Revolta 08/04/08 por André Comte-Sponville
Falarei pouco da infelicidade. Conheci-a o suficiente para saber o que ela é, e a impotência da filosofia diante dela. Quando sofremos demais, não podemos mais pensar; e, quando pensamos de novo, isso não nos impede de sofrer. No extremo da dor, não há mais que o grito e as lágrimas; e a única sabedoria é resignar-se a tal. Não gosto de filósofos que consolam.
Mas também não é verdade que a filosofia não serve para nada. Ela é feita tão-só de palavras, é verdade, e muda apenas estas, ou a ordem destas, a arrumação em nós das palavras e das imagens, nosso pensamento, o murmúrio confuso de nossa alma. As coisas não filosofam, e a filosofia as deixa tais como são. O silêncio dela as protege. Não somos Deus, e nosso discurso não passa de um discurso: produção e deslocamento de sentido, e não criação de ser. Mas também são as palavras que nos criam problemas, são as imagens que devemos dominar. O sofrimento, a morte não são problemas, a princípio, mas são fatos. Contra os quais o corpo sabe defender-se, e combate ou morre como pode. Os animais não necessitam de filosofia. A atrocidade é o que é, ponto final, e o pensamento não a altera em nada.
Mas também não é verdade que a filosofia não serve para nada. Ela é feita tão-só de palavras, é verdade, e muda apenas estas, ou a ordem destas, a arrumação em nós das palavras e das imagens, nosso pensamento, o murmúrio confuso de nossa alma. As coisas não filosofam, e a filosofia as deixa tais como são. O silêncio dela as protege. Não somos Deus, e nosso discurso não passa de um discurso: produção e deslocamento de sentido, e não criação de ser. Mas também são as palavras que nos criam problemas, são as imagens que devemos dominar. O sofrimento, a morte não são problemas, a princípio, mas são fatos. Contra os quais o corpo sabe defender-se, e combate ou morre como pode. Os animais não necessitam de filosofia. A atrocidade é o que é, ponto final, e o pensamento não a altera em nada.
Salvo isto: ele torna a atrocidade presente mesmo quando ela não está, e, pela permanência em nós que lhe concede, força-nos a conviver com ela. A exceção pensada torna-se regra. Donde a existência para nós de nossa morte e, na ausência de todo e qualquer medo, a tortura continuada da angústia. É o custo da humanidade. A linguagem nos liberta do presente do ser e nos entrega de pés e mãos atados - escravos do tempo e prisioneiros de nós mesmos! - ao mundo fantasmagórico dos seres que não existem. A morte, os deuses, o tempo... A imaginação se desnorteia aqui, tornando-se humana. O mito brinca com as palavras: Cronos é filho de Verbo, e pai de todos os deuses. A linguagem e o tempo são nossos limites, que atormentamos, e que nos atormentam. Viver é um reino de sombras.
É aqui que a filosofia pode ser útil. Ela pouco pode contra a infelicidade; pode muito para a felicidade. Porque nossa exigência de homens não é viver, tão-somente, ou não sofrer, mas ser felizes. E o próprio pensamento que o permite torna-o difícil. Há tantos problemas a superar, tantos obstáculos em nós a vencer, tantas angústias... O fracasso é a inclinação. É preciso, pois, filosofar: o que torna isso possível - o pensamento - torna-o também necessário. A única felicidade é um pensamento feliz. A filosofia não transforma o mundo, mas é eficiente em seu devido lugar: porque não há problemas que não sejam de pensamento, nem angústias que não sejam imaginárias. Os mortos não sabem o que é a morte. A filosofia não transforma o mundo, nem pretende fazê-lo. Mas pode mudar a vida. Porque a vida está inteira no campo do discurso e do imaginário. Não há vida verdadeira senão sonhada.
A filosofia é a verdade desse sonho, e o sonho dessa verdade. Ela não impede de ser infeliz, pelo menos no caso dos aprendizes que somos. Não dispensa de sofrer. Mas pode nos ensinar a felicidade. Porque esta nunca é dada. A felicidade não se deve ao acaso nem é um presente do destino. Não está em um lugar, em um objeto ou em uma pessoa. Não é por exemplo, a ausência de infelicidade, sua simples negação. A infelicidade é um fato; a felicidade não. A infelicidade é um estado, a felicidade não. No limite: a felicidade não existe. É necessário portanto inventá-la.
A felicidade não é uma coisa; é um pensamento. Não é um fato; é uma invenção. Não é um estado; é uma ação. Digamos a palavra: a felicidade é criação. Mas essa criação não cria nada fora dela mesma. É uma práxis, diria Aristóteles, e não uma poese. Viver é criar sem obra. A filosofia é a teoria dessa prática, que seria a própria felicidade, se pudéssemos ter êxito. Em todo caso podemos tentar; pois o próprio Spinoza, "o mais íntegro de todos os sábios", convida-nos a faze-lo e nos acompanha desse intento: "Embora o caminho que mostrei levar até lá pareça extremamente árduo, pelo menos podemos tomá-lo. Por certo, deve ser árduo o que é tão raramente encontrado. Como seria possível, se a salvação estivesse à mão e se pudéssemos percorrê-lo sem grande dificuldade, que fosse desprezado por quase todos? Mas tudo o que é belo é difícil, tanto quanto raro."*E a infelicidade nisso tudo?...Está fora da filosofia. Esta nada pode contra aquela, talvez; mas tampouco aquela pode grande coisa contra esta. A morte não nega a vida; e as tempestades nada provam contra a navegação. Deixemos a infelicidade em seu estado de coisa. A atrocidade não é cotidiana; o pensamento, sim. Ou, se a atrocidade é cotidiana no mundo, não o é em minha vida. Não há nisso nem glória nem vergonha: não sou sempre eu quem sofre; sou sempre eu que devo pensar. Trabalhemos, pois, em bem pensar... A filosofia é esse trabalho. Para quê? Não temos opção: já que é necessário viver e pensar, antes bem do que mal. A salvação está no fim, se ela for possível; e nada perdemos, se não for. Não é uma aposta: não há cacife nem ganho, salvo o próprio jogo de viver. Não é uma religião: nenhum Deus nos ajudará, e qualquer morte é sem apelação. Mas é uma esperança, dirão, e uma nova cilada... Sei disso, mas ela se anularia em sua satisfação. A última esperança é não ter mais o que esperar. E a filosofia, a última cilada que nos separa da sabedoria. Vamos à felicidade pelo caminho mais curto; e quando lá chegarmos - não haverá mais caminho. Porque a beatitude é eterna, diz Spinoza, e não começa. Mas é preciso dizer no futuro o que só se pode viver no presente.Aqui. Agora. Para que um dia - hoje, quem sabe -, sem esperanças, sem pesares, a vida nos seja doce, leve, luminosa e bela, como um sonho de criança feliz perdida na plenitude do céu.A atrocidade (pelo menos enquanto é a minha) não é cotidiana. Logo, a felicidade pode ser.* Spinoza, último escólio de "Ética", sua obra máxima.
É aqui que a filosofia pode ser útil. Ela pouco pode contra a infelicidade; pode muito para a felicidade. Porque nossa exigência de homens não é viver, tão-somente, ou não sofrer, mas ser felizes. E o próprio pensamento que o permite torna-o difícil. Há tantos problemas a superar, tantos obstáculos em nós a vencer, tantas angústias... O fracasso é a inclinação. É preciso, pois, filosofar: o que torna isso possível - o pensamento - torna-o também necessário. A única felicidade é um pensamento feliz. A filosofia não transforma o mundo, mas é eficiente em seu devido lugar: porque não há problemas que não sejam de pensamento, nem angústias que não sejam imaginárias. Os mortos não sabem o que é a morte. A filosofia não transforma o mundo, nem pretende fazê-lo. Mas pode mudar a vida. Porque a vida está inteira no campo do discurso e do imaginário. Não há vida verdadeira senão sonhada.
A filosofia é a verdade desse sonho, e o sonho dessa verdade. Ela não impede de ser infeliz, pelo menos no caso dos aprendizes que somos. Não dispensa de sofrer. Mas pode nos ensinar a felicidade. Porque esta nunca é dada. A felicidade não se deve ao acaso nem é um presente do destino. Não está em um lugar, em um objeto ou em uma pessoa. Não é por exemplo, a ausência de infelicidade, sua simples negação. A infelicidade é um fato; a felicidade não. A infelicidade é um estado, a felicidade não. No limite: a felicidade não existe. É necessário portanto inventá-la.
A felicidade não é uma coisa; é um pensamento. Não é um fato; é uma invenção. Não é um estado; é uma ação. Digamos a palavra: a felicidade é criação. Mas essa criação não cria nada fora dela mesma. É uma práxis, diria Aristóteles, e não uma poese. Viver é criar sem obra. A filosofia é a teoria dessa prática, que seria a própria felicidade, se pudéssemos ter êxito. Em todo caso podemos tentar; pois o próprio Spinoza, "o mais íntegro de todos os sábios", convida-nos a faze-lo e nos acompanha desse intento: "Embora o caminho que mostrei levar até lá pareça extremamente árduo, pelo menos podemos tomá-lo. Por certo, deve ser árduo o que é tão raramente encontrado. Como seria possível, se a salvação estivesse à mão e se pudéssemos percorrê-lo sem grande dificuldade, que fosse desprezado por quase todos? Mas tudo o que é belo é difícil, tanto quanto raro."*E a infelicidade nisso tudo?...Está fora da filosofia. Esta nada pode contra aquela, talvez; mas tampouco aquela pode grande coisa contra esta. A morte não nega a vida; e as tempestades nada provam contra a navegação. Deixemos a infelicidade em seu estado de coisa. A atrocidade não é cotidiana; o pensamento, sim. Ou, se a atrocidade é cotidiana no mundo, não o é em minha vida. Não há nisso nem glória nem vergonha: não sou sempre eu quem sofre; sou sempre eu que devo pensar. Trabalhemos, pois, em bem pensar... A filosofia é esse trabalho. Para quê? Não temos opção: já que é necessário viver e pensar, antes bem do que mal. A salvação está no fim, se ela for possível; e nada perdemos, se não for. Não é uma aposta: não há cacife nem ganho, salvo o próprio jogo de viver. Não é uma religião: nenhum Deus nos ajudará, e qualquer morte é sem apelação. Mas é uma esperança, dirão, e uma nova cilada... Sei disso, mas ela se anularia em sua satisfação. A última esperança é não ter mais o que esperar. E a filosofia, a última cilada que nos separa da sabedoria. Vamos à felicidade pelo caminho mais curto; e quando lá chegarmos - não haverá mais caminho. Porque a beatitude é eterna, diz Spinoza, e não começa. Mas é preciso dizer no futuro o que só se pode viver no presente.Aqui. Agora. Para que um dia - hoje, quem sabe -, sem esperanças, sem pesares, a vida nos seja doce, leve, luminosa e bela, como um sonho de criança feliz perdida na plenitude do céu.A atrocidade (pelo menos enquanto é a minha) não é cotidiana. Logo, a felicidade pode ser.* Spinoza, último escólio de "Ética", sua obra máxima.
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