entrevista Marc Ferro 12/04/08
EXÉRCITO VERMELHO
http://br.youtube.com/watch?v=GChyobt8Cpo
O que é um europeu? Será que podemos traçar um perfil homeogêneo, ou, como o traje do Arlequim, seria ele feito de peças emendadas? Não seria ele apenas o resultado da agregação dos povos que compõem a Europa?Marc Ferro: Refaçamos o curso da história. No tempo do Império Romano, um viajante que partisse de Lyon e fosse para Damasco, estaria em casa. Se fosse a Bizâncio (hoje Istambul, na Turquia) , ou a Constantinopla (Argélia), também. Mas se atravessasse o Reno e o Danúbio2, já não seria mais o caso. Já quem, no século ix, atravessasse esses rios, estaria em compensação em casa. Se voltasse a Bizâncio, a Constantinopla ou a Ravena (Itália), a situação seria novamente inversa, contrariamente ao que ocorria no tempo de Roma.Hoje, até onde um europeu pode considerar-se em casa? Porque é aí que está a verdadeira fronteira, nesse sentimento de pertencer a uma mesma comunidade em meio a uma população cuja língua não se fala necessariamente. Será que um francês sente-se em casa em Londres, Berlim, ou Moscou? Sem dúvida. E em certas montanhas do Cáucaso? Com certeza não. De fato, pode-se dizer que as fronteiras atuais da Europa terminam onde evoluem civilizações apegadas as suas tradições e onde a modernidade não penetrou.
Até onde vai a Europa no leste? Os russos sentem-se totalmente europeus?Interrogar-se a respeito da europeidade dos russos parece-me escandaloso na medida em que se trata do povo mais cultural de nosso continente. Os autores russos estão sendo constantemente interpretados nos palcos dos teatros e eu não conheço um país que conheça melhor a literatura européia em sua diversidade. Então, até onde vai a Europa? Não até os Urais, mas até a extremidade oriental da Sibéria. Quando estive em Irkoutsk [Rússia, Sibéria oriental] e em Khabarovsk [leste da Rússia], eu mantinha o mesmo estado de espírito que se tivesse estado em Riga [Letônia] ou Anvers. Mas no Tadjiquistão e em alguns lugares do Cáucaso, que fazem parte do "espaço russo", é evidente que saímos da Europa.Houve em algum momento na história um sentimento europeu? Ou a consciência européia é pura mitologia? Durante muito tempo, até os séculos xiv-xv, os habitantes da Europa reconheceram-se no cristianismo. Depois as referências foram a realeza e os Estados. No século xviii, uma identidade européia afirmou-se de maneira brutal, mas foram os filósofos das Luzes que apoderaram-se dela, não os políticos. Os Lessing, os Voltaire, os Burke3 viveram a Europa transgredindo as fronteiras dos países aos quais pertenciam. Essa identidade, circunscrita a elites destacadas da administração dos Estados, teve longa duração e a nação, levada pela Revolução Francesa, varreu-a do cenário. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa ressurgiu, mas desta vez foram outras as elites, oriundas dos Estados, que a assumiram, responsáveis pelas decisões econômicas e políticas como os franceses Jean Monnet e Robert Schuman, o alemão Konrad Adenauer e o italiano Alcide De Gasperi.
Podemos falar de um patriotismo europeu?Ele pôde existir em alguns momentos particulares da História, como por exemplo durante a guerra dos Boxers [1898-1900] na China. Da mesma forma, de um modo mais leve, podemos pensar sem muito esforço que os britânicos Stanley e Livingstone, encontrando-se no coração da floresta tropical africana, em 1871, tiveram o sentimento, nesse instante preciso, nesse ambiente tão particular, de pertencer a uma mesma comunidade. Mas patriotismo? Sem dúvida os europeus sentem-se como tal nos Estados Unidos, muito mais do que em alguns países da América Latina.
Goethe, Cervantes, Shakespeare, Dante, Voltaire, Dostoïevski4, será que essas referências bastam para se sentir membro da mesma família?Sim, trata-se de um mínimo necessário. Olhe as manifestações culturais que se desenrolam um pouco por toda parte na Europa, onde todo mundo se encontra e se reconhece não necessariamente como europeu, mas como parte de uma cultura que ocorre ser européia. Esse fundo comum, esse núcleo cultural não é uma quimera.Hoje os europeus estão desestabilizados pela dispersão da questão nacional, por seu empalidecimento em benefício de um vasto conjunto comunitário no qual temem afogar-se. Eles não estariam, para compensar, tentando agarrar-se a identidades nacionais e até mesmo regionais?Eles não se agarram, eles as têm como referência! Diante da uniformização do mundo e a europeização das decisões, a Nação torna-se um refúgio. Com os seus deputados perdendo os poderes em favor de Bruxelas, os europeus, que têm a impressão de haverem tido seus recursos retirados, voltam-se cada vez mais para recursos próximos, ou seja a sua região, a sua cidade, o seu bairro. Assim, o movimento não está ligado apenas à Europa, ele é sobretudo o efeito da globalização à qual a Europa não faz senão aderir, mesmo que esteja se construindo para evitar o perigo da referida globalização. Será que os europeus têm consciência disso? Não. O fato é que as suas reações têm a medida de suas apreensões. Quais deverão ser as prioridades européias da França durante a presidência da União Européia?Trata-se de redefinir o interesse da Europa para inúmeros europeus, muitas vezes tomados pela dúvida e de não abandonar à beira do caminho as vítimas de uma política que se faz em nome da Europa. Mantenhamos portanto uma linguagem baseada na verdade, uma linguagem despojada de mistificação; uma linguagem política e econômica que seja tão convincente quanto foram, na cultura, Beethoven, Tchékhov ou Shakespeare.
http://br.youtube.com/watch?v=GChyobt8Cpo
O que é um europeu? Será que podemos traçar um perfil homeogêneo, ou, como o traje do Arlequim, seria ele feito de peças emendadas? Não seria ele apenas o resultado da agregação dos povos que compõem a Europa?Marc Ferro: Refaçamos o curso da história. No tempo do Império Romano, um viajante que partisse de Lyon e fosse para Damasco, estaria em casa. Se fosse a Bizâncio (hoje Istambul, na Turquia) , ou a Constantinopla (Argélia), também. Mas se atravessasse o Reno e o Danúbio2, já não seria mais o caso. Já quem, no século ix, atravessasse esses rios, estaria em compensação em casa. Se voltasse a Bizâncio, a Constantinopla ou a Ravena (Itália), a situação seria novamente inversa, contrariamente ao que ocorria no tempo de Roma.Hoje, até onde um europeu pode considerar-se em casa? Porque é aí que está a verdadeira fronteira, nesse sentimento de pertencer a uma mesma comunidade em meio a uma população cuja língua não se fala necessariamente. Será que um francês sente-se em casa em Londres, Berlim, ou Moscou? Sem dúvida. E em certas montanhas do Cáucaso? Com certeza não. De fato, pode-se dizer que as fronteiras atuais da Europa terminam onde evoluem civilizações apegadas as suas tradições e onde a modernidade não penetrou.
Até onde vai a Europa no leste? Os russos sentem-se totalmente europeus?Interrogar-se a respeito da europeidade dos russos parece-me escandaloso na medida em que se trata do povo mais cultural de nosso continente. Os autores russos estão sendo constantemente interpretados nos palcos dos teatros e eu não conheço um país que conheça melhor a literatura européia em sua diversidade. Então, até onde vai a Europa? Não até os Urais, mas até a extremidade oriental da Sibéria. Quando estive em Irkoutsk [Rússia, Sibéria oriental] e em Khabarovsk [leste da Rússia], eu mantinha o mesmo estado de espírito que se tivesse estado em Riga [Letônia] ou Anvers. Mas no Tadjiquistão e em alguns lugares do Cáucaso, que fazem parte do "espaço russo", é evidente que saímos da Europa.Houve em algum momento na história um sentimento europeu? Ou a consciência européia é pura mitologia? Durante muito tempo, até os séculos xiv-xv, os habitantes da Europa reconheceram-se no cristianismo. Depois as referências foram a realeza e os Estados. No século xviii, uma identidade européia afirmou-se de maneira brutal, mas foram os filósofos das Luzes que apoderaram-se dela, não os políticos. Os Lessing, os Voltaire, os Burke3 viveram a Europa transgredindo as fronteiras dos países aos quais pertenciam. Essa identidade, circunscrita a elites destacadas da administração dos Estados, teve longa duração e a nação, levada pela Revolução Francesa, varreu-a do cenário. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa ressurgiu, mas desta vez foram outras as elites, oriundas dos Estados, que a assumiram, responsáveis pelas decisões econômicas e políticas como os franceses Jean Monnet e Robert Schuman, o alemão Konrad Adenauer e o italiano Alcide De Gasperi.
Podemos falar de um patriotismo europeu?Ele pôde existir em alguns momentos particulares da História, como por exemplo durante a guerra dos Boxers [1898-1900] na China. Da mesma forma, de um modo mais leve, podemos pensar sem muito esforço que os britânicos Stanley e Livingstone, encontrando-se no coração da floresta tropical africana, em 1871, tiveram o sentimento, nesse instante preciso, nesse ambiente tão particular, de pertencer a uma mesma comunidade. Mas patriotismo? Sem dúvida os europeus sentem-se como tal nos Estados Unidos, muito mais do que em alguns países da América Latina.
Goethe, Cervantes, Shakespeare, Dante, Voltaire, Dostoïevski4, será que essas referências bastam para se sentir membro da mesma família?Sim, trata-se de um mínimo necessário. Olhe as manifestações culturais que se desenrolam um pouco por toda parte na Europa, onde todo mundo se encontra e se reconhece não necessariamente como europeu, mas como parte de uma cultura que ocorre ser européia. Esse fundo comum, esse núcleo cultural não é uma quimera.Hoje os europeus estão desestabilizados pela dispersão da questão nacional, por seu empalidecimento em benefício de um vasto conjunto comunitário no qual temem afogar-se. Eles não estariam, para compensar, tentando agarrar-se a identidades nacionais e até mesmo regionais?Eles não se agarram, eles as têm como referência! Diante da uniformização do mundo e a europeização das decisões, a Nação torna-se um refúgio. Com os seus deputados perdendo os poderes em favor de Bruxelas, os europeus, que têm a impressão de haverem tido seus recursos retirados, voltam-se cada vez mais para recursos próximos, ou seja a sua região, a sua cidade, o seu bairro. Assim, o movimento não está ligado apenas à Europa, ele é sobretudo o efeito da globalização à qual a Europa não faz senão aderir, mesmo que esteja se construindo para evitar o perigo da referida globalização. Será que os europeus têm consciência disso? Não. O fato é que as suas reações têm a medida de suas apreensões. Quais deverão ser as prioridades européias da França durante a presidência da União Européia?Trata-se de redefinir o interesse da Europa para inúmeros europeus, muitas vezes tomados pela dúvida e de não abandonar à beira do caminho as vítimas de uma política que se faz em nome da Europa. Mantenhamos portanto uma linguagem baseada na verdade, uma linguagem despojada de mistificação; uma linguagem política e econômica que seja tão convincente quanto foram, na cultura, Beethoven, Tchékhov ou Shakespeare.
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