assim como o franquista Aznar no Estado Espanhol. Na Itália, Berlusconi (aliás, o "Duce Multimedia") e Gianfranco Fini preparam-se para o momento.
A Europa comparece novamente ao balcão do fascismo? Soa duro...e distante. Mas aí estão as imagens da mega-ecrã. Estes skinheads que mostram seus cacetes na esquina: estão na Alemanha, na Inglaterra, na Holanda? "São minoritários e estão sob controlo", tranquiliza-nos o áudio da mega-ecrã. Mas parece que o fascismo renovado nem sempre tem a cabeça rapada e o corpo tatuado com suásticas. Mesmo assim não deixa de ser uma direita sinistra.
Se digo "direita sinistra" pode parecer que jogo com as palavras e recorro novamente a oximoro, mas quero chamar atenção sobre algo. Depois da queda do murro de Berlim, o espectro político europeu, na sua maioria correu desordenadamente para o centro. Isso é evidente na esquerda tradicional europeia, mas também nos partidos de direita (18). Com uma máscara moderna, a direita fascista começa a conquistar espaço que já ultrapassa muito as notas policiais nos media. Tal apenas é possível porque estão a esforçar-se por construir uma nova imagem, distante do passado violento e autoritário.
Também por estarem a apropriar-se da teologia neoliberal com uma facilidade espantosa (por algo será), e porque nas suas campanhas eleitorais têm vindo a insisitir muito em temas de segurança pública e emprego (alertando contra a "ameaça" dos imigrantes). Alguma diferença das propostas da social-democracia ou da esquerda tradicional?
O fascismo espreita por trás da "terceira via" europeia, e também da esquerda que não se define (em teoria e prática) contra o neoliberalismo. Às vezes, a direita pode vestir-se com os trapos da esquerda. No México, no recente debate televisivo entre os seis candidatos à presidência da República, o candidato que obteve consenso da direita intelectual foi Gilberto Rincón Gallardo, do Partido Democrata Social, aparentemente de esquerda. Por acaso a televisão não mostrou que alguns dos militantes e candidatos do PDS em Chiapas são líderes de vários grupos paramilitares, responsáveis, entre outras coisas, pelo massacre de Acteal.
Que a direita fascista e a nova direita intelectual estejam prontas para mostrar as suas habilidades aos senhores do dinheiro não surpreende. O desconcertante é que, algumas vezes, são a social-democracia ou a esquerda institucional quem lhes prepara o caminho.
Se no Estado Espanhol, Felipe González (este político tão aplaudido pela direita intelectual) trabalhou para a vitória do direitista Partido Popular de José María Aznar, na Itália, o caminho pelo qual a direita se dirige ao poder chama-se Massimo D'Alema. Antes de renunciar, D'Alema fez todo o necessário para que a esquerda naufragasse. "D'Alema e os seus financiaram com o dinheiro de todos a educação religiosa e prepararam a privatização da educação pública, participaram plenamente da aventura da NATO contra a Jugoslávia e da ocupação virtual da Albânia, privatizaram o que puderam, atentaram contra os aposentados, reprimiram os imigrantes, submeteram-se a Washington, reabilitaram os corruptos e até mesmo a Bettino Craxi, em cuja residência no exílio, como fugitivo da justiça, desfilaram para pedir-lhe ajuda, redigiram uma lei sobre os carabineros ditada pelo comando golpista dos mesmos..." (19). Resultado? Boa parte do eleitorado de esquerda absteve-se de votar.
Na complicada geometria política europeia, a chamada "terceira via" não apenas tem resultado letal para a esquerda, mas também tem sido o ponto de partida do neofascismo.
Talvez esteja exagerando, mas "a memória é uma faculdade estranha. Quanto mais intenso e isolado é o estímulo que a memória recebe, mais lembra-se; quanto mais amplo, menos intensa é a lembrança0"(20), e eu suspeito que esta avalanche de imagens cinzentas no ecrã é para que lembremos com menos intensidade, com preguiça, desejando esquecer.
E se os livros não mentem (ver Umberto Eco, em obra citada), foi o fascismo italiano que chamou muitos líderes liberais europeus porque considerava que estavam levando a cabo interessantes reformas sociais, e poderiam ser uma alternativa à "ameaça comunista".
Em Agosto de 1997, Fausto Bertinotti, secretario do Partido de Refundação Comunista italiano, escreveu numa carta ao EZLN: "Está aberta, na Europa, uma verdadeira crise de civilização. Poderíamos, infelizmente, narrar centenas, milhares de episódios de barbárie quotidiana, de violência gratuita, de agressão a pessoas, ao corpo, de tráfico de pessoas, de corpos, de órgãos, sem nenhum sentido. E acima de tudo, com uma grossa capa de indiferença, como se a vida tivesse perdido o sentido. Poderia contar coisas que acontecem na periferia urbana, realidade e metáfora da tragédia humana em que se transformou este novo ciclo de desenvolvimento capitalista".
Diante desta vida sem sentido, o liberal fascista oferece sua cara amável e argumenta, vincando as suas bondades, em favor do recurso à violência legalizada, institucional.
O horizonte anuncia a tempestade, e a direita intelectual trata de tranquilizar-nos dizendo que não é mais do que uma chuva, sem importância. Tudo para garantir o pão, o sal... e o seu lugar junto ao Príncipe. Protegei-o! Não importa que a sua camisa seja cinzenta e que no seu aconchegante seio se cultive o ovo da serpente.
"O ovo da serpente". Sim, se não me engano, é o título de um filme de Bergman que descreve o ambiente em que se gerou o fascismo. E o que fazer? Continuarmos sentados até que termine o filme? Sim? Não? Um momento! Muitos já levantaram de seus lugares e fazem barulho! O burburinho aumenta! Alguns atiram objectos ao ecrã e vaiam! Em vez de se dirigirem ao ecrã, olham para cima! Como se quisessem encontrar o projeccionista do filme! E parece que o encontraram pois apontam insistentemente para um lugar situado lá no alto! Quem são essas pessoas e com que direito interrompem a projecção? Uma delas levanta uma faixa que diz: "Tomemos então nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicamos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres." (21) O dever de nossos deveres? Que alguém explique, porque não percebemos! Silêncio! Alguém toma então a palavra...
VII- A CÉPTICA ESPERANÇA
Os intelectuais progressistas. Os de esperança céptica. O sociólogo francês Alain Touraine propõe uma classificação (22): o mais clássico é o intelectual que denuncia, onde toda a atenção se concentra sobre a crítica ao sistema dominante; o segundo tipo identifica-se com tal luta ou tal força de oposição e torna-se o seu intelectual orgânico; o terceiro acredita na existência, na consciência e na eficácia dos actores, ao mesmo tempo em que conhece os seus limites; o quarto são os utópicos: identificam-se com as novas tendências culturais, da sociedade ou da existência pessoal. Todos eles - e elas, pois ser intelectual não é privilégio masculino - empenham os seus esforços em entender, criticamente, a sociedade, a sua história e o seu presente, e tratam de desentranhar a incógnita do seu futuro.
Não é nada fácil a vida dos pensadores progressistas. Na sua função intelectual dão-se conta de como vão as coisas e, noblesse oblige, devem revelá-lo, exibi-lo, denunciá-lo, comunicá-lo. Mas para fazê-lo, precisam enfrentar a teologia neoliberal da direita intelectual, e por trás dela estão os media, os bancos, as grandes corporações, os Estados (ou o que resta deles), os governos, os exércitos, as forças policiais.
E devem fazê-lo, além disso, na era visual. Aqui estão em franca desvantagem, pois é preciso levar em conta as grandes dificuldades que implica enfrentar o poder da imagem unicamente com o recuso da palavra. Mas o seu cepticismo frente às aparências já lhes permitiu descobrir a trama. E com o mesmo cepticismo estruturam as suas análises críticas para desestruturar conceptualmente a máquina das belezas virtuais e as misérias reais. Existe esperança?
Fazer da palavra bisturi e megafone é um desafio descomunal. E não apenas porque nesta época o reino é o da imagem. Também porque o despotismo da era visual confinou a palavra nos bordéis e nas barracas de truques e porcarias. "Ainda assim, só podemos confessar a nossa confusão e a nossa impotência, a nossa ira e as nossas opiniões, com palavras. Com palavras, nomeamos ainda as nossas perdas e as nossas resistências porque não temos outro recurso, porque os homens estão inevitavelmente abertos à palavra e porque, pouco a pouco, são elas que moldam o nosso julgamento. O nosso julgamento, muito temido pelos detentores do poder, molda-se lentamente, como o leito de um rio, por meio de correntes de palavras. Mas as palavras só formam correntes quando elas são profundamente credíveis" (23).
Credibilidade. Algo de que carece a direita intelectual e que, afortunadamente, sobra entre os intelectuais progressistas. As suas palavras produziram, e produzem em muitos, primeiro a surpresa; depois a inquietude. Para essa inquietude não seja abatida pelo conformismo que a era visual prescreve, fazem falta mais coisas que escapam do âmbito do trabalho intelectual.
Mas mesmo quando a palavra já se transformou em corrente, a função intelectual não termina. Os movimentos sociais de protesto diante do poder - neste caso, a globalização e o neoliberalismo - devem ainda atravessar um longo caminho, não só para conseguirem os seus objectivos, mas até para se consolidarem como alternativa de organização para muitos. Enfim, é preciso reconhecer a responsabilidade particular dos intelectuais. Depende da acção destes, mais do que qualquer outra categoria, saber se o protesto se esgotará em denúncia sem perspectiva ou, ao contrário, levará à formação de novos actores sociais e, indirectamente, a novas políticas económicas e sociais (24).
O intelectual progressista debate-se continuamente entre Narciso e Prometeu. Às vezes, a imagem no espelho engana-o e começa o seu inexorável caminho de transmutação num funcionário mais do megamercado neoliberal. Mas às vezes também quebra o espelho e descobre não apenas a realidade que está por trás do reflexo, mas também outros que não são como ele e que, tal como ele, têm vindo a quebrar os seus respectivos espelhos.
A transformação de uma realidade não é tarefa de apenas um actor, por mais forte, inteligente, criativo e visionário que este possa ser. Sozinhos, nem os actores políticos e sociais, nem os intelectuais podem levar a um bom termo essa transformação. É um trabalho colectivo. E envolve não apenas acção, mas também análises da realidade e decisões sobre os rumos e ênfases do movimento de transformação.
Contam que Michelangelo Buonarroti realizou o seu "David" com sérias limitações materiais."O pedaço de mármore sobre o qual esculpiu já havia sido trabalhado por outra pessoa, já tinha perfurações. O talento do escultor consistiu em fazer uma figura que se ajustasse a estes limites intransponíveis e tão restritos, daí a postura, a inclinação da peça final" (25).
Da mesma maneira, o mundo que queremos transformar foi trabalhado anteriormente pela história e contém já muitas perfurações. Devemos descobrir o talento necessário para, a partir destes limites, transformá-lo e moldar a figura simples e sincera de um mundo novo.
Saúde para todos! Enão se esqueçam de que esta ideia é também um formão.
Das montanhas do sudeste mexicano,
Subcomandante Insurgente Marcos
PS: Alguém terá um martelo à mão?
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