A herança racista e oligarca da elite de Santa Cruz 28/04/08

Wilfredo Plata – A semelhança está no fato de que ambos os grupos surgem na mesma época, fim do século 19. Na mesma época em que se começa a explorar estanho no ocidente, tem início a produção da borracha no nordeste boliviano. Ambos estão ligados ao mercado internacional. O boom da borracha dura 30 anos, enquanto a mineração dura por quase todo o século 20.
Ximena – O boom da borracha se dá na Amazônia peruana, boliviana e brasileira. É época também da imigração européia, de imigrantes pobres, sobretudo para a Argentina, Uruguai... mas muitos se assentam também na Bolívia, chegando desde a Amazônia brasileira e peruana. E a saída principal da borracha era Belém do Pará. E de fato, a guerra do Acre, entre Brasil e Bolívia, se dá pela borracha, e o Tratado de Petrópolis diz que, em troca de sua assinatura, se construiria uma ferrovia Madeira-Mamoré, para tirar a borracha. É o mesmo que aconteceu com o Pacífico para tirar o estanho.Wilfredo – Ou seja, podemos dizer que ambas as regiões exportam matéria-prima, para ser convertida em produto de valor agregado na Europa.

Ximena – O problema aí é que o Estado investe na construção de uma burguesia nacional. Mas, esse setor, na etapa da ditadura, pelo menos de 1964 a 1980, volta à sua fonte comercial, a borracha. Os créditos recebidos para o algodão normalmente se desviavam para o setor terciário: em Santa Cruz, crescia a construção, serviços básicos, o sistema bancário. Parece que a lógica econômica desse setor segue sendo a de matérias-primas, da borracha ou do estanho. E se relacionam com a agricultura em momentos de auge econômico. Mas não é uma relação estável com a agricultura, e nem provê o mercado nacional. Está somente olhando para o mercado internacional. É por isso que hoje se defende os produtores de óleo de cozinha, mas não se fala nada dos consumidores de óleo, que estão na Bolívia, estão em Santa Cruz.Wilfredo – Primeiro foi a borracha. Depois de 1952, o algodão, e em seguida a soja.Ximena – E tememos que o próximo boom seja, mantendo a soja, o do açúcar, devido aos agrocombustíveis, A América Latina, nesse tema, se converte num lugar central do mundo. Não se pode produzir alimentos para energia na Europa. Os EUA estão fazendo, com o uso da soja e do milho. Então, requerem a importação de alimentos. Nossos Estados fracos e sua inserção no capitalismo internacional vão fazer com que haja um boom para a produção de agrocombustível, e não para a alimentação humana. O remédio é pior que a doença.Então, com os agrocombustíveis, a oligarquia de Santa Cruz só tende a ganhar mais força.Wilfredo – Nós fizemos uma investigação e a conclusão nos diz que essa burguesia nacional, que foi criada pelo Estado nacional, tem uma visão local, regional. Está olhando o exterior, mas localmente. Não olha para o ocidente. É uma visão anti-nacional. Em outras palavras, se apropriam da região mais rica da Bolívia, em termos de recursos naturais.Ximena – E sua lógica econômica condiciona sua lógica política. Não podem produzir um projeto político nacional. Esse é o limite. O que pode levar a um processo de separação política e administrativa da Bolívia. E a um suicídio coletivo.Qual o papel dos latifundiários estrangeiros em geral, e dos brasileiros em particular, nesse contexto?
Ximena – Nos últimos tempos, têm chegado grandes produtores brasileiros e argentinos. Parece que os produtores de soja na Bolívia são um transbordamento da economia sojeira no Brasil e na Argentina. Porque as condições de acesso à terra aqui são muito mais fáceis. Quase não há pagamento de impostos. Ou esses produtores compram terra, ou alugam dos latifúndios. A participação dos produtores de soja brasileiros e argentinos é forte. O que produzem mais soja são os brasileiros, em termos de superfície. Depois dos brasileiros, vêm os produtores nacionais, divididos entre pequenos, médios e grandes. No âmbito nacional, quem mais produz são os pequenos. Estamos então com uma forte conexão da indústria agrícola boliviana e brasileira. De fato, o modelo econômico é similar em relação à soja, de expansão da fronteira agrícola. Não há investimento em tecnologia, como no mercado argentino.E como se inserem, nesse contexto, os acontecimentos recentes no chaco boliviano, em Alto Parapetí?Wilfredo – Tem relação direta, tem a ver com a terra. E aí, existe um tema de longa data, o da servidão dos povos guaranis. Há uma espécie de manto que cobre isso, mas isso está demonstrado, há trabalhos a respeito. O que acontece é que existe essa relação de servidão, de famílias que estão cativas, que não recebem salários, que não tem horários estabelecidos.Ximena – E aí que se mostra que é uma lógica econômica. Assim como vivem juntas a empresa agrícola e o latifúndio, podem conviver o salário ao camponês com a servidão. É uma lógica que nos mostra porque hoje as instituições crucenhas, como os comitês cívicos e o governo departamental, defendem os proprietários de terra de Alto Parapetí e do resto do chaco boliviano. Não é um capitalismo pleno, é um capitalismo colonial. Que pode usar escravidão, servidão e salário. Não há contradição nisso, porque não lhes interessa chegar a um capitalismo pleno, como queria a burguesia nacional em 1952, e sim extrair matéria-prima, excedente e lucro da melhor maneira possível. Como não existia um Estado forte, que defendesse os interesses de seus trabalhadores, no século XXI, ainda se mantém a servidão na Bolívia. E a elite crucenha defende esse modelo.

Ximena – As elites que se modernizaram ascendem por méritos. Sim, nascem com sobrenomes de uma família, mas há setores de profissionais que, por seus méritos, por seus trabalhos, ascendem socialmente. Isso não acontece na Bolívia porque sua elite não é moderna. Porque não é uma burguesia completamente capitalista. Então, aqui, por um lado, fatores como o sobrenome, a cor da pele, os amigos e as relações configuram essa elite. Por outro, diferentemente do que ocorre no ocidente, no oriente não há uma renovação de elites, não há movimentos sociais, operários, indígenas, camponeses, populares, que tenham questionado as elites do oriente. Enquanto no ocidente houve a Revolução de 1952. O retorno à democracia e o período 2000-2005 também questionam e derrotam essas elites. As elites que surgiram tiveram que incorporar as demandas dos movimentos sociais. Em Santa Cruz, isso não acontece, não precisam incorporar, porque não tem um grupo interno que os questione, que os desaloje. Enquanto no ocidente há uma acumulação histórica de movimentos sociais, no oriente há uma acumulação histórica de elites, que transformam seu discurso de acordo com o contexto. Agora, por exemplo, estão incorporando o tema indígena. Mas “o autêntico indígena está atrás de mim”. Há uma assimilação do indígena, uma incorporação, enquanto este esteja a seu favor, senão é excluído. Então, mudam o discurso, mas a lógica, o fundamento, segue sendo o mesmo de há 130 anos.Então se pode dizer que esta elite é a mesma de 130 anos atrás.Ximena – A lógica é a mesma. Não é um problema de família. Há famílias que entram e que saem. As que empobrecem e as que enriquecem. Há, claro, sobrenomes que continuam, mas o que conta é a lógica. Seu modelo econômico é o extrativo do século 19. E o racismo contra a população indígena é da mesma época. Que, se não for para exterminá-la, deve-se assimilá-la como mão-de-obra.Wilfredo – Além disso, é uma elite voltada para si mesmo, porque se concebe nos EUA, na Europa, uma elite branca, de língua espanhola, que no fundo despreza o indígena, a língua indígena. Especialmente, nos últimos tempos, eles até criaram sua própria etnia, a “nação camba” [os originários do oriente são chamados de camba]. Criaram um espaço geográfico, a meia-lua, e viram no seu horizonte como adversário o outro, o imigrante indígena colla [como são chamados os indígenas do ocidente], aymara e quéchua, basicamente. Eles são os inimigos, os que querem disputar seu espaço geográfico, seus recursos econômicos, e que, portanto, devem ser combatidos. Essa é a autonomia. A resposta política ao levantamento colla. E, para isso, criaram uma etnia sui generis.Ximena – E isso é útil porque encobre as desigualdades no interior da região. Falar de um adversário político que se torna inimigo. O discurso regional, oriente contra ocidente, cambas contra collas, encobre a luta pelo excedente, pelas riquezas naturais, e quem se apropria desses recursos. É um discurso de moda, fácil, que encobre processos econômicos mais profundos e de mais longa duração.E que consegue atingir a população em geral...Ximena – Exato. É um populismo de direita. O que fazem? Constroem um povo a partir de um inimigo comum. Essa é a experiência fascista. O fascismo constrói o judeu como o culpado de tudo, onde os setores pobres, toda a insatisfação política, econômica, social e cultural da população se choca com o inimigo, sem questionar a estrutura interna desse país ou região.


Ximena – Essa é a estratégia do Império frente aos processos que se estão dando na América Latina. Se não se pode controlar o Estado nacional, tem que dividir, para controlar pequenos Estados. Então, é um momento crítico para o continente. E a Bolívia é o caso central agora, pela vulnerabilidade do Estado nacional em relação a outros países com governos de características semelhantes. Acredito que o tema nacional ainda pode ser convocado para buscar uma coesão diante desse grupo oligárquico. Deve-se denunciar constantemente que não é um problema regional, étnico. Que é um problema de sobrevivência de um grupo econômico frente aos interesses nacionais.No livro é dito também que, diferentemente dos barões do estanho, os do oriente não se apropriaram do Estado boliviano. Mas, mantêm uma influência muito grande sobre ele, não é mesmo? Como era essa relação da elite do oriente com o poder central?
Ximena – A diferença é que uma burguesia clássica se constrói a partir de um processo econômico e toma o Estado, como na Revolução Francesa. Nos casos dos barões do estanho, é semelhante. Essa burguesia surge com o boom do estanho, processo de acumulação originária, e, na Revolução Federal de 1899, tomam o Estado. Chegam a mudar a sede de governo de Sucre a La Paz. Já a burguesia do oriente tem como momento dourado 1952, com as dotações de terras pelo governo e a agroindústria. Mas não tomam o Estado. É este, produto de um movimento social da Revolução, que investe capital para fortalecer essa burguesia constituída no oriente. Um Estado minerador constrói uma burguesia agroindustrial. Esta participa no Estado, mas não é ele. E tampouco têm a capacidade de se apropriarem dele. Não existe uma liderança ou um projeto político nacionais. Mas o controle sobre a região lhes permite negociar com o Estado. Brigam desde os anos 1950, quando surgiu o comitê cívico. Desde então, há uma acumulação de demandas. Para eles, a culpa por todos os problemas de Santa Cruz é do Estado central.
Wilfredo – Mas podemos enunciar algumas hipóteses. Por que não possuem uma visão nacional? Pode ser devido ao repúdio ao indígena. O rechaço ao indígena, ao outro, que deve ser excluído. Os limites geográficos do que seria a nação camba exclui toda a região andina. Onde estão os índios. O resto dos indígenas pode ser cooptável, assimilável.Ximena – Os barões do estanho conseguem um projeto político nacional porque, até 1952, os indígenas estavam excluídos das votações. Não eram atores políticos, só mão-de-obra. Pongos [como eram chamados os indígenas que trabalhavam em regime de servidão]. Hoje, ao contrário, para se criar um projeto nacional, esta elite teria que reconhecer a cidadania da população indígena majoritária, e não estão dispostos a isso.E como se deu o processo de transformação da direita boliviana de um caráter político-partidário a um regional?Ximena – Esta elite se afinca no tema cívico, porque está incrustado na região. Por isso que os processos regionais na Bolívia estão hoje mais vinculados a comitês cívicos do que a partidos políticos. Porque a característica de um partido político é ter que lutar num terreno público nacional, e o comitê cívico não. Além disso, os comitês são estruturas não democráticas. E não se submetem ao voto. Se elegem entre eles e ficam ali.
Wilfredo – São clãs. A pele, o apelido, a família. São estruturas corporativas, por interesse, não têm um caráter classista, que defendam ideais, uma visão de país. São corporações, fundamentalmente econômicas.Ximena – Outro aspecto é que, durante as ditaduras na Bolívia, sobretudo a de Banzer [Hugo Banzer, ditador entre 1971 e 1978 e presidente constitucional de 1997 a 2001], a única organização da sociedade civil que podia agir eram os comitês cívicos. Nem partidos, nem sindicatos, nenhuma outra instituição. Os anos 1970 conformam um momento de fortalecimento dos comitês cívicos. E nos anos 1980 podem planejar todo um projeto cultural, identitário.Wilfredo – A política hoje na Bolívia se etnizou, foi posta em territórios. De um lado, os indígenas, de outro, o resto, as elites. Se partiu em dois. O tema indígena se levou ao extremo no ocidente, se etnizou aqui. E no oriente também, com o tema das autonomias. A região, o crucenho. Não há um discurso de esquerda etc. A Bolívia está partida por territórios étnicos.

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