Maurice Merleau-Ponty:a obra fecunda 29/04/08 A filosofia como interrogação interminável.Por Marilena Chaui
Num curso sobre o conceito de Natureza, ministrado em 1956/57, no Collège de France, Merleau-Ponty afirma que o problema ontológico é aquele ao qual se subordinam todos os outros e por isso mesmo a ontologia não pode ser um teísmo, um naturalismo ou um humanismo, ou seja, não pode identificar o Ser com um dos seres - Deus, o homem ou a Natureza. Essa posição é reafirmada na última nota de trabalho de seu livro inacabado, O visível e o invisível, quando apresenta o plano de seu escrito, escrevendo: "Trata-se precisamente de mostrar que a filosofia não pode mais pensar segundo esta clivagem: Deus, o homem, as criaturas". Essa nota circunscreve três impulsos filosóficos que serão afastados pelo trabalho merleau-pontyano: o teológico, que coloca o Absoluto como ponto de partida; o humanista, presente tanto nas filosofias da consciência quanto nas antropologias filosóficas, que faz da subjetividade o ponto de partida; e, enfim, o naturalismo cientificista e o de um certo materialismo que, desejoso de corrigir as tendências anteriores, toma o homem e o mundo como processos objetivos impessoais.Essa última nota de trabalho de O visível e o invisível é paradoxal. Nela podemos encontrar retrospectivamente o projeto que guiou toda a obra merleau-pontyana, mas, simultaneamente, também a criação de um espaço de pensamento novo, que inclui como um de seus momentos a crítica do caminho que o próprio filósofo já havia trilhado. Com efeito, desde suas duas primeiras obras - A estrutura do comportamento e Fenomenologia da percepção -, Merleau-Ponty dera um lugar central à crítica do naturalismo (característico das filosofias empiristas e do positivismo científico) e do humanismo, isto é, da filosofia da consciência (inaugurada com Descartes e prosseguida com o idealismo transcendental Kant e Husserl). Há nessas obras uma incessante interrogação sobre a herança deixada pelo racionalismo moderno, qual seja, a cisão entre o corpóreo - tomado como pura exterioridade das coisas como composição ou mosaico de partes isoláveis - e o pensamento reflexivo - a presença da consciência a si mesma como pura interioridade, transparente em si e para si mesma, capaz de posse intelectual do mundo posto por ela como articulação de conceitos. Fundada na cisão entre sujeito e objeto, a herança deixada pelas filosofias reflexivas foi a separação e oposição entre corpo e alma, matéria e espírito, mundo e consciência, fato e idéia, sensível e inteligível, abandonando o ver e o sentir em nome do pensamento de ver e sentir, abandonando o mundo pela ilusão de um pensamento de sobrevôo.
No entanto, a crítica permanecia ainda no interior do quadro teórico aberto pela fenomenologia de Husserl e pela ontologia fundamental de Heidegger, de sorte que o pensamento merleaupontyano se mantinha no campo da filosofia da consciência e de uma certa antropologia filosófica, embora em momento algum o filósofo tivesse deixado de apontar as dificuldades para mover-se no interior desses parâmetros que, afinal, eram objeto de sua crítica. Somente a partir dos ensaios de Sinais e do livro póstumo, O visível e o invisível, encontramos uma ontologia radical que acertou as contas com a fenomenologia husserliana e a ontologia heideggeriana.Em A estrutura do comportamento, dedicada ao tema da relação entre corpo e espírito, Merleau-Ponty confronta as posições behavioristas e gestaltistas em psicologia, e afirma que o interesse pela noção de comportamento advém de suas possibilidades para uma compreensão do mundo humano que escape tanto da redução mecanicista dos acontecimentos psíquicos quanto da assimilação do psiquismo à consciência pura. Graças a essa noção, pensada como estrutura, o filósofo pode distinguir entre a ordem física, a biológica e a humana, ordens que não podem ser reduzidas umas às outras, mas dotadas de especificidade e diferença intrínseca. A elaboração da idéia de ordem humana como instituição da ordem simbólica da cultura efetuada pela percepção, pela linguagem e pelo trabalho, ou como relação com o possível e com o ausente, assegura a irredutibilidade dessa ordem à ordem física e à biológica, mas nem por isso a concebe como uma construção intelectual posta pela consciência reflexiva: o comportamento humano não é uma coisa nem é uma idéia. No entanto, o referencial de Merleau-Ponty ainda conserva ressonâncias da antropologia filosófica, pois o papel central é conferido à consciência perceptiva e não à percepção.Na Fenomenologia da percepção, a crítica se volta contra o intelectualismo das filosofias da consciência, particularmente as filosofias do idealismo transcendental, que, levando às últimas conseqüências a separação cartesiana entre o corpóreo e o anímico, afirmam que a subjetividade constitui a realidade ou põe o mundo a partir de si mesma. O mundo, escreve Merleau-Ponty, é mais velho do que a consciência e do que nós e a "percepção do mundo funda para sempre nossa idéia da verdade". Nessa obra, a invocação de um irrefletido e de um "cogito tácito", anteriores a toda tese posta pelo intelecto, visa encontrar na própria fenomenologia um meio para sair do recinto fechado da consciência de maneira a realizar efetivamente o projeto husserliano de "volta às próprias coisas". Assim, escreve ele: "A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo" antes de sua apropriação intelectual e já que a percepção funda nossa idéia da verdade, nosso corpo, enquanto corpo cognoscente, é iniciação ao mistério do mundo e da razão. Graças ao corpo, espaço, tempo, motricidade, sexualidade, linguagem, visão, emoção, pensamento e liberdade surgem na trama dos acontecimentos corporais e destituem a consciência reflexiva de seu papel constituinte soberano ou do insensato "projeto de posse intelectual do mundo".
Afastar-se da tradição das filosofias da consciência e do empirismo cientificista é buscar uma "razão alargada", abandonar a ilusão da subjetividade pura e de seu outro lado, a objetividade pura, construída pelas operações de um pensamento que se julga desencarnado. É tomar a filosofia não como explicação e sim como interrogação interminável. A interrogação merleau-pontyana se desdobra em três direções: por que a fé perceptiva, experiência mágica, é adesão ao mundo dado? Por que a ciência crê dispor soberanamente de seu objeto enquanto o constrói como se fora um algoritmo, submetendo-o às suas definições e ao seu próprio ideal de medida? Por que a filosofia acredita que o problema filosófico é um problema do conhecimento e do qual deve dar conta uma consciência purificada e legisladora, que discrimina a partir de si mesma o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário?Diante das operações da ciência e da filosofia cabe indagar: por que nossa existência é convertida em objeto de conhecimento, nosso corpo, em coisa qualquer, a percepção, em pensamento de perceber, a palavra, em pura significação, instrumento a serviço do mutismo do intelecto? Por que nossa inerência ao mundo, à história e à linguagem são dissimuladas? Recusa do imprevisível, o pensamento de sobrevôo é um "projeto de posse intelectual do mundo domesticado pelas representações construídas pelo sujeito do conhecimento". A crítica desse pensamento possessivo é, simultaneamente, afirmação de que a filosofia e a ciência não são a fonte do sentido e que não há um ponto de partida absoluto (Deus, o homem, a Natureza), mas um solo originário e uma inerência ao mundo que merecem ser interrogados.O mistério do mundo Ao distanciar-se de suas primeiras obras e buscar uma nova ontologia, Merleau-Ponty busca o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Sua interrogação vem exprimir-se numa espantosa nota de trabalho de O visível e o invisível: "O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência". Frase cujo prosseguimento reúne emblematicamente arte e filosofia, pois a nota continua: "filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente enquanto criações".Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte, no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do pensador. Se esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser.Que laço amarra num tecido único experiência, criação, origem e Ser? Aquele que prende Espírito Selvagem e Ser Bruto.Que é Espírito Selvagem? É o espírito de práxis, que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz "eu penso", e sim "eu quero", "eu posso", mas que não saberia como concretizar isto que ele quer e pode senão querendo e podendo, isto é, agindo, realizando uma experiência e sendo essa própria experiência. O que torna possível a experiência criadora é a existência de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas pelo sujeito como intenção de significar alguma coisa muito precisa e determinada, que faz do trabalho para realizar a intenção significativa o próprio caminho para preencher seu vazio e determinar sua indeterminação, levando à expressão o que ainda e nunca havia sido expresso.O Espírito Selvagem é atividade nascida de uma força - "eu quero", "eu posso" - e de uma carência ou lacuna que exigem preenchimento significativo. O sentimento do querer-poder e da falta suscitam a ação significadora que é, assim, experiência ativa de determinação do indeterminado: o pintor desvenda o invisível, o escritor quebra o silêncio, o pensador interroga o impensado. Realizam um trabalho no qual vem exprimir-se o co-pertencimento de uma intenção e de um gesto inseparáveis, de um sujeito que só se efetua como tal porque sai de si para ex-por sua interioridade prática como obra. É isso a criação, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experimentá-lo.Mas, por que Ser Bruto?O Ser Bruto é o ser de indivisão, que não foi submetido à separação (metafísica e científica) entre sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento. Indiviso, o Ser Bruto não é uma positividade substancial idêntica a si mesma e sim pura diferença interna de que o sensível, a linguagem e o inteligível são dimensões simultâneas e entrecruzadas. É por diferença que há o vermelho ou o verde entre as cores, pois uma cor não é um átomo colorido e sim modulação de uma diferença qualitativa de luz e sombra. É por diferença que há o alto e o baixo, o próximo e o distante, fazendo existir o espaço como qualidade ou pura diferenciação de lugares. É por diferença entre sons e entre signos que uma língua existe e se constitui como sistema expressivo, pois sons e signos não são átomos positivos e isoláveis, mas pura relação, posição e oposição. Ser Bruto, não sendo um positivo, também não é um negativo, mas aquilo que, por dentro, permite a positividade de um visível, de um dizível, de um pensável, como a nervura secreta que sustenta e conserva unidas as partes de uma folha, dando-lhe a estrutura que mantém diferenciados e inseparáveis o direito e o avesso: é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível, o indizível que faz dizer porque sustenta por dentro o dizível, o impensável que faz pensar porque sustenta por dentro o pensável.O Ser Bruto é a distância interna entre um visível e outro que é o seu invisível, entre um dizível e outro que é o seu dizível, entre um pensável e outro que é o seu impensável. É um "sistema de equivalências" diferenciado e diferenciador pelo qual há mundo. Desatando os liames costumeiros entre as coisas, o Ser Bruto abre acesso a uma relação originária entre elas como diferenças qualitativas que se exibem e se interpretam a si mesmas enquanto famílias das cores, das texturas, dos sons, dos odores que reenviam à substancialidade impalpável do que as faz vir a ser. Se o Ser exige de nós criação para que dele tenhamos experiência, entretanto, não deposita toda a iniciativa do vir-a-ser na atividade do Espírito Selvagem, mas, como Ser Bruto, compartilha daquele o trabalho criativo, dando-lhe o fundo do qual e no qual a criação emerge.Ser Bruto e Espírito Selvagem estão entrelaçados, abraçados e enlaçados: o invisível permite o trabalho de criação do visível; o indizível, o do dizível; o impensável, o do pensável. Merleau-Ponty fala numa visão, numa fala e num pensar instituintes que empregam o instituído - a cultura - para fazer surgir o jamais visto, jamais dito, jamais pensado - a obra.Abraçados e enlaçados, Espírito Selvagem e Ser Bruto são a polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas. Carne: habitadas por significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo não é uma máquina de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior, mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em idéias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne.A Carne do Mundo é o que é visível por si mesmo, dizível por si mesmo, pensável por si mesmo, sem, contudo, ser um pleno maciço, e sim, paradoxalmente, um pleno poroso, habitado por um oco pelo qual um positivo contém nele mesmo o negativo que aspira por ser, uma falta no próprio Ser, fissura que se preenche ao cavar-se e que se cava ao preencher-se. Não é, pois, uma presença plena, mas presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual não poderia vir a ser. A Carne do Mundo é o quiasma ou o entrecruzamento do visível e do invisível, do dizível e do indizível, do pensável e do impensável, cuja diferenciação, comunicação e reversibilidade se fazem por si mesmas como estofo do mundo. Ser de indivisão, o Ser Bruto é o que não cessa de diferenciar-se por si mesmo, duplicando todos os seres, fazendo-os ter um fora e um dentro reversíveis e parentes. Assim, se é por ele que somos dados ao Ser, como a criança é dada à luz ao emergir do interior do corpo materno, no entanto, é por nós que ele se manifesta, como no instante glorioso em que o pintor faz vir ao visível um outro visível, que recolhe o primeiro e lhe confere um sentido novo. O mundo da cultura, fecundidade que passa, mas não cessa, é o parto interminável do Ser Bruto e do Espírito Selvagem.Buscá-los é desamarrar os laços que amarravam o pensamento à tradição filosófica e recomeçar a interrogação, interpelando, de um lado, as obras filosóficas para nelas encontrar as questões que as fizeram nascer e viver em seu tempo e sua hora, mas, por outro , interpelando a obra de arte como abertura para aquilo que a filosofia e a ciência deixaram de interrogar ou imaginaram haver respondido. "A ciência manipula as coisas e recusa-se a habitá-las", lemos na abertura de seu último ensaio, O olho e o espírito. Empregando instrumentos técnicos, constrói o mundo como Objeto em Geral, destinado a ser apenas aquilo que lhe é permitido ser pelas operações que o construíram. A filosofia, por seu turno, erige-se em Sujeito Universal que, de lugar algum e de tempo nenhum, ergue-se como puro olhar intelectual desencarnado que contempla soberanamente o mundo, dominando-o por meio de representações construídas pelas operações intelectuais. A tradição filosófico-científica e seu efeito principal - a tecnologia como domínio instrumental dos constructos - é abandono do mundo, mais velho do que nós e do que nossas representações, e abandono do pensamento encarnado num corpo, que pensa por contato e por inerência às coisas, alcançando-as de modo oblíquo e indireto.A experiência: atividade e passividade simultâneasSe o sair de si e o entrar em si definem o espírito, se o mundo é carne ou interioridade e a consciência está originariamente encarnada, a experiência já não pode ser o que era para o empirismo, isto é, passividade receptiva e resposta a estímulos sensoriais externos, mosaico de sensações que se associam mecanicamente para formar percepções, imagens e idéias; nem pode ser o que era para o intelectualismo, isto é, atividade de inspeção intelectual do mundo. Percebida, doravante, como nosso modo de ser e de existir no mundo, a experiência será aquilo que ela sempre foi: iniciação aos mistérios do mundo."É à experiência que nos dirigimos para que nos abra ao que não é nós", lemos numa nota de O visível e o invisível. É exercício do que ainda não foi submetido à separação sujeito-objeto. É promiscuidade das coisas, dos corpos, das palavras, das idéias. É atividade-passividade indiscerníveis. Abertura para o que não é nós, excentricidade muito mais do que descentramento, a experiência, escreve Merleau-Ponty em "O olho e o espírito", é "o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do Ser, fechando-me sobre mim mesmo somente quando ela chega ao fim", isto é, nunca.Debrucemo-nos um instante sobre essa curiosa expressão: fissão no Ser.A tradição filosófica jamais conseguiu suportar que a experiência seja ato selvagem do querer e do poder, inerência de nosso ser ao mundo. Fugindo dela ou buscando domesticá-la, a filosofia sempre procurou refúgio no pensamento da experiência, isto é, representada pelo entendimento e portanto, neutralizada: tida como região do conhecimento confuso ou inacabado, a experiência como exercício promíscuo de um espírito encarnado só poderia tornar-se conhecível e inteligível se fosse transformada numa representação ou no pensamento de experimentar, pensamento de ver, pensamento de falar, pensamento de pensar. Assim procedendo, a tradição, tanto empirista como intelectualista, cindiu o ato e o sentido da experiência, colocando o primeiro na esfera do confuso e o segundo na do conceito. Compreender a experiência exigia sair de seu recinto, destacar-se dela para, graças à separação, pensá-la e explicá-la, de sorte que em lugar da compreensão da experiência, obteve-se a experiência compreendida, um discurso sobre ela para silenciá-la enquanto fala própria.Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao recinto da encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a filosofia julgava poder explicá-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão no Ser.Fissão: as cosmologias e a física nuclear decifram a origem do universo pela explosão da massa em energia cuja peculiaridade está em que as novas partículas produzidas são de mesma espécie das que as produziram, de tal maneira que o próprio Ser divide-se por dentro sem se separar de si mesmo, diferencia-se de si mesmo permanecendo em si mesmo como diferença de si a si.Quando invoca a experiência do pintor, ou do músico ou do escritor, para contrapô-las ao modo como a filosofia interpreta a experiência, Merleau-Ponty se demora naqueles instantes em que ver, ouvir ou falar-escrever atravessam a carapaça da cultura instituída e desnudam o originário de um mundo visível, sonoro e falante. Ao se referir a esses instantes com a expressão fissão no Ser, busca significá-los como divisão no interior da indivisão:a experiência se efetua como aquele momento no qual um visível (o corpo do pintor) se faz vidente sem sair da visibilidade e um vidente se faz visível (o quadro) sem sair da visibilidade; no qual um ouvinte (o corpo do músico) se faz sonoro sem sair da sonoridade e um sonoro (a música) se faz audível sem sair da sonoridade; no qual um falante (o corpo do escritor) se faz dizível sem abandonar a linguagem e um dizível (o texto) se faz falante sem sair da linguagem.A experiência é cisão que não separa - o pintor traz seu corpo para olhar o que não é ele, o músico traz seu corpo para ouvir o que ainda não tem som, o escritor traz a volubilidade de seu espírito para cercar aquilo que se diz sem ele -e é indivisão que não identifica - Cézanne não é a Montanha Santa Vitória, Mozart não é a Flauta Mágica, Guimarães Rosa não é Diadorim. A experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação, de unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz Outro no interior de si mesmo.O que é a experiência da visão? É o ato de ver, advento simultâneo do vidente e do visível como reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência da linguagem? É o ato de dizer como advento simultâneo do dizente e do dizível, graças ao silêncio que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência do pensamento? É o ato de pensar como advento simultâneo do pensamento e do pensável, graças ao impensado que misteriosamente os sustenta. A experiência é o que em nós se vê quando vemos, o que em nós se fala quando falamos, o que em nós se pensa quando pensamos. Nenhum dos termos é origem: visível, dizível e pensável não existem em si como coisas ou idéias; vidente, falante e pensante não são operações de um sujeito como pura consciência desencarnada; visível, dizível e pensável não são causas da visão, da linguagem e do pensamento, assim como o vidente, o falante e o pensante não são causadores intelectuais do ver, falar e pensar. São simultâneos e diferentes, são reversíveis e entrecruzados, existem juntos ou coexistem sustentados pelo fundo não visível, não proferido e não pensado.São o originário porque a origem é, aqui e agora, a junção de um dentro e um fora, de um passado e de um porvir, de um antes e um depois, proliferação e irradiação de um fundo imemorial que só existe proliferando-se e irradiando-se.A experiência é diferenciadora: distingue entre vidente e visível, tocante e tocado, falante e falado, pensante e pensado, assim como distingue entre ver e tocar, ver ou tocar e falar, ver ou tocar, falar e pensar. Ver é diferente de tocar, ambos são diferentes de falar e pensar, falar é diferente de ver e pensar; pensar, diferente de ver, tocar ou falar. Abolir essas diferenças seria regressar à Subjetividade como consciência representadora que reduz todos os termos à homogeneidade de representações claras e distintas. Porém, a diferenciação própria da experiência não é posta por ela: manifesta-se nela porque é o próprio mundo que se põe a si mesmo como visível-invisível, dizível-indizível, pensável-impensável. No entanto, a cisão dos termos, que os distingue sem separá-los e o une sem identificá-los, só é possível porque o mundo como Carne é coesão interna, a indivisão que sustenta os diferentes como dimensões simultâneas do mesmo Ser. O mundo é simultaneidade de dimensões diferenciadas.A experiência é o fundo que sustenta a manifestação da própria experiência, sem o qual ela não existiria - como a figura não existe sem o fundo - e graças ao qual os termos que a constituem são reversíveis - como o fundo que se torna figura e a figura que se torna fundo. Esse fundo imemorial, essa ausência que suscita uma presença, é inesgotável: não há uma visão total que veria tudo e completamente, pois para ver é preciso a profundidade e esta nunca pode ser vista; não há uma linguagem total que diria tudo e completamente, pois para falar é preciso o silêncio sem o qual nenhuma palavra poderia ser proferida; não há um pensamento total que pensaria tudo e completamente, pois para pensar é preciso o impensado que faz pensar e dá a pensar. Assim, se o fundo é uma ausência que pede uma presença, um vazio que pede preenchimento, ele é também, e simultaneamente, um excesso: o que nos leva a buscar novas expressões é o excesso do que queremos exprimir sobre o que já foi expresso. A cultura sedimenta e cristaliza as expressões, mas o instituído carrega um vazio e um excesso que pedem nova instituição, novas expressões.
No entanto, a crítica permanecia ainda no interior do quadro teórico aberto pela fenomenologia de Husserl e pela ontologia fundamental de Heidegger, de sorte que o pensamento merleaupontyano se mantinha no campo da filosofia da consciência e de uma certa antropologia filosófica, embora em momento algum o filósofo tivesse deixado de apontar as dificuldades para mover-se no interior desses parâmetros que, afinal, eram objeto de sua crítica. Somente a partir dos ensaios de Sinais e do livro póstumo, O visível e o invisível, encontramos uma ontologia radical que acertou as contas com a fenomenologia husserliana e a ontologia heideggeriana.Em A estrutura do comportamento, dedicada ao tema da relação entre corpo e espírito, Merleau-Ponty confronta as posições behavioristas e gestaltistas em psicologia, e afirma que o interesse pela noção de comportamento advém de suas possibilidades para uma compreensão do mundo humano que escape tanto da redução mecanicista dos acontecimentos psíquicos quanto da assimilação do psiquismo à consciência pura. Graças a essa noção, pensada como estrutura, o filósofo pode distinguir entre a ordem física, a biológica e a humana, ordens que não podem ser reduzidas umas às outras, mas dotadas de especificidade e diferença intrínseca. A elaboração da idéia de ordem humana como instituição da ordem simbólica da cultura efetuada pela percepção, pela linguagem e pelo trabalho, ou como relação com o possível e com o ausente, assegura a irredutibilidade dessa ordem à ordem física e à biológica, mas nem por isso a concebe como uma construção intelectual posta pela consciência reflexiva: o comportamento humano não é uma coisa nem é uma idéia. No entanto, o referencial de Merleau-Ponty ainda conserva ressonâncias da antropologia filosófica, pois o papel central é conferido à consciência perceptiva e não à percepção.Na Fenomenologia da percepção, a crítica se volta contra o intelectualismo das filosofias da consciência, particularmente as filosofias do idealismo transcendental, que, levando às últimas conseqüências a separação cartesiana entre o corpóreo e o anímico, afirmam que a subjetividade constitui a realidade ou põe o mundo a partir de si mesma. O mundo, escreve Merleau-Ponty, é mais velho do que a consciência e do que nós e a "percepção do mundo funda para sempre nossa idéia da verdade". Nessa obra, a invocação de um irrefletido e de um "cogito tácito", anteriores a toda tese posta pelo intelecto, visa encontrar na própria fenomenologia um meio para sair do recinto fechado da consciência de maneira a realizar efetivamente o projeto husserliano de "volta às próprias coisas". Assim, escreve ele: "A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo" antes de sua apropriação intelectual e já que a percepção funda nossa idéia da verdade, nosso corpo, enquanto corpo cognoscente, é iniciação ao mistério do mundo e da razão. Graças ao corpo, espaço, tempo, motricidade, sexualidade, linguagem, visão, emoção, pensamento e liberdade surgem na trama dos acontecimentos corporais e destituem a consciência reflexiva de seu papel constituinte soberano ou do insensato "projeto de posse intelectual do mundo".
Afastar-se da tradição das filosofias da consciência e do empirismo cientificista é buscar uma "razão alargada", abandonar a ilusão da subjetividade pura e de seu outro lado, a objetividade pura, construída pelas operações de um pensamento que se julga desencarnado. É tomar a filosofia não como explicação e sim como interrogação interminável. A interrogação merleau-pontyana se desdobra em três direções: por que a fé perceptiva, experiência mágica, é adesão ao mundo dado? Por que a ciência crê dispor soberanamente de seu objeto enquanto o constrói como se fora um algoritmo, submetendo-o às suas definições e ao seu próprio ideal de medida? Por que a filosofia acredita que o problema filosófico é um problema do conhecimento e do qual deve dar conta uma consciência purificada e legisladora, que discrimina a partir de si mesma o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário?Diante das operações da ciência e da filosofia cabe indagar: por que nossa existência é convertida em objeto de conhecimento, nosso corpo, em coisa qualquer, a percepção, em pensamento de perceber, a palavra, em pura significação, instrumento a serviço do mutismo do intelecto? Por que nossa inerência ao mundo, à história e à linguagem são dissimuladas? Recusa do imprevisível, o pensamento de sobrevôo é um "projeto de posse intelectual do mundo domesticado pelas representações construídas pelo sujeito do conhecimento". A crítica desse pensamento possessivo é, simultaneamente, afirmação de que a filosofia e a ciência não são a fonte do sentido e que não há um ponto de partida absoluto (Deus, o homem, a Natureza), mas um solo originário e uma inerência ao mundo que merecem ser interrogados.O mistério do mundo Ao distanciar-se de suas primeiras obras e buscar uma nova ontologia, Merleau-Ponty busca o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Sua interrogação vem exprimir-se numa espantosa nota de trabalho de O visível e o invisível: "O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência". Frase cujo prosseguimento reúne emblematicamente arte e filosofia, pois a nota continua: "filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente enquanto criações".Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte, no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do pensador. Se esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser.Que laço amarra num tecido único experiência, criação, origem e Ser? Aquele que prende Espírito Selvagem e Ser Bruto.Que é Espírito Selvagem? É o espírito de práxis, que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz "eu penso", e sim "eu quero", "eu posso", mas que não saberia como concretizar isto que ele quer e pode senão querendo e podendo, isto é, agindo, realizando uma experiência e sendo essa própria experiência. O que torna possível a experiência criadora é a existência de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas pelo sujeito como intenção de significar alguma coisa muito precisa e determinada, que faz do trabalho para realizar a intenção significativa o próprio caminho para preencher seu vazio e determinar sua indeterminação, levando à expressão o que ainda e nunca havia sido expresso.O Espírito Selvagem é atividade nascida de uma força - "eu quero", "eu posso" - e de uma carência ou lacuna que exigem preenchimento significativo. O sentimento do querer-poder e da falta suscitam a ação significadora que é, assim, experiência ativa de determinação do indeterminado: o pintor desvenda o invisível, o escritor quebra o silêncio, o pensador interroga o impensado. Realizam um trabalho no qual vem exprimir-se o co-pertencimento de uma intenção e de um gesto inseparáveis, de um sujeito que só se efetua como tal porque sai de si para ex-por sua interioridade prática como obra. É isso a criação, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experimentá-lo.Mas, por que Ser Bruto?O Ser Bruto é o ser de indivisão, que não foi submetido à separação (metafísica e científica) entre sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento. Indiviso, o Ser Bruto não é uma positividade substancial idêntica a si mesma e sim pura diferença interna de que o sensível, a linguagem e o inteligível são dimensões simultâneas e entrecruzadas. É por diferença que há o vermelho ou o verde entre as cores, pois uma cor não é um átomo colorido e sim modulação de uma diferença qualitativa de luz e sombra. É por diferença que há o alto e o baixo, o próximo e o distante, fazendo existir o espaço como qualidade ou pura diferenciação de lugares. É por diferença entre sons e entre signos que uma língua existe e se constitui como sistema expressivo, pois sons e signos não são átomos positivos e isoláveis, mas pura relação, posição e oposição. Ser Bruto, não sendo um positivo, também não é um negativo, mas aquilo que, por dentro, permite a positividade de um visível, de um dizível, de um pensável, como a nervura secreta que sustenta e conserva unidas as partes de uma folha, dando-lhe a estrutura que mantém diferenciados e inseparáveis o direito e o avesso: é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível, o indizível que faz dizer porque sustenta por dentro o dizível, o impensável que faz pensar porque sustenta por dentro o pensável.O Ser Bruto é a distância interna entre um visível e outro que é o seu invisível, entre um dizível e outro que é o seu dizível, entre um pensável e outro que é o seu impensável. É um "sistema de equivalências" diferenciado e diferenciador pelo qual há mundo. Desatando os liames costumeiros entre as coisas, o Ser Bruto abre acesso a uma relação originária entre elas como diferenças qualitativas que se exibem e se interpretam a si mesmas enquanto famílias das cores, das texturas, dos sons, dos odores que reenviam à substancialidade impalpável do que as faz vir a ser. Se o Ser exige de nós criação para que dele tenhamos experiência, entretanto, não deposita toda a iniciativa do vir-a-ser na atividade do Espírito Selvagem, mas, como Ser Bruto, compartilha daquele o trabalho criativo, dando-lhe o fundo do qual e no qual a criação emerge.Ser Bruto e Espírito Selvagem estão entrelaçados, abraçados e enlaçados: o invisível permite o trabalho de criação do visível; o indizível, o do dizível; o impensável, o do pensável. Merleau-Ponty fala numa visão, numa fala e num pensar instituintes que empregam o instituído - a cultura - para fazer surgir o jamais visto, jamais dito, jamais pensado - a obra.Abraçados e enlaçados, Espírito Selvagem e Ser Bruto são a polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas. Carne: habitadas por significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo não é uma máquina de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior, mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em idéias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne.A Carne do Mundo é o que é visível por si mesmo, dizível por si mesmo, pensável por si mesmo, sem, contudo, ser um pleno maciço, e sim, paradoxalmente, um pleno poroso, habitado por um oco pelo qual um positivo contém nele mesmo o negativo que aspira por ser, uma falta no próprio Ser, fissura que se preenche ao cavar-se e que se cava ao preencher-se. Não é, pois, uma presença plena, mas presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual não poderia vir a ser. A Carne do Mundo é o quiasma ou o entrecruzamento do visível e do invisível, do dizível e do indizível, do pensável e do impensável, cuja diferenciação, comunicação e reversibilidade se fazem por si mesmas como estofo do mundo. Ser de indivisão, o Ser Bruto é o que não cessa de diferenciar-se por si mesmo, duplicando todos os seres, fazendo-os ter um fora e um dentro reversíveis e parentes. Assim, se é por ele que somos dados ao Ser, como a criança é dada à luz ao emergir do interior do corpo materno, no entanto, é por nós que ele se manifesta, como no instante glorioso em que o pintor faz vir ao visível um outro visível, que recolhe o primeiro e lhe confere um sentido novo. O mundo da cultura, fecundidade que passa, mas não cessa, é o parto interminável do Ser Bruto e do Espírito Selvagem.Buscá-los é desamarrar os laços que amarravam o pensamento à tradição filosófica e recomeçar a interrogação, interpelando, de um lado, as obras filosóficas para nelas encontrar as questões que as fizeram nascer e viver em seu tempo e sua hora, mas, por outro , interpelando a obra de arte como abertura para aquilo que a filosofia e a ciência deixaram de interrogar ou imaginaram haver respondido. "A ciência manipula as coisas e recusa-se a habitá-las", lemos na abertura de seu último ensaio, O olho e o espírito. Empregando instrumentos técnicos, constrói o mundo como Objeto em Geral, destinado a ser apenas aquilo que lhe é permitido ser pelas operações que o construíram. A filosofia, por seu turno, erige-se em Sujeito Universal que, de lugar algum e de tempo nenhum, ergue-se como puro olhar intelectual desencarnado que contempla soberanamente o mundo, dominando-o por meio de representações construídas pelas operações intelectuais. A tradição filosófico-científica e seu efeito principal - a tecnologia como domínio instrumental dos constructos - é abandono do mundo, mais velho do que nós e do que nossas representações, e abandono do pensamento encarnado num corpo, que pensa por contato e por inerência às coisas, alcançando-as de modo oblíquo e indireto.A experiência: atividade e passividade simultâneasSe o sair de si e o entrar em si definem o espírito, se o mundo é carne ou interioridade e a consciência está originariamente encarnada, a experiência já não pode ser o que era para o empirismo, isto é, passividade receptiva e resposta a estímulos sensoriais externos, mosaico de sensações que se associam mecanicamente para formar percepções, imagens e idéias; nem pode ser o que era para o intelectualismo, isto é, atividade de inspeção intelectual do mundo. Percebida, doravante, como nosso modo de ser e de existir no mundo, a experiência será aquilo que ela sempre foi: iniciação aos mistérios do mundo."É à experiência que nos dirigimos para que nos abra ao que não é nós", lemos numa nota de O visível e o invisível. É exercício do que ainda não foi submetido à separação sujeito-objeto. É promiscuidade das coisas, dos corpos, das palavras, das idéias. É atividade-passividade indiscerníveis. Abertura para o que não é nós, excentricidade muito mais do que descentramento, a experiência, escreve Merleau-Ponty em "O olho e o espírito", é "o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do Ser, fechando-me sobre mim mesmo somente quando ela chega ao fim", isto é, nunca.Debrucemo-nos um instante sobre essa curiosa expressão: fissão no Ser.A tradição filosófica jamais conseguiu suportar que a experiência seja ato selvagem do querer e do poder, inerência de nosso ser ao mundo. Fugindo dela ou buscando domesticá-la, a filosofia sempre procurou refúgio no pensamento da experiência, isto é, representada pelo entendimento e portanto, neutralizada: tida como região do conhecimento confuso ou inacabado, a experiência como exercício promíscuo de um espírito encarnado só poderia tornar-se conhecível e inteligível se fosse transformada numa representação ou no pensamento de experimentar, pensamento de ver, pensamento de falar, pensamento de pensar. Assim procedendo, a tradição, tanto empirista como intelectualista, cindiu o ato e o sentido da experiência, colocando o primeiro na esfera do confuso e o segundo na do conceito. Compreender a experiência exigia sair de seu recinto, destacar-se dela para, graças à separação, pensá-la e explicá-la, de sorte que em lugar da compreensão da experiência, obteve-se a experiência compreendida, um discurso sobre ela para silenciá-la enquanto fala própria.Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao recinto da encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a filosofia julgava poder explicá-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão no Ser.Fissão: as cosmologias e a física nuclear decifram a origem do universo pela explosão da massa em energia cuja peculiaridade está em que as novas partículas produzidas são de mesma espécie das que as produziram, de tal maneira que o próprio Ser divide-se por dentro sem se separar de si mesmo, diferencia-se de si mesmo permanecendo em si mesmo como diferença de si a si.Quando invoca a experiência do pintor, ou do músico ou do escritor, para contrapô-las ao modo como a filosofia interpreta a experiência, Merleau-Ponty se demora naqueles instantes em que ver, ouvir ou falar-escrever atravessam a carapaça da cultura instituída e desnudam o originário de um mundo visível, sonoro e falante. Ao se referir a esses instantes com a expressão fissão no Ser, busca significá-los como divisão no interior da indivisão:a experiência se efetua como aquele momento no qual um visível (o corpo do pintor) se faz vidente sem sair da visibilidade e um vidente se faz visível (o quadro) sem sair da visibilidade; no qual um ouvinte (o corpo do músico) se faz sonoro sem sair da sonoridade e um sonoro (a música) se faz audível sem sair da sonoridade; no qual um falante (o corpo do escritor) se faz dizível sem abandonar a linguagem e um dizível (o texto) se faz falante sem sair da linguagem.A experiência é cisão que não separa - o pintor traz seu corpo para olhar o que não é ele, o músico traz seu corpo para ouvir o que ainda não tem som, o escritor traz a volubilidade de seu espírito para cercar aquilo que se diz sem ele -e é indivisão que não identifica - Cézanne não é a Montanha Santa Vitória, Mozart não é a Flauta Mágica, Guimarães Rosa não é Diadorim. A experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação, de unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz Outro no interior de si mesmo.O que é a experiência da visão? É o ato de ver, advento simultâneo do vidente e do visível como reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência da linguagem? É o ato de dizer como advento simultâneo do dizente e do dizível, graças ao silêncio que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência do pensamento? É o ato de pensar como advento simultâneo do pensamento e do pensável, graças ao impensado que misteriosamente os sustenta. A experiência é o que em nós se vê quando vemos, o que em nós se fala quando falamos, o que em nós se pensa quando pensamos. Nenhum dos termos é origem: visível, dizível e pensável não existem em si como coisas ou idéias; vidente, falante e pensante não são operações de um sujeito como pura consciência desencarnada; visível, dizível e pensável não são causas da visão, da linguagem e do pensamento, assim como o vidente, o falante e o pensante não são causadores intelectuais do ver, falar e pensar. São simultâneos e diferentes, são reversíveis e entrecruzados, existem juntos ou coexistem sustentados pelo fundo não visível, não proferido e não pensado.São o originário porque a origem é, aqui e agora, a junção de um dentro e um fora, de um passado e de um porvir, de um antes e um depois, proliferação e irradiação de um fundo imemorial que só existe proliferando-se e irradiando-se.A experiência é diferenciadora: distingue entre vidente e visível, tocante e tocado, falante e falado, pensante e pensado, assim como distingue entre ver e tocar, ver ou tocar e falar, ver ou tocar, falar e pensar. Ver é diferente de tocar, ambos são diferentes de falar e pensar, falar é diferente de ver e pensar; pensar, diferente de ver, tocar ou falar. Abolir essas diferenças seria regressar à Subjetividade como consciência representadora que reduz todos os termos à homogeneidade de representações claras e distintas. Porém, a diferenciação própria da experiência não é posta por ela: manifesta-se nela porque é o próprio mundo que se põe a si mesmo como visível-invisível, dizível-indizível, pensável-impensável. No entanto, a cisão dos termos, que os distingue sem separá-los e o une sem identificá-los, só é possível porque o mundo como Carne é coesão interna, a indivisão que sustenta os diferentes como dimensões simultâneas do mesmo Ser. O mundo é simultaneidade de dimensões diferenciadas.A experiência é o fundo que sustenta a manifestação da própria experiência, sem o qual ela não existiria - como a figura não existe sem o fundo - e graças ao qual os termos que a constituem são reversíveis - como o fundo que se torna figura e a figura que se torna fundo. Esse fundo imemorial, essa ausência que suscita uma presença, é inesgotável: não há uma visão total que veria tudo e completamente, pois para ver é preciso a profundidade e esta nunca pode ser vista; não há uma linguagem total que diria tudo e completamente, pois para falar é preciso o silêncio sem o qual nenhuma palavra poderia ser proferida; não há um pensamento total que pensaria tudo e completamente, pois para pensar é preciso o impensado que faz pensar e dá a pensar. Assim, se o fundo é uma ausência que pede uma presença, um vazio que pede preenchimento, ele é também, e simultaneamente, um excesso: o que nos leva a buscar novas expressões é o excesso do que queremos exprimir sobre o que já foi expresso. A cultura sedimenta e cristaliza as expressões, mas o instituído carrega um vazio e um excesso que pedem nova instituição, novas expressões.
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