Entrevista da historiadora Sylvie Chaperon 21/01/08 Simone de Beauvoir,palavra de mulher.
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A grande escritora e pensadora Simone de Beauvoir, que morreu em 14 de abril de 1986, teria 100 anos em 9 de janeiro de 2008. O feminismo e a libertação da mulher estruturam sua obra literária e filosófica. Sylvie Chaperon, autora da obra “Les annés Beauvoir, 1945 – 1970”, um estudo decisivo sobre as relações da pensadora existencialista com as idéias de sua época, descreve-nos o compromisso, sempre atual, da transformação das relações entre os sexos.P – As relações íntimas de Sartre e Simone de Beauvoir e a historiografia de suas respectivas aventuras amorosas ou sexuais seguem apaixonando os comentaristas e a imprensa. O que pensa uma historiadora de hoje sobre isso?R – A vida privada de Beauvoir é apaixonante, efetivamente, e a maioria dos estudos sobre esse personagem, na realidade, são biografias muito alimentadas sob o ponto de vista sentimental. As sucessivas publicações de suas “Cartas a Sartre”, seu diário íntimo ou sua correspondência de apaixonada com Algren ou Bost abastecem essa produção.Para uma historiadora, esses comentários são problemáticos enquanto permanecem no âmbito da análise psicológica ou do juízo moral.Em troca, utilizar as fontes extraordinariamente numerosas que Beauvoir deixou para enriquecer a história de sua vida privada ou sexual é perfeitamente legítimo. Mas, é necessário contextualizar os fatos. Beauvoir e Sartre, como numerosos artistas ou intelectuais inconformistas de sua época, tentaram reinventar o casal, o amor e a sexualidade, evitando a família, o casamento e os papéis sexuais estereotipados. Suas tentativas prefiguraram, no âmbito individual, a “revolução sexual” dos anos 70, que seria mais coletiva e comunitária.
P – Embora desde seus primeiros trabalhos ela reivindique a igualdade da “situação” entre o homem e a mulher, especialmente em sua relação intelectual com Sartre, Simone de Beauvoir declarou-se feminista bastante tarde. De certo modo, como em outros casos, foi uma conversão. Quais seriam os grandes momentos de sua mutação?R – Até os anos 70, ela nunca militou em nenhum grupo feminista, ainda que em seus inícios apoiasse a luta pela “maternidade feliz” (o futuro planejamento familiar). Entretanto, declarava-se feminista. Já em novembro de 1949, pouco depois do lançamento de “O segundo sexo”, respondia a Claude Chonez no rádio a respeito das sufragistas: “Mas finalmente são feministas porque têm razões para ser e, certamente, eu também o sou...”. Em 1965, declarava a Francis Jeanson: “Sou radicalmente feminista”.Beauvoir contribuiu para redefinir o feminismo da segunda metade do século XX politizando as questões privadas e reclamando não somente a igualdade formal, mas também a livre expressão corporal. Com o Movimento de Liberação Feminina (MLF, por sua sigla em francês) foi mais longe na militância, participou das manifestações, assinou petições e manifestos, abriu as páginas de sua publicação “Temps Modernes” à crônica do sexismo cotidiano, e converteu-se em diretora de associações e revistas.
P – Todos os testemunhos de leitoras de “O segundo sexo” falam do choque que essa obra presumia no descobrimento de uma situação de opressão. Em troca, há poucos testemunhos masculinos. Simone de Beauvoir escrevia somente para as mulheres?R – O êxito de “O segundo sexo” deve-se em parte ao escândalo que seu lançamento provocou, e à extraordinária celebridade do casal Sartre-Beauvoir. Além disso, o livro reflete as crescentes aspirações de milhares de mulheres, para quem o direito de voto ou a igualdade dos sexos não regulavam a questão. Nos anos 50 e 60, os antigos grupos feministas seguiam lutando pela igualdade de direitos, o que não ocupa mais do que uma linha no livro.A obra desloca os interesses: desde então são as vivências específicas das mulheres no casal, na família ou sua sexualidade que estão em questão. Muitas mulheres assinalaram a comoção da leitura, às vezes dolorosa, quase sempre saudável. Simone de Beauvoir trouxe para a luz do dia as vivências íntimas das mulheres: a vergonha da menstruação, o sofrimento da gravidez, a monotonia infinita do trabalho doméstico etc. Mas muitos homens também escreveram a Simone de Beauvoir, e sobre assuntos muitos variados. O fundo dessas cartas, depositado na Biblioteca Nacional, revela que fazia um papel de confidente.P – Simone de Beauvoir retoma do marxismo os conceitos de dominação e alienação que emprega amplamente em suas análises. Em troca, é mais reservada em relação à teoria de que uma modificação da estrutura das relações de classe seria uma condição suficiente para resolver a opressão da mulher...R – Até os anos 70, Simone de Beauvoir pensava que a solução viria individualmente, pela independência do trabalho remunerado, e coletivamente pela revolução socialista. Ainda no outono de 1968 pensava que “a solução do problema das mulheres só poderá existir no dia em que exista uma solução global e o melhor que podem fazer as mulheres é ocupar-se de outras coisas que não sejam elas próprias. É o que tento fazer. Quer dizer que me ocupo de problemas políticos como a guerra do Vietnã ou da Argélia com mais afã e mais convicção que do problema feminino propriamente dito, o qual, penso, não se pode resolver no marco da sociedade atual”. Mudou de opinião com sua participação no MLF. Desde então rechaçou o socialismo como líder das mulheres e promoveu movimentos autônomos não mistos. Sua conversão se deve, seguramente, ao radicalismo desse movimento, algo que não havia visto antes, e também à sua eficácia, já que o MLF multiplicou as iniciativas e chegou, rapidamente, a influir na opinião pública.
(Beauvoir e Sartre no escritório do jornal maoista A causa do povo que Sartre editou e que foi proibido pelo governo francês em maio de 1970 )P – Como explica a incrível cegueira dos comunistas da época? Jean Kanapa, por exemplo, na “Nouvelle Critique” refere-se a “O segundo sexo” como “nihilismo nacional” e “exaltação da depravação sexual”.R – Creio que a posição dos comunistas naquele momento explica-se por razões estruturais e conjunturais. Desde a grande revolta dos anos 30, que tornou possível a Frente Popular, o PCF (Partido Comunista Francês), transformado em um partido do governo, adotou os grandes valores nacionais, como a família e a natalidade, e refreou seu aspecto vanguardista, especialmente em relação aos costumes. Isso foi ainda mais reforçado pelo clima da guerra fria. O Partido, ao sentir-se atacado com violência, assumiu a glorificação da maternidade e a família (proletária) pelo aspecto moral.A “estalinização” do Partido proibiu a expressão da crítica interna. Em 1956, na campanha pelo direito à anticoncepção, reproduziu-se o mesmo fenômeno.P – Entretanto, na concepção de Simone de Beauvoir da futura igualdade permanece uma certa ambigüidade. A igualdade deve apagar a diferença dos sexos ou deve “realçar” essa diferença?R – A conclusão de “O segundo sexo” está bem clara: a igualdade destruirá a diferença dos sexos, afortunadamente, clarifica Simone de Beauvoir, porque então as diferenças individuais poderão revelar-se em toda a sua diversidade. Se existe uma constante indiscutível no feminismo de Beauvoir (que está bastante vinculada aos postulados do existencialismo), é o rechaço à “diferença” ou ao “intrínseco”. Beauvoir não admite nenhuma diferença em razão do sexo, tudo é produto da situação social e cultural. Mostrou-se inflexível nesse ponto; e a profunda separação, na França, entre as distintas tendências feministas seguramente se deve, em parte, a essa herança.Ajudado por uma ingente cultura enciclopédica e o princípio unificador do existencialismo, “O segundo sexo” aborda todas as ciências humanas: desde a biologia (circunlóquio obrigatório em todos os ensaios sobre as mulheres até os anos 60) até a antropologia (recentemente renovada por Margaret Mead e Claude Lévi-Strauss), passando pela história, a psicologia, a sexologia, a literatura, o pensamento e as principais filosofias do século: marxismo, “freudismo”, estruturalismo… Tal amplitude de olhares vem acompanhada, inevitavelmente, de numerosas inexatidões nos detalhes, mas coloca as relações entre os sexos como um fenômeno social total que nenhuma teoria parcial pode abarcar.P – Do ponto de vista da história da emancipação feminina, que lugar ocupa Simone de Beauvoir? O que lhe devem os movimentos feministas “pósmodernos” e os ensaios de gênero contemporâneos?R – “O segundo sexo” anunciava o florescimento das investigações atuais: é a arqueologia da maioria dos estudos sobre as mulheres. A crítica feminista era exercida de modo pioneiro sobre novos terrenos ignorados pela maioria dos militantes da primeira onda de princípios do século. Questiona-se Freud e seus discípulos, por exemplo. Segundo Élisabeth Roudinesco, Simone de Beauvoir é a primeira que conecta a problemática da emancipação com as teorias psicanalíticas da sexualidade feminina.
(Sylvie Chaperon, historiadora e professora na Universidade Toulouse-Le Mirail, é especialista nos movimentos feministas da França de 1945 a 1970. Publicou numerosos artigos e vários livros: “Le Siècle des Lumières” (1980), “Les anneés Beauvoir, 1945-1970” (2000), ”Cinquantenaire du deuxième sexe” (Com Christine Delphy, 2001), “La sexologie avant Freud” (2007) e “Les origines de la sexologie, 1850-1900” (2007).)
A grande escritora e pensadora Simone de Beauvoir, que morreu em 14 de abril de 1986, teria 100 anos em 9 de janeiro de 2008. O feminismo e a libertação da mulher estruturam sua obra literária e filosófica. Sylvie Chaperon, autora da obra “Les annés Beauvoir, 1945 – 1970”, um estudo decisivo sobre as relações da pensadora existencialista com as idéias de sua época, descreve-nos o compromisso, sempre atual, da transformação das relações entre os sexos.P – As relações íntimas de Sartre e Simone de Beauvoir e a historiografia de suas respectivas aventuras amorosas ou sexuais seguem apaixonando os comentaristas e a imprensa. O que pensa uma historiadora de hoje sobre isso?R – A vida privada de Beauvoir é apaixonante, efetivamente, e a maioria dos estudos sobre esse personagem, na realidade, são biografias muito alimentadas sob o ponto de vista sentimental. As sucessivas publicações de suas “Cartas a Sartre”, seu diário íntimo ou sua correspondência de apaixonada com Algren ou Bost abastecem essa produção.Para uma historiadora, esses comentários são problemáticos enquanto permanecem no âmbito da análise psicológica ou do juízo moral.Em troca, utilizar as fontes extraordinariamente numerosas que Beauvoir deixou para enriquecer a história de sua vida privada ou sexual é perfeitamente legítimo. Mas, é necessário contextualizar os fatos. Beauvoir e Sartre, como numerosos artistas ou intelectuais inconformistas de sua época, tentaram reinventar o casal, o amor e a sexualidade, evitando a família, o casamento e os papéis sexuais estereotipados. Suas tentativas prefiguraram, no âmbito individual, a “revolução sexual” dos anos 70, que seria mais coletiva e comunitária.
P – Embora desde seus primeiros trabalhos ela reivindique a igualdade da “situação” entre o homem e a mulher, especialmente em sua relação intelectual com Sartre, Simone de Beauvoir declarou-se feminista bastante tarde. De certo modo, como em outros casos, foi uma conversão. Quais seriam os grandes momentos de sua mutação?R – Até os anos 70, ela nunca militou em nenhum grupo feminista, ainda que em seus inícios apoiasse a luta pela “maternidade feliz” (o futuro planejamento familiar). Entretanto, declarava-se feminista. Já em novembro de 1949, pouco depois do lançamento de “O segundo sexo”, respondia a Claude Chonez no rádio a respeito das sufragistas: “Mas finalmente são feministas porque têm razões para ser e, certamente, eu também o sou...”. Em 1965, declarava a Francis Jeanson: “Sou radicalmente feminista”.Beauvoir contribuiu para redefinir o feminismo da segunda metade do século XX politizando as questões privadas e reclamando não somente a igualdade formal, mas também a livre expressão corporal. Com o Movimento de Liberação Feminina (MLF, por sua sigla em francês) foi mais longe na militância, participou das manifestações, assinou petições e manifestos, abriu as páginas de sua publicação “Temps Modernes” à crônica do sexismo cotidiano, e converteu-se em diretora de associações e revistas.
P – Todos os testemunhos de leitoras de “O segundo sexo” falam do choque que essa obra presumia no descobrimento de uma situação de opressão. Em troca, há poucos testemunhos masculinos. Simone de Beauvoir escrevia somente para as mulheres?R – O êxito de “O segundo sexo” deve-se em parte ao escândalo que seu lançamento provocou, e à extraordinária celebridade do casal Sartre-Beauvoir. Além disso, o livro reflete as crescentes aspirações de milhares de mulheres, para quem o direito de voto ou a igualdade dos sexos não regulavam a questão. Nos anos 50 e 60, os antigos grupos feministas seguiam lutando pela igualdade de direitos, o que não ocupa mais do que uma linha no livro.A obra desloca os interesses: desde então são as vivências específicas das mulheres no casal, na família ou sua sexualidade que estão em questão. Muitas mulheres assinalaram a comoção da leitura, às vezes dolorosa, quase sempre saudável. Simone de Beauvoir trouxe para a luz do dia as vivências íntimas das mulheres: a vergonha da menstruação, o sofrimento da gravidez, a monotonia infinita do trabalho doméstico etc. Mas muitos homens também escreveram a Simone de Beauvoir, e sobre assuntos muitos variados. O fundo dessas cartas, depositado na Biblioteca Nacional, revela que fazia um papel de confidente.P – Simone de Beauvoir retoma do marxismo os conceitos de dominação e alienação que emprega amplamente em suas análises. Em troca, é mais reservada em relação à teoria de que uma modificação da estrutura das relações de classe seria uma condição suficiente para resolver a opressão da mulher...R – Até os anos 70, Simone de Beauvoir pensava que a solução viria individualmente, pela independência do trabalho remunerado, e coletivamente pela revolução socialista. Ainda no outono de 1968 pensava que “a solução do problema das mulheres só poderá existir no dia em que exista uma solução global e o melhor que podem fazer as mulheres é ocupar-se de outras coisas que não sejam elas próprias. É o que tento fazer. Quer dizer que me ocupo de problemas políticos como a guerra do Vietnã ou da Argélia com mais afã e mais convicção que do problema feminino propriamente dito, o qual, penso, não se pode resolver no marco da sociedade atual”. Mudou de opinião com sua participação no MLF. Desde então rechaçou o socialismo como líder das mulheres e promoveu movimentos autônomos não mistos. Sua conversão se deve, seguramente, ao radicalismo desse movimento, algo que não havia visto antes, e também à sua eficácia, já que o MLF multiplicou as iniciativas e chegou, rapidamente, a influir na opinião pública.
(Beauvoir e Sartre no escritório do jornal maoista A causa do povo que Sartre editou e que foi proibido pelo governo francês em maio de 1970 )P – Como explica a incrível cegueira dos comunistas da época? Jean Kanapa, por exemplo, na “Nouvelle Critique” refere-se a “O segundo sexo” como “nihilismo nacional” e “exaltação da depravação sexual”.R – Creio que a posição dos comunistas naquele momento explica-se por razões estruturais e conjunturais. Desde a grande revolta dos anos 30, que tornou possível a Frente Popular, o PCF (Partido Comunista Francês), transformado em um partido do governo, adotou os grandes valores nacionais, como a família e a natalidade, e refreou seu aspecto vanguardista, especialmente em relação aos costumes. Isso foi ainda mais reforçado pelo clima da guerra fria. O Partido, ao sentir-se atacado com violência, assumiu a glorificação da maternidade e a família (proletária) pelo aspecto moral.A “estalinização” do Partido proibiu a expressão da crítica interna. Em 1956, na campanha pelo direito à anticoncepção, reproduziu-se o mesmo fenômeno.P – Entretanto, na concepção de Simone de Beauvoir da futura igualdade permanece uma certa ambigüidade. A igualdade deve apagar a diferença dos sexos ou deve “realçar” essa diferença?R – A conclusão de “O segundo sexo” está bem clara: a igualdade destruirá a diferença dos sexos, afortunadamente, clarifica Simone de Beauvoir, porque então as diferenças individuais poderão revelar-se em toda a sua diversidade. Se existe uma constante indiscutível no feminismo de Beauvoir (que está bastante vinculada aos postulados do existencialismo), é o rechaço à “diferença” ou ao “intrínseco”. Beauvoir não admite nenhuma diferença em razão do sexo, tudo é produto da situação social e cultural. Mostrou-se inflexível nesse ponto; e a profunda separação, na França, entre as distintas tendências feministas seguramente se deve, em parte, a essa herança.Ajudado por uma ingente cultura enciclopédica e o princípio unificador do existencialismo, “O segundo sexo” aborda todas as ciências humanas: desde a biologia (circunlóquio obrigatório em todos os ensaios sobre as mulheres até os anos 60) até a antropologia (recentemente renovada por Margaret Mead e Claude Lévi-Strauss), passando pela história, a psicologia, a sexologia, a literatura, o pensamento e as principais filosofias do século: marxismo, “freudismo”, estruturalismo… Tal amplitude de olhares vem acompanhada, inevitavelmente, de numerosas inexatidões nos detalhes, mas coloca as relações entre os sexos como um fenômeno social total que nenhuma teoria parcial pode abarcar.P – Do ponto de vista da história da emancipação feminina, que lugar ocupa Simone de Beauvoir? O que lhe devem os movimentos feministas “pósmodernos” e os ensaios de gênero contemporâneos?R – “O segundo sexo” anunciava o florescimento das investigações atuais: é a arqueologia da maioria dos estudos sobre as mulheres. A crítica feminista era exercida de modo pioneiro sobre novos terrenos ignorados pela maioria dos militantes da primeira onda de princípios do século. Questiona-se Freud e seus discípulos, por exemplo. Segundo Élisabeth Roudinesco, Simone de Beauvoir é a primeira que conecta a problemática da emancipação com as teorias psicanalíticas da sexualidade feminina.
(Sylvie Chaperon, historiadora e professora na Universidade Toulouse-Le Mirail, é especialista nos movimentos feministas da França de 1945 a 1970. Publicou numerosos artigos e vários livros: “Le Siècle des Lumières” (1980), “Les anneés Beauvoir, 1945-1970” (2000), ”Cinquantenaire du deuxième sexe” (Com Christine Delphy, 2001), “La sexologie avant Freud” (2007) e “Les origines de la sexologie, 1850-1900” (2007).)
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