entrevista Yves Michaud 30/04/08
A estética das eras pós-industrial e da circulação de mercadorias em escala mundial corresponde àquilo que o filósofo Yves Michaud denomina arte em estado gasoso – ou seja, uma arte em que importa menos o objeto em si do que a experiência fugidia, flutuante, do receptor. O termo lembra a expressão "arte culinária", criada por Adorno para designar a produção artística da cultura de massa. Mas se no pensador alemão o termo vinha associado a acordes apocalípticos sobre a "vida danificada" e a "regressão da audição", em Michaud ele designa apenas um estágio determinado da evolução da cultura – um momento em que a arte certamente se volatiliza enquanto objeto, mas que permite uma compreensão hedonista da experiência estética, em muito semelhante àquela que nos foi legada pelo século XVIII (o que demonstra sua historicidade).
O conceito de "arte em estado gasoso" remete, à primeira vista, àquela idéia da arte cosmética ou culinária cunhada por Adorno. Mas seu modo de usar o conceito parece ter um sentido mais "positivo": seria uma arte que, como o sr. mesmo observa, "se parece mais com o que nos ensinou a arte do século XVIII do que com a arte romântica". Pode-se dizer que estamos mais próximos de uma "compreensão hedonista" da arte? YVES MICHAUD: Sim. O que me separa de Adorno é que não encaro essa mudança de modo dramático. Eu me considero mais um observador do que um denunciador crítico. Seja como for, eu sempre me pergunto se a arte que consideramos séria, grandiosa ou dramática de fato o era, tal qual cremos hoje: há um peso do olhar que é tão importante quanto embaraçoso. Mais do que pretender subverter dramaticamente a arte européia, Duchamp fazia brincadeiras.
: Essa arte que o sr. descreve e que tem a ver com o jogo, a distração, a diversão, com modos de relaxamento, é a arte de um tempo pós-utópico, em que a arte perdeu seu alcance, seu poder (ou sua intenção) de transformar o mundo? YVES MICHAUD: Sim, acho que vivemos em tempos pós-utópicos, em que a arte perdeu seu poder de transformação – supondo-se que ela o tenha tido um dia. A arte pode transformar nosso meio e nosso olhar, mas não a vida em si mesma. De maneira geral, vivemos num momento em que passamos nosso tempo mudando o mundo, mas sem pretendermos ser os únicos a fazê-lo. A impotência desse ou daquele indivíduo é o avesso do poder de todos.A "compreensão metafísica da arte como origem da comunicação com o absoluto ou potência liberadora da comunicação humana" seria, ao contrário, um traço da arte dos tempos utópicos? YVES MICHAUD: Certamente. Nesse sentido, todos nós, mais ou menos, sentimos falta desses tempos utópicos. Houve na história humana períodos sem utopia, com outros sonhos, mitos, crenças religiosas – mas não utopias. A utopia supõe que possamos tentar fazer com que ela se torne real. Em sua conferência, o sr. observa que o conceito de arte sofreu várias mudanças ao longo da história e que a cada momento corresponde uma "função" para a arte (religiosa, metafísica, política etc.). Qual seria a função da "arte em estado gasoso"? YVES MICHAUD: Parece-me que haveria dois tipos de função: de um lado, uma função hedonista, voltada para o prazer – mas uma nova forma de prazer, que flui bem, é cool, insinuante; de outro, uma função expressiva cujo objetivo é marcar as identidades. Fico sempre cativado ao ver o lugar que a arte ocupa quando se trata de tornar as identidades manifestas (arte coreana, arte aborígene, arte chinesa contemporânea etc.). O sr. afirma que não é apenas o Belo que pode produzir a experiência estética, mas também aquilo que é terrível, sublime, impressionante, feio etc. O que o sr. acha da "arte abjeta" e de suas conseqüências éticas? YVES MICHAUD: Se levamos a sério o componente subjetivo da percepção da arte, no limite não importa o que possa produzir experiência estética. Portanto, seria mais interessante examinar os fatores que tornam certas experiências esteticamente impossíveis. Podemos encontrar prazer estético na tortura, no mal, na abjeção, na inumanidade? Isso acontece, mas sob condições muito definidas, como por exemplo no cômico grotesco ou nos filmes de horror. Eu me interesso muito por essas questões, mas ainda não fixei totalmente minha reflexão, pois o problema é delicado. O compositor alemão Stockhausen, por exemplo, disse que os atentados de 11 de setembro em Nova York foram a maior obra de arte de todos os tempos, aquela com a qual sonham todos os músicos… O papel tradicional da estética mudou com a sociedade do espetáculo? A estética (como ciência do sensível) tornou-se estetização de si?YVES MICHAUD: Houve inicialmente um tempo da estética e da recepção tout court, mas parece-me que, progressivamente, o campo da estética se desloca dos objetos e da criação em direção a tudo aquilo que concerne a nossas vidas – e, bem entendido, em direção ao corpo. O dandismo do século XIX é uma primeira forma de estetização de si. Hoje em dia ela se tornou estetização de si no seio do consumo de massa. Por outro lado, a palavra "estética" quer dizer "cuidados corporais". Portanto, quando uma artista como a espanhola Ana-Maria Alaez instala um salão de beleza num museu de arte contemporânea, o círculo se fecha. Na conclusão de sua conferência, o sr. afirma que é "muito provável que as capacidades perceptivas humanas de base não mudem, mas, em contrapartida, mudem seus modos de intervenção nas condutas artísticas. Essas mudanças têm a ver com numerosos fatores, mas também nos mostram até que ponto o homem é um ser histórico e mutável". Os sr. vê hoje condições materiais para o surgimento de uma arte em estado não-gasoso?YVES MICHAUD: Em primeiro lugar, acredito que a história tem movimentos pendulares e que podemos nos cansar de uma arte da experiência e da sensação. Penso também que a necessidade de guardar e colecionar induz a pressões que se colocam mais no sentido da obra de arte do que da experiência: de fato, como guardar o vestígio de experiências fugidias? Quanto ao resto, eu seria pessimista – ou então seria o caso de pensar em novas formas de arte. O que não seria tão surpreendente, se pensarmos que em menos de dois séculos tivemos a invenção da fotografia e do cinema.
O conceito de "arte em estado gasoso" remete, à primeira vista, àquela idéia da arte cosmética ou culinária cunhada por Adorno. Mas seu modo de usar o conceito parece ter um sentido mais "positivo": seria uma arte que, como o sr. mesmo observa, "se parece mais com o que nos ensinou a arte do século XVIII do que com a arte romântica". Pode-se dizer que estamos mais próximos de uma "compreensão hedonista" da arte? YVES MICHAUD: Sim. O que me separa de Adorno é que não encaro essa mudança de modo dramático. Eu me considero mais um observador do que um denunciador crítico. Seja como for, eu sempre me pergunto se a arte que consideramos séria, grandiosa ou dramática de fato o era, tal qual cremos hoje: há um peso do olhar que é tão importante quanto embaraçoso. Mais do que pretender subverter dramaticamente a arte européia, Duchamp fazia brincadeiras.
: Essa arte que o sr. descreve e que tem a ver com o jogo, a distração, a diversão, com modos de relaxamento, é a arte de um tempo pós-utópico, em que a arte perdeu seu alcance, seu poder (ou sua intenção) de transformar o mundo? YVES MICHAUD: Sim, acho que vivemos em tempos pós-utópicos, em que a arte perdeu seu poder de transformação – supondo-se que ela o tenha tido um dia. A arte pode transformar nosso meio e nosso olhar, mas não a vida em si mesma. De maneira geral, vivemos num momento em que passamos nosso tempo mudando o mundo, mas sem pretendermos ser os únicos a fazê-lo. A impotência desse ou daquele indivíduo é o avesso do poder de todos.A "compreensão metafísica da arte como origem da comunicação com o absoluto ou potência liberadora da comunicação humana" seria, ao contrário, um traço da arte dos tempos utópicos? YVES MICHAUD: Certamente. Nesse sentido, todos nós, mais ou menos, sentimos falta desses tempos utópicos. Houve na história humana períodos sem utopia, com outros sonhos, mitos, crenças religiosas – mas não utopias. A utopia supõe que possamos tentar fazer com que ela se torne real. Em sua conferência, o sr. observa que o conceito de arte sofreu várias mudanças ao longo da história e que a cada momento corresponde uma "função" para a arte (religiosa, metafísica, política etc.). Qual seria a função da "arte em estado gasoso"? YVES MICHAUD: Parece-me que haveria dois tipos de função: de um lado, uma função hedonista, voltada para o prazer – mas uma nova forma de prazer, que flui bem, é cool, insinuante; de outro, uma função expressiva cujo objetivo é marcar as identidades. Fico sempre cativado ao ver o lugar que a arte ocupa quando se trata de tornar as identidades manifestas (arte coreana, arte aborígene, arte chinesa contemporânea etc.). O sr. afirma que não é apenas o Belo que pode produzir a experiência estética, mas também aquilo que é terrível, sublime, impressionante, feio etc. O que o sr. acha da "arte abjeta" e de suas conseqüências éticas? YVES MICHAUD: Se levamos a sério o componente subjetivo da percepção da arte, no limite não importa o que possa produzir experiência estética. Portanto, seria mais interessante examinar os fatores que tornam certas experiências esteticamente impossíveis. Podemos encontrar prazer estético na tortura, no mal, na abjeção, na inumanidade? Isso acontece, mas sob condições muito definidas, como por exemplo no cômico grotesco ou nos filmes de horror. Eu me interesso muito por essas questões, mas ainda não fixei totalmente minha reflexão, pois o problema é delicado. O compositor alemão Stockhausen, por exemplo, disse que os atentados de 11 de setembro em Nova York foram a maior obra de arte de todos os tempos, aquela com a qual sonham todos os músicos… O papel tradicional da estética mudou com a sociedade do espetáculo? A estética (como ciência do sensível) tornou-se estetização de si?YVES MICHAUD: Houve inicialmente um tempo da estética e da recepção tout court, mas parece-me que, progressivamente, o campo da estética se desloca dos objetos e da criação em direção a tudo aquilo que concerne a nossas vidas – e, bem entendido, em direção ao corpo. O dandismo do século XIX é uma primeira forma de estetização de si. Hoje em dia ela se tornou estetização de si no seio do consumo de massa. Por outro lado, a palavra "estética" quer dizer "cuidados corporais". Portanto, quando uma artista como a espanhola Ana-Maria Alaez instala um salão de beleza num museu de arte contemporânea, o círculo se fecha. Na conclusão de sua conferência, o sr. afirma que é "muito provável que as capacidades perceptivas humanas de base não mudem, mas, em contrapartida, mudem seus modos de intervenção nas condutas artísticas. Essas mudanças têm a ver com numerosos fatores, mas também nos mostram até que ponto o homem é um ser histórico e mutável". Os sr. vê hoje condições materiais para o surgimento de uma arte em estado não-gasoso?YVES MICHAUD: Em primeiro lugar, acredito que a história tem movimentos pendulares e que podemos nos cansar de uma arte da experiência e da sensação. Penso também que a necessidade de guardar e colecionar induz a pressões que se colocam mais no sentido da obra de arte do que da experiência: de fato, como guardar o vestígio de experiências fugidias? Quanto ao resto, eu seria pessimista – ou então seria o caso de pensar em novas formas de arte. O que não seria tão surpreendente, se pensarmos que em menos de dois séculos tivemos a invenção da fotografia e do cinema.
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