ENTREVISTA: JACQUES RANCIÈRE 08/07/07
Em nome do dissenso, filósofo francês redefine termos e conceitos na arte e na política.Professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade Paris VIII, Jacques Rancière é autor de A partilha do sensível, livro recentemente lançado pela Editora 34 no Brasil. Com agudeza e "oportuna" impertinência, o filósofo francês analisa e redefine termos e conceitos, dialoga com as manifestações da arte e com o que se pensa sobre ela.
Como refletir sobre o fenômeno do "politicamente correto"?Deve-se utilizar com prudência essa noção de "politicamente correto", que serve um pouco facilmente demais como recusa para desqualificar tudo que se opõe ao consenso dominante. A reivindicação de "correção" está ligada a um aspecto efetivamente essencial do qual a noção de partilha do sensível pretende dar conta: as formas da dominação – de classe, de raça, de sexo – são, a princípio, formas inscritas na paisagem do cotidiano, na maneira de descrever o que se vê, de dar nomes às coisas. O perigo, a partir daí, é praticar uma simples operação cosmética sobre as formas da dominação: camuflar a realidade da dominação sob a representação de um universo de pequenas diferenças no qual cada identidade é provida de seu reconhecimento, seus direitos próprios; fazer reinar, por meio de uma linguagem eufêmica, uma outra forma de consenso.
O revisionismo é uma evidência da dimensão política da escrita? O revisionismo não pode, evidentemente, ser reduzido a uma questão do que é escrito. Há diversos revisionismos, nutridos por argumentos teóricos e paixões diversas. Mas ele tem, incontestavelmente, uma dimensão "escritural". O coração da demonstração revisionista é sempre uma estratégia discursiva que consiste em esmigalhar um evento – a revolução francesa, o genocídio nazista, entre outros – numa profusão de fatos para constatar, em contrapartida, que, somados uns aos outros, não faz nunca a lógica de um encadeamento rigoroso a partir de uma causa primeira até às últimas conseqüências. Ora, esta lógica da cadeia interminável está, de fato, ligada ao regime de escrita próprio ao regime estético. "A besteira é querer concluir": a frase de Flaubert resume uma certa moral da escrita e mostra a ligação dessa moral com toda uma série de implicações políticas, dentre elas o revisionismo.
As palavras, assim como a arte, podem ser revolucionárias?
As palavras têm um poder de ruptura. Elas embaralham a evidência segundo a qual as coisas seriam simplesmente o que elas são. Esse poder de ruptura tem múltiplos usos e, notadamente, permite a constituição de coletivos políticos unidos pela vontade de explorar o significado de palavras como liberdade ou igualdade. Isso quer dizer que não há palavras revolucionárias por si sós. O mesmo acontece com a arte. Saber se ela deve ou não ser engajada é uma questão vazia de sentido. A arte sempre faz política. O regime estético da arte é atravessado pelo projeto de uma arte que realiza suas potencialidades essenciais ultrapassando a sim mesma, criando, como diz Malevitch, não quadros, mas sim formas de vida. A revolução estética não somente se ligou à revolução social, como também lhe forneceu modelos. O que se passou na Rússia soviética não foi o confronto entre a política e a arte, foi o confronto entre uma política da arte revolucionária, criadora de formas de vida, e a visão estática da arte como ilustração da revolução social.
O senhor usa os termos política e polícia, mas não a palavra poder. Por quê ? Não me ocupo do poder como conjunto de dispositivos e técnicas de dominação. O que me interessa é a configuração do comum no seio da qual esses dispositivos e técnicas se inscrevem. Política e polícia são dois modos antagônicos dessa configuração. A polícia não é, para mim, o poder sobre os corpos, e sim a configuração da comunidade como totalidade orgânica, definida de maneira exaustiva por suas funções, seus lugares e suas identidades. A política, ao contrário, é a configuração da comunidade que abre essa totalidade, que faz intervir sujeitos suplementares que não são partes do corpo social, mas formas de subjetivação de um litígio. Pensar em termos de poder ou de tecnologias de poder é esquecer o espaço próprio da política como configuração conflituosa do comum da comunidade.
A democracia nunca passou de uma promessa, um sonho?
Deve-se inverter essa proposição. A democracia e a igualdade não são sonhos. Não são metas a atingir. São potencialidades que só ganham realidade se são atualizadas aqui e agora. A democracia é, seguramente, um sonho se alguém espera que, a partir dos próprios textos que declaram homens e mulheres iguais em direito, a igualdade se torne realidade. Ela deixa de ser um sonho quando mulheres e homens provam sua igualdade, sua competência igual para se ocupar das coisas comuns. Em outras palavras, a democracia não é nunca assimilável a uma forma de governo nem a uma forma de sociedade. Todo governo é oligárquico. Ele tende sempre a privatizar, em seu proveito, a esfera dos negócios comuns. A democracia não se trata de uma promessa, e sim de uma realidade que existe através dos atos sempre precários que a constroem. Para quem ainda não conhece sua obra, por qual livro se deve iniciar?Eu me sentiria tentado a responder recorrendo ao próprio princípio da emancipação intelectual, tal como ele foi desenvolvido em meu livro O mestre ignorante: pode-se começar por qualquer parte; não há iniciação por graus, não há uma via real pedagógica. Escrevi, aparentemente, sobre os assuntos mais diversos: a emancipação operária e a poesia de Mallarmé, a teoria política e a fábula cinematográfica, o discurso da história e a revolução estética. E o fiz segundo modos muito diversos de escrita, do estilo narrativo (A noite dos proletários ou Courts voyages au pays du peuple) ao estilo argumentativo (O desentendimento, Malaise dans l’esthétique), porque a constante do meu trabalho é romper com a separação das disciplinas e a hierarquia dos gêneros a fim de colocar em evidência a partilha do sensível, a maneira como a filosofia ou a literatura, a estética ou a história constitui seu discurso. Pode-se, portanto, começar por onde se queira, de acordo com o próprio interesse: estético ou político, pedagógico ou literário.
Como refletir sobre o fenômeno do "politicamente correto"?Deve-se utilizar com prudência essa noção de "politicamente correto", que serve um pouco facilmente demais como recusa para desqualificar tudo que se opõe ao consenso dominante. A reivindicação de "correção" está ligada a um aspecto efetivamente essencial do qual a noção de partilha do sensível pretende dar conta: as formas da dominação – de classe, de raça, de sexo – são, a princípio, formas inscritas na paisagem do cotidiano, na maneira de descrever o que se vê, de dar nomes às coisas. O perigo, a partir daí, é praticar uma simples operação cosmética sobre as formas da dominação: camuflar a realidade da dominação sob a representação de um universo de pequenas diferenças no qual cada identidade é provida de seu reconhecimento, seus direitos próprios; fazer reinar, por meio de uma linguagem eufêmica, uma outra forma de consenso.
O revisionismo é uma evidência da dimensão política da escrita? O revisionismo não pode, evidentemente, ser reduzido a uma questão do que é escrito. Há diversos revisionismos, nutridos por argumentos teóricos e paixões diversas. Mas ele tem, incontestavelmente, uma dimensão "escritural". O coração da demonstração revisionista é sempre uma estratégia discursiva que consiste em esmigalhar um evento – a revolução francesa, o genocídio nazista, entre outros – numa profusão de fatos para constatar, em contrapartida, que, somados uns aos outros, não faz nunca a lógica de um encadeamento rigoroso a partir de uma causa primeira até às últimas conseqüências. Ora, esta lógica da cadeia interminável está, de fato, ligada ao regime de escrita próprio ao regime estético. "A besteira é querer concluir": a frase de Flaubert resume uma certa moral da escrita e mostra a ligação dessa moral com toda uma série de implicações políticas, dentre elas o revisionismo.
As palavras, assim como a arte, podem ser revolucionárias?
As palavras têm um poder de ruptura. Elas embaralham a evidência segundo a qual as coisas seriam simplesmente o que elas são. Esse poder de ruptura tem múltiplos usos e, notadamente, permite a constituição de coletivos políticos unidos pela vontade de explorar o significado de palavras como liberdade ou igualdade. Isso quer dizer que não há palavras revolucionárias por si sós. O mesmo acontece com a arte. Saber se ela deve ou não ser engajada é uma questão vazia de sentido. A arte sempre faz política. O regime estético da arte é atravessado pelo projeto de uma arte que realiza suas potencialidades essenciais ultrapassando a sim mesma, criando, como diz Malevitch, não quadros, mas sim formas de vida. A revolução estética não somente se ligou à revolução social, como também lhe forneceu modelos. O que se passou na Rússia soviética não foi o confronto entre a política e a arte, foi o confronto entre uma política da arte revolucionária, criadora de formas de vida, e a visão estática da arte como ilustração da revolução social.
O senhor usa os termos política e polícia, mas não a palavra poder. Por quê ? Não me ocupo do poder como conjunto de dispositivos e técnicas de dominação. O que me interessa é a configuração do comum no seio da qual esses dispositivos e técnicas se inscrevem. Política e polícia são dois modos antagônicos dessa configuração. A polícia não é, para mim, o poder sobre os corpos, e sim a configuração da comunidade como totalidade orgânica, definida de maneira exaustiva por suas funções, seus lugares e suas identidades. A política, ao contrário, é a configuração da comunidade que abre essa totalidade, que faz intervir sujeitos suplementares que não são partes do corpo social, mas formas de subjetivação de um litígio. Pensar em termos de poder ou de tecnologias de poder é esquecer o espaço próprio da política como configuração conflituosa do comum da comunidade.
A democracia nunca passou de uma promessa, um sonho?
Deve-se inverter essa proposição. A democracia e a igualdade não são sonhos. Não são metas a atingir. São potencialidades que só ganham realidade se são atualizadas aqui e agora. A democracia é, seguramente, um sonho se alguém espera que, a partir dos próprios textos que declaram homens e mulheres iguais em direito, a igualdade se torne realidade. Ela deixa de ser um sonho quando mulheres e homens provam sua igualdade, sua competência igual para se ocupar das coisas comuns. Em outras palavras, a democracia não é nunca assimilável a uma forma de governo nem a uma forma de sociedade. Todo governo é oligárquico. Ele tende sempre a privatizar, em seu proveito, a esfera dos negócios comuns. A democracia não se trata de uma promessa, e sim de uma realidade que existe através dos atos sempre precários que a constroem. Para quem ainda não conhece sua obra, por qual livro se deve iniciar?Eu me sentiria tentado a responder recorrendo ao próprio princípio da emancipação intelectual, tal como ele foi desenvolvido em meu livro O mestre ignorante: pode-se começar por qualquer parte; não há iniciação por graus, não há uma via real pedagógica. Escrevi, aparentemente, sobre os assuntos mais diversos: a emancipação operária e a poesia de Mallarmé, a teoria política e a fábula cinematográfica, o discurso da história e a revolução estética. E o fiz segundo modos muito diversos de escrita, do estilo narrativo (A noite dos proletários ou Courts voyages au pays du peuple) ao estilo argumentativo (O desentendimento, Malaise dans l’esthétique), porque a constante do meu trabalho é romper com a separação das disciplinas e a hierarquia dos gêneros a fim de colocar em evidência a partilha do sensível, a maneira como a filosofia ou a literatura, a estética ou a história constitui seu discurso. Pode-se, portanto, começar por onde se queira, de acordo com o próprio interesse: estético ou político, pedagógico ou literário.
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