AERONAVES MILITARES SOBREVOAM OAXACA; CHEGAM AGENTES DA PFP
Espanto na capital do estado perante a iminência de uma intervenção policial AERONAVES MILITARES SOBREVOAM OAXACA; CHEGAM AGENTES DA PFP A APPO exige a Carlos Abascal Carranza manifestar que não haverá pressão na entidade. Chamam aos partidários do movimento professoral e popular para evitar possíveis provocações HERMANN BELLINGHAUSEN ENVIADO Oaxaca, Oax., 30 de setembro. Na tarde deste sábado foram realizados intensos sobrevôos de helicópteros e aviões militares e da Polícia Federal Preventiva (PFP) nesta cidade, com isto as autoridades do país confirmaram sua decisão de intervir com a força pública pela primeira vez desde que se iniciou o conflito na entidade. A operação aérea foi vista por toda a população como uma mensagem de advertência e dissuasão, ainda também significou vôos de reconhecimento na preparação de uma possível intervenção direta da força pública federal contra o movimento professoral e popular. No encerramento desta edição circulavam versões contraditórias de que na madrugada se efetuaria o anunciado despejo, mesmo que as declarações oficiais negavam o fato. A cidade de Oaxaca era toda ela uma só e imensa barricada e a população se encontrava em alerta. Tudo começou as 16:40 horas, quando quatro grandes helicópteros militares iniciaram sobrevôos no centro histórico de Oaxaca de maneira muito ostentosa. Sendo sábado pela tarde, nos comércios e nas ruas se encontravam milhares de pessoas, que de imediato se congregaram nos passeios para observar as aeronaves, que passavam a baixa altitude. Os vôos se prolongaram por mais de 20 minutos e se estenderam às periferias da cidade, sobrevoando todos os plantões do movimento professoral e popular. Mais de um cento de pessoas iniciaram uma manifestação espontânea em torno ao mercado, repetindo as consignas: "Já caiu, já caiu, Ulisses já caiu" e "queira e não queira, Ulisses vai pa' fora". Em poucos minutos, a que parecia uma tarde tranqüila tornou-se inquieta. Temor e ira Os numerosos pedestres e turistas mostravam susto; os plantonistas e seus simpatizantes, raiva. Desde as imediações do mercado chegaram grupos de comerciantes que têm participado nas mobilizações. Levavam paus, canos e cabos de madeira dos que se usam para os machados. Os guardiões da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) lançaram foguetes de alerta e se generalizou a idéia de que a intervenção policial tão anunciada poderia ocorrer em questão de horas. Nessa praça se congregaram simpatizantes da APPO e parte da direção provisional, assim como dúzias de trabalhadores dos médios de comunicação. A as 17:15 horas, Flavio Sosa Villavicencio, um dos dirigentes mais visíveis da APPO, teve uma breve e agitada conversação telefônica com Francisco Yáñez, o funcionário do Governo encarregado da negociação em Oaxaca, a quem demandou que o secretario Carlos Abascal "manifeste que não haverá intervenção policial na cidade". Sosa advertiu ao também diretor general adjunto da Unidade para a Atenção das Organizações Sociais de Governo: "Não exacerbem-nos. Vão encher de sangue as mãos de Vicente Fox". Os primeiros sobrevôos duraram mais de 20 minutos, no que foi interpretado pela APPO como uma medida de amedrontamento e uma manobra de exploração e posicionamento. Estas grandes aeronaves militares solem irem equipadas com equipo fotográfico de precisão e de captação infravermelha. Nesses momentos confirmou-se a presença de no mínimo outros quatro helicópteros no aeroporto da cidade, assim como a aterrissagem de uma nave Hércules, presumivelmente com elementos da PFP. Mais tarde se iniciaram também vôos de naves militares, até entrada a noite. O inefável secretario da Proteção Cidadã, Lino Zelaya Luría, declarou aos médios que não haveria nenhum operativo por agora, que se tratava de ações "de reconhecimento". Também se viram os "Hércules" sobre o nítido céu da tarde. Uma testemunha afirmou ter escutado "de funcionários estatais" dizer que é somente "o começo de uma onda", e que seguiriam chegando mais efetivos da PFP e as forças armadas. Radio A Lei do Povo, única difusora a cargo da APPO que segue ao ar, difunde instruções para a população em geral e os seguidores do movimento professoral e popular. Chamou a não realizar "ações isoladas, não tomar veículos nem prédios e não apresar a instalação de barricadas", senão esperar a noite, como é costume. Também se insistiu na "posição pacífica" da assembléia popular e em evitar possíveis provocações de "porros" e grupos de choque. Umas 200 pessoas congregadas perto do quiosque do centro gritavam consignas. Um ancião perguntou: "¿Quem diz medo?", e a resposta coletiva foi: "Ninguém". Escutaram-se repetidamente as rimas habituais contra Ulisses Ruiz, e uma nova muito comemorada: "Se não há solução / cairá Calderón". Era notável a presença de mulheres em grupos: mestras da seção 22 do sindicato do professores e da heróica Comissão de Mulheres Oaxaquenhas, e também crianças e anciãos. Sucediam-se os "viva a greve", "aqui esperamos pelas PFP", "que sobe, que desce, Oaxaca não merece". Carmen, uma docente que já penteia cabelos brancos, comentou ao repórter com melancólica determinação: "Aqui estamos. O que tem que ser, será". Nos plantões e acampadas se multiplicaram as reuniões informativas, em especial do magistério. Excepcionalmente, a radio A Lei transmitiu uma curiosa e muito boa versão tropical de "We can work it out", dos Beatles. É a primeira vez que a estação programa alguma peça em inglês: "Life is very short" e "there's no time for fussing and fighting". Uns garotos praticavam, essa tarde, arriscadas sortes de monopatins nas ladeiras da igreja do Carmen Alto quando passou a baixa altura um avião de reconhecimento. Perto deles um indígena ascendeu um grande foguete e "disparou-o" contra a aeronave. Os patins se detiveram para observar a trajetória do foguetão. E ainda quando, obviamente, não atingiu o alvo, aplaudiram alegremente. Na madrugada deste sábado um grupo de guardiões, muito jovens, nas imediações da emudecida Radio APPO, comentava: "Já tínhamos prontas umas grades de "cocas" para nos proteger dos gases da polícia, mas como passaram os dias e não chegavam, nós bebemos todas". Chega a Oaxaca a PFP, cujas forças de elite, fundamentais para a intervenção, provêm da Terceira Brigada da Polícia Militar e do Grupo de Operações Especiais da Armada, que constituem, respectivamente, as Forças Federais de Apoio, e as Forças Federais Preventivas da PFP. Se trata de tropas treinadas para enfrentar conflitos urbanos e semi-urbanos, e se supõe que não são precisamente de combate. Seja como for, o ambiente nas ruas é quase de guerra, sem eufemismos. A "comuna de Oaxaca" enfrenta sua hora decisiva, no conflito social mais grave da historia moderna do estado. http://www.jornada.unam.mx/2006/10/01/003n1pol.php
Entrevista sobre uma pesquisa do zapatismo
Um cientista político dentro do movimento Zapatista.
Entrevista especial com Guilherme Gitahy de Figueiredo.
O professor, antropólogo e cientista político Guilherme Gitahy de Figueiredo partiu para o México vislumbrando a oportunidade de aprofundar suas pesquisas sobre a trajetória e a atuação do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Sua pesquisa e viagem originaram o livro A Guerra é o Espetáculo - Origens e Transformações da Estratégia do Exército Zapatista de Libertação Nacional (RiMa Editora/Fapesp). Em uma entrevista exclusiva à IHU On-Line ele relatou sua experiência sobre o movimento Zapatista, o México depois das eleições, a viagem e como escreveu seu livro.
Guilherme Gitahy de Figueiredo é formado em Ciências Sociais Geral e Antropologia pela Unicamp, mestre em Ciência Política pela Unicamp. Atualmente é professor de antropologia e Presidente da Câmara de Pesquisa do Centro de Estudos Superiores de Tefé da Universidade do Estado do Amazonas (CEST-UEA).
IHU On-Line - O senhor tinha em mente que na construção do livro A Guerra é o Espetáculo - Origens e Transformações da Estratégia do Exército Zapatista de Libertação Nacional ( RiMa Editora/Fapesp) estava escrevendo uma grande reportagem com densidade científica? Como foi a elaboração do livro?
O livro é a minha dissertação de mestrado, acrescida de um prefácio de Pablo Ortellado, voluntário importante do movimento anti-capitalista, da rede indymedia no Brasil e agora jovem professor da USP, e de um epílogo que escrevi sobre acontecimentos posteriores ao período estudado. Uma coisa surpreendente tinha acontecido: poucos meses após a conclusão da dissertação, em 2003, e EZLN começou a anunciar medidas que enfrentavam boa parte dos pontos fracos do movimento que eu tinha apontado em meu texto, confirmando minhas análises e demonstrando uma capacidade incrível do movimento em se transformar e se adaptar, graças a formas democráticas de organização que o tornam permeável às críticas de suas bases e aliados.
É interessante que o senhor tenha comparado o livro a uma obra jornalística. Trata-se de uma obra acadêmica, que se inspira no método da grounded theory, aproveitando técnicas da etnografia e da história oral. Porém, sempre acreditei que obras acadêmicas não precisam ser herméticas ao grande público. A democratização da universidade exige que procuremos, na medida do possível e sem censurar importantes contribuições que chegam rebuscadas, linguagens mais acessíveis a não iniciados nas suas especialidades. Além disso, a grounded theory preconiza que o pesquisador apóie suas análises nos dados que levanta, fazendo sua análise e teoria emergir desses dados. Deve-se evitar o encaixe dos dados em alguma teoria escolhida à priori, pois perde-se assim grande parte da capacidade de se produzir reflexões adequadas aos fenômenos novos. Ora, se a primazia da análise recai sobre os dados de entrevistas, observações, etc, é natural que se produza, ao menos num primeiro momento, uma obra de grande fartura descritiva e narrativa. Assemelha-se bastante a obras historiográficas, nas quais a análise vai embutida nas colagens da narrativa. Agora estou escrevendo artigos que são versões mais desenvolvidas das análises que começam a nascer no livro, e que dialogam com uma literatura com vocabulário mais especializado.
IHU On-Line - Como foi para o senhor definir um tema como esse sobre o Exército Zapatista sabendo que seria uma pesquisa, pioneira no país, o que acabou rendendo uma dissertação de mestrado apresentada no IFCH em fevereiro de 2003?
Pioneira mas não solitária: junto comigo surgiu toda uma primeira geração de pesquisadores brasileiros do zapatismo. Somos na maioria jovens e apenas agora nossos trabalhos começam a se aproximar da maturidade. Minha dissertação foi uma das primeiras publicadas, o que encerra uma grande responsabilidade: o de ser um dos primeiros a escolher tópicas, estereótipos, a linguagem do debate de pesquisadores, jornalistas e ativistas brasileiros sobre o tema. Agora eu e outros pesquisadores estamos tentando começar uma rede de produção colaborativa de conhecimento sobre o zapatismo: a idéia é a socialização de fontes de pesquisa, debate permanente, invenção de novas formas de comunicação investigativa, etc. Na pesquisa, como em tudo na vida, é importante a generosidade e o desprendimento. É preciso, por exemplo, questionar a noção de autoria: o que produzimos é sempre uma colagem de pensamentos que estão por aí, e é mais importante contribuir para o amadurecimento coletivo de saberes do que tentar ser o primeiro ou o mais original através do isolamento que leva à esterilidade.
Não escolhi o tema por ser novo, mas por afinidade. Quando eu era secundarista me tornei militante do movimento estudantil independente. Isto foi entre a campanha do PT de 89 e o Fora Collor, e minha grande preocupação era a necessidade de descentralização do M.E. e do aumento da participação dos estudantes na busca de soluções para seus problemas e de um mundo melhor. Mas vivia-se a retração de experiências como as das CEBs e o crescimento da luta partidária que lembra a "lei de ferro da oligarquia" de Michels. Não gostei do M.E. universitário, que me pareceu pouco ético, e somente em 95 fui encontrar um movimento que me chamasse a atenção: li um artigo de Igor Fuser que se referia ao EZLN como a "guerrilha do século XXI". No começo gostei do movimento porque desafiava as idéias a que estava acostumado (por exemplo o senso comum de que não há combinatória possível entre luta armada e luta democrática). Logo depois, ganhou minha simpatia por causa da importância que dá à participação e por outras coisas inquietantes que fui notando, como o discurso político poético. Apenas aos poucos fui conhecendo a outra face decisiva da nova estratégia que estava nascendo: a comunicação, que no caso do zapatismo não é subsidiária da participação, mas confunde-se com ela em formas de interação política transformadora que vão muito além das instâncias deliberativas. Isso influenciou minha entrada, em 99, no movimento de rádios livres e depois no Centro de Mídia Independente.
Em 96 fiz um trabalho de conclusão sobre o zapatismo para a disciplina Pensamento Social da América Latina, com o romântico professor Octavio Ianni, que dizia que a boa pesquisa exige paixão. Foi legal porque tinha acabado de acontecer o I Encontro Intercontinental Pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo (ou "Intergalático") na Selva Lacandona de Chiapas, e tinha muita coisa na internet. Dava para notar que pelo mundo todo o zapatismo estava gerando fascinação. Tive então a oportunidade de transformar este trabalho em iniciação cientifica com o Prof. Décio Saes, com quem aprendi muito sobre vertentes do marxismo que valorizam a participação direta. Já nesta época comecei a guardar o dinheiro da bolsa para uma futura pesquisa de campo no México, pois sabia que não existia financiamento para pesquisas de campo de mestrado no exterior. Entrando na pós-graduação, Saes estava se aposentando, e passei a ser orientado por Tom Dwyer, que me apresentou a grounded theory: me pareceu uma metodologia libertária, que me daria ampla liberdade de pensamento. Foi muito difícil encontrar as linhas mestras da sistematização dos dados e da análise, passei por vários esquemas antes de deslanchar a redação. Foi enquanto submetia a pesquisa ao trabalho coletivo dos bolsistas do CEBRAP, método de estudo do Programa de Formação de Quadros Profissionais (na época voltado a mestrandos e doutorandos, hoje um pós-doutorado) que encontrei o caminho que ficou no livro.
IHU On-Line - Como o senhor dirigiu a pesquisa e como foi à passagem por Chiapas? Que roteiro o senhor seguiu?
Desde que entrei na graduação intuí que meu caminho passaria pela antropologia e a ciência política. Queria pensar a transformação social focando os processos culturais. Tive grande afinidade com o pensamento gramsciano, por exemplo. Assim, embora eu estivesse no mestrado da ciência política, foi em uma disciplina de "pesquisa antropológica" que encontrei a inspiração para bolar a pesquisa de campo. Eu queria fazer uma etnografia. A maior dificuldade foi o limite de tempo: podendo passar apenas 3 meses no México (férias do mestrado e parcos recursos), as entrevistas de história oral passaram a ter um papel importante. Fui passando de informante a algum amigo ou conhecido desse informante, cruzando as redes de confiança até chegar às bases do EZLN. Depois descobri que esta técnica já foi batizada de "bola de neve". Mas além das entrevistas, procurei me hospedar na casa dos informantes, para estar 24h por dia convivendo com eles e observando o seu meio.
Evitei fazer o roteiro do chamado "zapatour", aos então chamados Aguascalientes - centros políticos e culturais das comunidades zapatistas, agora chamados Caracóis - ou aos Acampamentos de Paz - dedicados à observação de direitos humanos simpática ao EZLN, e que já eram muito conhecidos por ativistas e jornalistas. Também não procurei encontrar pessoalmente os líderes, sobre os quais já havia inúmeras reportagens, entrevistas, e centenas de seus comunicados. Procurei me deixar levar pelos caminhos pouco conhecidos que se abriam entre a sociedade civil ligada ao zapatismo e depois com as bases zapatistas. Em Oaxaca estive, por exemplo, com um movimento de indígenas mazatecos cujas lideranças me aconselharam a pesquisar as bases do EZLN: "os líderes já conhecemos bem, o que não sabemos muito é sobre as bases". Vale dizer que grande parte da literatura sobre movimentos sociais apresenta entrevistas apenas com os seus líderes, esquecendo-se que a visão e experiência que eles trazem é apenas uma pequena fração do movimento.
IHU On-Line - De qual forma o senhor fugiu a armadilha do estereótipo e da visão idealizada sobre o movimento Zapatista?
Principalmente procurando fazer uma etnografia. A etnografia e a antropologia moderna nasceram justamente da tentativa de fugir aos estereótipos racistas e das imagens idealizadoras que existiam sobre os povos colonizados pela Europa e em vias de serem colonizados pela hegemonia estadonidense. O contato direto, intenso, longo, torna difícil sustentar imagens simplistas. Por outro lado, a grouded theory supõem um processo de pesquisa em que a coleta de dados vai estourando os primeiros conceitos formulados: a construção da teoria - que pouco se distingue do trabalho de sistematização e análise dos dados - se dá pela ruptura dos conceitos diante do levantamento dos dados e pela emergência de novas narrativas, classificações, imagens e conceitos.
Eu sempre quis ser lido por ativistas e militantes, trazer para o Brasil a sabedoria das lutas mexicanas. Mas para isso era preciso contextualizar muito bem os dilemas, escolhas e dificuldades do zapatismo, a pertinência dos seus desdobramentos numa história que não é igual à nossa, não fechar os olhos para as "impurezas" dos seus atores e evitar mistificá-los, o que não é fácil quando existe a simpatia e quando se sabe que críticas mal feitas podem servir às forças adversárias. No caso do EZLN isto é especialmente delicado, pois o governo mexicano de tempos em tempos testa a popularidade dos movimentos sociais, aumentando suas doses de repressão para depois recuar diante dos protestos nacionais e internacionais. Assim, servir à detração do EZLN é servir à possibilidade de aumento da repressão. Mas alimentar visões ingênuas é perder a oportunidade de aprender com a experiência deles, e nem eles querem isso: certa vez, perguntando a um jovem guerrilheiro o que ele esperava do meu trabalho, ele disse: "que nunca mais aconteça o que se passa aqui". Um estudo sério exige técnicas que vão muito além da abordagem dos vários pontos vista: é preciso, por exemplo, avaliar o contexto, o papel e as relações em que se inserem falas, ações e textos. Um comunicado do EZLN, mesmo quando faz análise política, não pode ser lido com se fosse um artigo publicado numa revista científica. As roupas tradicionais indígenas que seus representantes usavam em mesas de negociação com o governo, não podem ser interpretadas da mesma maneira que os ornamentos de roupas exibidas na vitrine de um shopping, e assim por diante. Mesmo quando um pesquisador não explicita essas análises, por não serem centrais, elas precisam ser feitas.
IHU On-Line - Quais foram os seus entrevistados e que material o senhor trouxe para a pesquisa?
Acredito que entrevistei um leque bastante completo de performers do zapatismo civil que se formou ao redor do EZLN - estudantes, intelectuais, artistas, lideranças indígenas e sindicais, ativistas estrangeiros -, além de milicianos e autoridades médias da guerrilha. Entrevistei também lideranças indígenas que não aderiram ao zapatismo e pessoas comuns que não têm simpatia pelo movimento. Conheci contextos diversos: urbanos e rurais, o da cidade do México, o de Oaxaca (estado com maior população indígena e hoje palco da principal revolta social após o levante zapatista), cidades de Chiapas e até uma comunidade vizinha de La Realidad, epicentro da liderança zapatista, mas cujas autoridades não aderiram ao EZLN. Trouxe mais de 300 fotos (na época eu não tinha máquina digital), cerca de 40 horas gravadas de entrevistas, cadernos de campo, umas 2 dúzias de vídeos VHF sobre o zapatismo e mais de 50 livros, que junto com alguns que consegui por outras vias somou mais de 70. Paguei um tremendo excesso de bagagem! No Brasil não tinha quase nada disponível. Agora temos a biblioteca do Xojobil, em Guarulhos, e muita coisa com particulares.
IHU On-Line - O senhor se identificava como um pesquisador semiclandestino? Como foi essa história?
Esse termo me foi dado pelo Jornal da Unicamp. A academia mexicana que me recebeu recomendou usar visto de turista, pois não interessava ao governo mexicano pesquisadores estrangeiros sobre o zapatismo. Então eu tinha sempre que me identificar como turista, e no México um turista só tem autorização para fazer turismo: era proibido a eles estar em uma manifestação popular, por exemplo. Deve ser assim ainda: nos protestos deste ano na cidade de Atenco, vítima de uma das mais violentas repressões já vistas nos últimos anos, mais estrangeiros foram expulsos do país. Na época que eu fui eram muitos os que estavam sendo expulsos. Assim, apenas meus informantes sabiam o que eu estava fazendo. Se eu fosse preso, tinha documentos da academia mexicana que poderiam amenizar as conseqüências.
IHU On-Line - Depois dessa experiência, o que o senhor poderia dizer do movimento Zapatista?
Por um bom tempo eu achei que a pesquisa estava chegando ao seu final. Escreveria mais um artigo, um pouco mais teórico, focando na comunicação zapatista, e então passaria a me dedicar exclusivamente ao estudo do povo da várzea do Amazonas, onde vivo e trabalho agora como professor da universidade do estado. Mas o zapatismo parece estar longe de perder a sua vitalidade criativa, e os seus mais recentes desdobramentos estão me seduzindo a programar um novo campo nos próximos anos. É fascinante ver como continuam sempre surpreendendo na invenção de novas maneiras de se fazer política. A fonte não secou, parece ser apenas o começo de um fenômeno que se revela a cada dia mais importante para o México e para o mundo, por suas contribuições à invenção da democracia. Ainda temos muito o que aprender com eles, e aproveito para convidar mais jovens a tentar fazê-lo. Não só para enriquecer o debate já existente no Brasil, mas também porque há inúmeras facetas inexploradas.
IHU On-Line - Como o senhor vê o México hoje depois das eleições?
O México encontra-se num estado de agitação muito grande. Há acadêmicos mexicanos que chegam a acreditar que o país está a um passo de uma ruptura pacífica, pela desobediência civil generalizada, com o sistema autoritário e neoliberal vigente. Mais uma vez repetiu-se a fraude eleitoral, que é regra no sistema político mexicano, e o candidato presidencial do PRD, López Obrador, perdeu oficialmente por uma margem muito baixa de votos. No centro da cidade do México formou-se uma mobilização permanente, com meia centena de acampamentos, para recusar o resultado das eleições, e grupos ligados ao candidato derrotado convocaram para 16 de setembro uma Convenção Nacional Democrática (CND) para unir os movimentos sociais numa ampla frente de "refundação da república". Compareceu mais de 1 milhão de mexicanos nesta CND, que proclamou Obrador legítimo presidente do país e lançou a proposta de um plebiscito para decidir pela realização de uma constituinte. A Convenção é uma referência à CND convocada pelo EZLN em 1994, que conseguiu levar mais de 6 mil pessoas da sociedade civil a reunir-se com a guerrilha na Selva Lacandona, inclusive muita gente do PRD. O local da CND de 1994 foi batizado de Aguascalientes (este foi destruído pelo Exército em 1995 e depois o EZLN construiu mais 6), remetendo à cidade onde ocorreu Soberana Convenção Democrática de 1914, que reuniu os líderes da Revolução Mexicana, inclusive Villa e Zapata, para decidir sobre os rumos da Revolução. Muitos desconfiam que o movimento liderado pelo PRD trata-se da aliança de certas camadas médias com o oportunismo de políticos que pretendem tomar o poder sem o compromisso de mudar o poder. Mesmo assim, é impressionante escutar o discurso que fez Obrador na CND: "esta convenção proclamou a abolição do atual regime de corrupção e privilégios". Sua "posse" como presidente legítimo foi marcada para o dia 20 de setembro.
A luta mais surpreendente que está acontecendo no México, porque com bases autenticamente populares, é a revolta social que ganhou fôlego em junho no estado de Oaxaca. Uma greve de professores do magistério, ao ser reprimida, gerou a mobilização de muitos outros movimentos que se uniram a eles na criação da Assembléia Popular do Povo de Oaxaca (APPO). Sua principal demanda passou a ser a saída do governador Ulises Ruiz, mas tem também a finalidade de ser uma alternativa de poder ao governo do estado: o "poder popular". Desde então esses movimentos começaram a ocupar canais de rádio e TV, prédios públicos, bloquear vias e realizar passeatas, além de promover assembléias locais para garantir que pessoas encontrem os grupos com os quais têm afinidade e possam se expressar a nível estatal. A revolta se espalhou por vários municípios e comunidades indígenas do interior do estado. Estou enviando em anexo uma foto de Nancy Davies feita em agosto, que mostra o canal 9 de TV estatal tomada por uma manifestação de mulheres e transmitindo uma programação de protesto feita por elas: as mulheres estão tendo um papel muito importante nesse movimento, como sempre tiveram também no movimento zapatista. A APPO quer a ampliação da revolta no país, e já fala na substituição do sistema político atual por outro governado por assembléias populares estatais. A APPO participou da CND na cidade do México, e agora no dia 21 de setembro 5 mil integrantes do movimento saíram em "marcha-caminhada" rumo à cidade do México, onde pretendem instalar um "plantão" permanente na frente do Senado, onde haveria a possibilidade de se destituir Ruiz nos marcos da lei.
Há ainda a "Outra Campanha", proposta pelo EZLN em 2005 na Sexta Declaração da Selva Lacandona. Enquanto transcorria a campanha eleitoral os zapatistas, e muitos outros setores desiludidos com a classe política ? o PRD esteve envolvido nos últimos anos em várias votações de leis que feriam os interesses indígenas e também com casos de repressão a movimentos sociais, inclusive zapatistas - começaram uma ampla campanha de caravanas e intercâmbios entre movimentos populares, com o propósito de se conhecerem melhor e lutar pela libertação de presos políticos. O lema é "abaixo e à esquerda", numa referência à necessidade de escutar e dar visibilidade às lutas das camadas mais baixas da população, frequentemente ofuscadas pelo protagonismo de esquerda das camadas médias.
A "Outra" foi interrompida no começo de maio por uma repressão terrível contra floricultores que não queriam ser expulsos das ruas do centro histórico da cidade de Atenco, onde tradicionalmente vendiam suas flores, para dar lugar a um projeto, do prefeito do PRD, que visa a reurbanização para facilitar a construção de um Wal Mart. Com a repressão vários movimentos se juntaram aos floricultores, também foram reprimidos, e após alguns dias o saldo era de 33 pessoas desaparecidas, 218 presos, 5 estrangeiros deportados, um adolescente assassinado e 30 mulheres violentadas pela polícia. A grande mídia distorceu tanto a informação, mostrando imagens de policiais sendo atacados, que chegou a pedir para que a política intensificasse a repressão. O EZLN lançou um "alerta vermelho", como sempre fez quando o risco aumentava em Chiapas, tratando assim os floricultores e ativistas de Atenco como parte de um mesmo corpo, e ajudando a descentralizar a atenção mundial e nacional simpática ao zapatismo de Chiapas para outras lutas do país. Foram registradas centenas de protestos por Atenco no México e em mais de 30 países ao redor do mundo, o que antes acontecia apenas por Chiapas.
Agora o EZLN, após consultar vários aliados, está anunciando a volta de sua peregrinação pelos cantos mais esquecidos do México, para tecer as malhas de comunicação e solidariedade entre os movimentos populares. O Delegado Zero, apelido de Marcos na "Outra", ruma para os estados do norte, onde o zapatismo sempre foi mais fraco. O EZLN não pensa em se juntar às iniciativas do PRD, que considera um partido traidor. Por outro lado está em curso a preparação do III Encontro Intergalático, também convocado na Sexta Declaração. Esses encontros internacionais, importantes catalisadores das redes ativistas das "ações globais" imortalizadas em Seatle de 1999, foram ofuscados pelo Fórum Social Mundial. Mas agora parecem estar recobrando sua força: o site da chamada "Sexta Internacional" foi pensado para não apenas divulgar o Encontro, mas também estimular a participação mais ampla e descentralizada possível em sua construção. Já existem quase 3 mil aderentes de 62 países, e o EZLN consegue isso sem o dinheiro e o poder institucional por trás do FSM. No Brasil também há grupos procurando construir redes de comunicação e solidariedade inspirados no zapatismo, bem como realizar encontros preparatórios para o Intergalático, tais como a rede A Flor da Palavra e a Ação Rebelde Dignidade Candanga.
URL:: http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=720
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