Kirkpatrick Sale, fala sobre o colapso do império americano.Kirkpatrick é esse da foto.02/04/07
(Kirkpatrick Sale é norte-americano, autor de 12 livros, onde se incluem "Escala Humana", "A Conquista do Paraíso", "Rebeldes Contra o Futuro" e "O Fogo do Seu Génio: Robert Fulton e o Sonho Americano", alguns traduzidos para português no Brasil)
É um tanto irónico: após mais ou menos uma década passada sobre a ideia dos Estados Unidos como potência imperial ter sido aceite à direita e à esquerda, e de ter sido possível falar abertamente sobre um império americano, este mostra agora múltiplos sinais da sua incapacidade de prosseguir. De facto, é agora possível contemplar o seu colapso, e especular abertamente sobre ele.
Os "neocons" que presentemente ocupam o poder em Washington, que adoram falar sobre a America como o único império do mundo que sucedeu à desagregação soviética, recusarão obviamente acreditar neste colapso, tal como ignoram a realidade da guerra imperial no Iraque. Mas creio que nos cabe a tarefa de examinar seriamente as causas que fazem perigar tão drasticamente o sistema norte-americano, cuja queda provocará não só o colapso do império global mas alterará drasticamente a própria nação na sua frente interna.
Todos os impérios acabaram por desabar: Acádia, Suméria, Babilónia, Nínive, Assíria, Pérsia, Macedónia, Grécia, Cartago, Roma, Mali, Songai, Mongol, Tokugawa, Gupta, Khmer, Habsburgo, Inca, Asteca, Espanhol, Holandês, Otomano, Austríaco, Francês, Britânico, Soviético, qualquer que seja, todos caíram, e a maior parte durou poucas centenas de anos. As razões não são sequer muito complexas. Um império é um tipo de sistema estatal que, inevitavelmente, comete os mesmos erros simplesmente pela natureza da sua estrutura imperial, e falha inevitavelmente devido ao seu tamanho, complexidade, extensão territorial, estratificação, heterogeneidade, domínio, hierarquia e desigualdades.
Nas minhas leituras sobre a história dos impérios, deparei com quatro motivos que quase sempre explicam o seu colapso. (O novo livro de Jared Diamond, «Colapse», também tem uma lista de razões para o colapso das sociedades e é parcialmente coincidente, mas ele fala sobre sistemas e não sobre impérios.) Deixem-me então enumerá-los, referindo o seu contexto no actual império americano.
Primeiro, a degradação ambiental. Os impérios acabam sempre por destruír as terras e as águas de que dependem para sobreviver, sobretudo porque a agricultura e a construção crescem sem limites, e o nosso caso não é excepção, apesar de ainda não termos chegado ao nível máximo de agressão à natureza. A ciência é unânime na afirmação de que todos os mais importantes indicadores ecológicos estão em declínio desde há várias décadas: a erosão dos solos e das linhas costeiras, pesca acima do limite, deflorestação, esgotamento dos recursos hídricos e da água potável, poluição da água, do solo, do ar e dos alimentos, salinização dos solos, sobrepopulação, sobreconsumo, esgotamento do petróleo e minerais, aparecimento de novas doenças e recrudescimento das existentes, o extremar das condições meteorológicas, a fusão das neves e gelos e consequente elevação do nível médio dos mares, extinção de espécies, e a sobreutilização da capacidade fotossintética da Terra. Tal como disse E.O. Wilson, biólogo de Harvard, após uma pormenorizada observação do impacto humano sobre a Terra, "a nossa pegada ecológica é já demasiado grande para o que o planeta consegue suportar, e torna-se cada vez maior". Um estudo do Departamento da Defesa, datado do ano passado, previa "mudanças climáticas abruptas", com possibilidade de ocorrência dentro de uma década, que levarão a uma escassez "catastrófica" de água e energia, "roturas e conflitos" endémicos, um estado permanente de guerra que "definiria a vida humana", e uma "queda significativa" na capacidade do planeta para sustentar a sua população actual. Será certamente o fim do império, e poderá ser o fim da civilização.
Em segundo lugar, a dissolução económica. Os impérios dependem sempre de uma excessiva exploração dos recursos, devido frequentemente a colónias cada vez mais longe do centro, e eventualmente acabam por cair quando os recursos se esgotaram, ou se tornaram demasiado caros para toda a gente à excepção de uma elite. Esse é precisamente o percurso em que nos encontramos; o peak oil (pico de extracção do petróleo), por exemplo, foi largamente previsto ocorrer no próximo ano, ou daqui a dois anos, e a nossa economia está inteiramente construída num sistema frágil em que o mundo produz, e nós consumimos (os produtos fabricados nos EUA são apenas 13 por cento do nosso PIB). Neste momento temos um déficit na balança de pagamentos com o resto do mundo na ordem dos 630.000 milhões de dólares; cresceu uns incríveis 500.000 milhões desde 1993, e cresceu 180.000 milhões desde que Bush chegou a presidente em 2001. Para conseguir pagar isto, devíamos ter uma entrada de dinheiro vinda do resto do mundo na ordem dos 1.000 milhões de dólares por dia, e durante os últimos meses esse valor tem andado em cerca de metade. Este tipo de excesso é simplesmente insustentável, sobretudo se pensarmos que o outro império do mundo, a China, que é crucial para o suportar, contraíu empréstimos ao tesouro dos EUA no valor de 83.000 milhões de dólares.
Acrescente-se a isto uma economia assente num déficit do orçamento Federal de quase 500.000 milhões de dólares, que faz parte de um débito nacional total que, no final do último ano, tinha o valor de 7,4 biliões, e a contínua sangria da economia pelos militares de, pelo menos, 530.000 milhões por ano (sem contar com a espionagem militar, cujos números nunca saberemos). Ninguém acredita que isto seja igualmente sustentável, por isso é que o dólar perdeu o seu valor por todo o lado - 30 por cento contra o euro desde 2000 - e o mundo perdeu a confiança no investimento feito aqui. Eu prevejo que, dentro de poucos anos, o dólar se deprecie tanto que os países produtores de petróleo deixarão de querer transaccionar nesta moeda e se voltarão para o euro, e a China deixará o yuan flutuar contra o dólar, o que tornará esta nação falida e sem poder, incapaz de controlar a vida económica dentro das suas fronteiras, e muito menos fora delas.
Em terceiro lugar, o sobre-esforço militar. Os impérios, porque são por definição colonizadores, são sempre forçados a estender o seu alcance militar cada vez mais longe, e a aumentá-lo contra um número crescente de colonos descontentes, até os cofres ficarem vazios e as linhas de comunicação demasiado extensas; as tropas tornam-se ineficazes, a periferia resiste e acaba por se revoltar. O império americano, que se tornou global bem antes de Bush II, tem hoje 446.000 soldados activos em mais de 725 bases conhecidas (mais um número desconhecido de bases secretas), em pelo menos 38 países à volta do mundo, a que se acrescenta uma "presença militar" formal em nada menos do que 153 países em todos os continentes à excepção da Antártida, e a quase uma dúzia de frotas completamente artilhadas em todos os oceanos. E por falar em demasiada extensão: os norte-americanos são menos de 5 por cento da população mundial. E agora que Bush declarou uma "guerra ao terror", em vez de uma mais exequível guerra à Al-Qaeda, os nossos exércitos e agentes estarão num campo de batalha universal e permanente que não se consegue controlar ou conter.
Até agora essa rede militar não tombou mas, como se vê no Iraque, está posta à prova e mostra-se incapaz de levar a parcerias que façam o que lhes é pedido, ou que protejam os recursos de que necessitamos. E à medida que um sentimento anti-americano continua a espalhar-se e a escurecer nos países muçulmanos e numa grande parte da Europa e da Asia, à medida que cada vez mais países recusam os "ajustamentos estruturais" que a nossa globalização via-FMI necessita, torna-se provável que a periferia do nosso império comece a resistir ao nosso domínio, militarmente se necessário. E, longe de termos capacidade para combater duas guerras simultaneamente, como o Pentágono esperava em tempos, tem-se provado que não conseguimos vencer sequer uma.
Em último lugar, as divergências e convulsões internas. Os impérios tradicionais acabaram por ruír por dentro ao mesmo tempo que eram atacados pelo exterior; mas até agora o nível de discordância dentro dos EUA não atingiu o ponto de rebelião ou secessão, graças não só a uma crescente repressão das divergências, a uma escalada do medo em nome da "segurança da pátria", como ao sucesso da nossa moderna versão do "pão e circo", uma combinação única de entretenimento, desporto, televisão, jogos e sexo por internet, consumismo, drogas, álcool e religião, que amortece eficazmente o público num estado de estupor. Mas a táctica da administração Bush II mostra que receia tanto a expressão de divergência popular, que está disposta a desafiar e ignorar direitos ambientais e civis, grupos progressistas, a subornar comentadores para espalhar a sua propaganda, a incrementar a vigilância e invasões de privacidade, a usar guerrilha partidária e golpes de bastidores para espezinhar a oposição do Congresso, a usar mentiras e ilusões como uma forma normal de governação, a quebrar leis e tratados internacionais para a obtenção de resultados de curto-prazo, e a usar a religião como uma capa para todas as políticas.
É difícil crer que a grande massa do público americano alguma vez se agite para desafiar o império internamente, antes das coisas ficarem muito, muito piores. Este é afinal o público em que, conforme uma sondagem Gallup revelou em 2004, 61 por cento acredita que "a religião pode responder a todos ou quase todos os problemas de hoje", e segundo uma sondagem Time/CNN de 2002, 59 por cento acredita no apocalipse iminente anunciado no Livro da Revelação e toma cada ameaça ou desastre como uma evidência da vontade de Deus. E no entanto, é também difícil de acreditar que uma nação tão profundamente corrompida como esta (em todas as suas instituições fundamentais, nos seus partidos comprados, academias, corporações, corretagens, contabilidades, governos) e assente numa base social e económica de intoleráveis desigualdades de rendimento e propriedade, tornando-se progressivamente mais desigual, consiga sustentar-se por muito mais tempo. As ondas do debate sobre secessão, depois das últimas eleições, alguns dos quais eram efectivamente sérios e levaram à organização de grupos na maioria dos estados "azuis" (democratas), indicam que pelo menos uma minoria está disposta a pensar em medidas drásticas para "alterar ou abolir" um regime com o qual não concordam.
Estes quatro processos pelos quais os impérios acabam sempre por cair, parecem-me em curso, em fases variáveis, neste último império. E penso que a combinação de vários, ou todos eles, provocarão o seu colapso em cerca de 15 anos.
O recente livro de Jared Diamond, que se debruça sobre as formas de colapso das sociedades, sugere que a sociedade americana, ou a civilização industrial como um todo, uma vez consciente dos perigos do sua direcção actual, pode aprender com os erros do passado e evitar o seu destino. Mas isso nunca acontecerá, e por uma razão que o próprio Diamond entende.
Como ele diz, na sua análise da sociedade nórdica da Gronelândia que se extinguiu no início do séc. XV: "Os valores a que as pessoas se apegam mais obstinadamente nas condições mais desadequadas, são aqueles valores que eram anteriormente a fonte dos seus maiores triunfos sobre a adversidade". Sendo assim, e os seus exemplos parecem prová-lo, então podemos isolar os valores da sociedade americana que foram responsáveis pelos seus maiores triunfos e sabemos que nos agarraremos a eles aconteça o que acontecer. Eles são uma mistura de capitalismo, individualismo, nacionalismo, tecnofilia e humanismo (significando o domínio do humano sobre a natureza). Não há nenhuma hipótese em que, por mais grave e óbvia que seja a ameaça, como sociedade, abandonemos esses valores.
Por isso não há qualquer hipótese de fugir à queda do império.
1 Comments:
At 4/02/2007, Anonymous said…
muito foda o texto....
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