Levantes urbanos na França
RESUMO
A onda de violência que atingiu a França em novembro de 2005 não pode ser explicada apenas como reflexo da crise de suas periferias urbanas. Dois outros níveis de análise devem ser também considerados: o da nação como limite da democracia, que a globalização e a figura do imigrante estrangeiro interpelam; e o das mudanças na representação política, que o fim da sociedade industrial trouxe para a ordem do dia. Mais do que uma crise das periferias urbanas, a França vive hoje uma crise das bases de funcionamento da democracia.Palavras-chave: França; Violência urbana; Sentimento de justiça; Democracia.
A onda de violência que atingiu a França em novembro de 2005 não pode ser explicada apenas como reflexo da crise de suas periferias urbanas. Dois outros níveis de análise devem ser também considerados: o da nação como limite da democracia, que a globalização e a figura do imigrante estrangeiro interpelam; e o das mudanças na representação política, que o fim da sociedade industrial trouxe para a ordem do dia. Mais do que uma crise das periferias urbanas, a França vive hoje uma crise das bases de funcionamento da democracia.Palavras-chave: França; Violência urbana; Sentimento de justiça; Democracia.
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Uma forma pré-democrática de ação coletiva
Novembro de 2005: redes de televisão do mundo inteiro transmitiram por vários dias as impressionantes imagens de automóveis em chamas nas periferias urbanas da França. Os jornalistas explicavam que a "crise do modelo social de integração" francês estaria provocando a revolta de jovens sem diploma, desempregados, filhos de imigrantes, vítimas constantes do fracasso escolar, do racismo e da exclusão. A expressão émeute, utilizada para designar esses protestos urbanos violentos, riot em inglês, não tem equivalente exato em português. Sua dupla raiz – movimento e emoção – sugere o quanto a émeute é, indissociavelmente, uma "coisa" e um pensamento que a qualifica. Há nela a idéia de movimento, mas há também o atributo da "irracionalidade" que seria própria a uma manifestação de tipo emocional. Tal atributo nada tem a ver em si com a violência – nem todo protesto violento é qualificado de émeute. Quando camponeses franceses atacam caminhões espanhóis ou italianos para destruir mercadorias (frutas, legumes, vinho) que supostamente impõem a seus próprios produtos uma concorrência desleal, não se fala de émeute. Enquadradas por sindicatos rurais, essas manifestações inscrevem-se nos quadros de inteligibilidade característicos dos "movimentos sociais".
A émeute está ligada na Europa a uma longa tradição histórica de protestos pré-democráticos que pareciam fadados a desaparecer sob a democracia. Nos anos de 1950, quando Eric Hobsbawm publica seu estudo sobre as premissas da revolta na Europa moderna, ele insiste no caráter arcaico desse tipo de protesto, inimaginável em nossa era, segundo ele (cf. Hobsbawm, 1966, p. 129). E quando, surpreendentemente, o fenômeno ressurge, como em Brixton em abril de 1981, primeiro grande levante do gênero na Europa do século XX, um relatório destinado ao Parlamento britânico diagnostica por trás desse conflito um questionamento profundo das bases da paz civil (cf. Scarman, 1982).
De fato: o esgotamento dessa forma tradicional de ação coletiva popular que é a émeute se explica pela excepcional ampliação do espaço político que dominou o horizonte das democracias ocidentais ao longo do século XX. Fenômeno "pré-político", segundo a expressão polêmica e freqüentemente contestada de Hobsbawm, a émeute, em suas formas históricas mais antigas, está estreitamente ligada a um déficit de cidadania e tende a desaparecer sempre que cidadania e capacidade de negociação política se desenvolvem. Nesse sentido, sua reativação tem de ser compreendida à luz da formidável erosão atual do campo político e daquilo que, na experiência contemporânea, escapa ao quadro institucional democrático – mesmo quando esse quadro é parcialmente preservado.
O retorno das émeutes na França
O declínio dos levantes urbanos a partir de meados do século XIX deu-se paralelamente aos progressos na organização dos trabalhadores (formação de sindicatos, partidos, de uma imprensa operária), mas foi efeito também de importantes mudanças na maneira como as elites se relacionavam com as massas populares. Antes classificadas como classes "perigosas", estas últimas foram sendo paulatinamente redefinidas como classes "laboriosas" (cf. Chevalier, 1984; Robert, 1990), conquistando o direito à manifestação pacífica nas ruas (cf. Favre, 1990)1. Essas mudanças remetem às condições históricas que tornaram possível uma pacificação relativa das relações sociais, graças ao chamado "modelo republicano", que surge em meio aos intensos debates sobre a maneira de se "criar uma sociedade" que marcaram o advento da 3ª República (1870-1940) (cf. Donzelot, 1984).
Após a revolução de 1848, após a derrota de 1870 contra a Alemanha e a Comuna de Paris algum tempo depois, os riscos de desagregação, ruptura e violência eram consideráveis na França. A "República", nesse sentido, representou um compromisso limitado entre ordem social e democracia. A ordem constituiu-se sobre uma base nacional graças à formação, nos termos de Dominique Schnapper (1994), de uma "comunidade de cidadãos": apoiados na laicidade (isto é, na neutralidade) do Estado, esses cidadãos podiam definir-se como indivíduos iguais diante do Estado e da lei, não obstante a profunda desigualdade social que os separava e não obstante o fato de seus credos políticos, religiosos ou culturais serem diferentes. A ordem constituiu-se também com base em um princípio social – a complementaridade de funções econômicas características do mundo industrial, distintas mas igualmente necessárias e portanto legítimas, como a de operário e patrão, tornava viável a existência de uma solidariedade "orgânica" e possível a construção de uma "sociedade" (nacional), nos termos de Durkheim. Quanto à democracia, ela se construiu não simplesmente pelo reconhecimento do direito de voto aos operários, mas pela aceitação, pela "República" e no âmbito da nação, da legitimidade do conflito de classes. Nesse sentido, a representação do fenômeno republicano enquanto simples "comunidade de cidadãos" (cf. Schnapper, 1994), que impregna o debate francês atual, é perfeitamente inexata, posto que não considera o tema do conflito de classes, indissociável da formação da nação naquele momento (cf. Gauchet, 1980).
Hoje, uma das razões (embora não a única) do esgotamento desse modelo é justamente o debilitamento do conflito de classes, diante de uma dinâmica definida por novos patamares de individualização da vida social e pela construção de novas formas de agregação coletiva a partir de princípios distintos daqueles que tiveram por base o conflito industrial. As condições históricas em que esse esgotamento se efetua são complexas e remetem a um conjunto de transformações que afetaram de modo ininterrupto a França e as grandes democracias industriais no momento do segundo pós-guerra: desde o crescimento considerável dos níveis de consumo, a diminuição relativa do emprego industrial e a ampliação proporcional do setor de serviços e das camadas médias, a melhoria das condições de proteção social e o crescimento dos níveis de educação da população, até, mais recentemente, todas as mudanças econômicas e tecnológicas que acompanharam o fenômeno da mundialização e toda a gama de efeitos negativos a ele associados, como o crescimento do desemprego e o debilitamento da capacidade das instituições de Estado de preservarem as antigas bases "republicanas" da unidade nacional (cf. Dubet, 2002; Schnapper, 2002).
Se as mudanças são complexas e profundas, seus aspectos negativos principais assumiram os traços de uma juventude de extração popular formada por descendentes dos trabalhadores estrangeiros que se instalaram no país entre 1945 e 1974, no quadro de uma política de imigração destinada a suprir com mão-de-obra pouco qualificada a economia francesa (cf. Weil, 1991). Com o fechamento das fronteiras à imigração de trabalho, na década de 1970, os trabalhadores estrangeiros adquiriram o direito à residência permanente no país trazendo suas famílias, graças a um dispositivo denominado "reagrupamento familiar"2. A imigração portanto prossegue, não mais como imigração de trabalho, mas como de povoamento. Antes praticamente invisíveis, esses novos imigrantes logo se tornariam visíveis no mundo urbano, onde deixam a marca de suas práticas religiosas, da presença de seus filhos nas escolas, ao mesmo tempo em que os homens passam a ser maciçamente atingidos pelo desemprego.
A entrada no espaço público de uma juventude formada por descendentes de imigrantes estrangeiros ocorre no começo dos anos de 1980 com duas expressões principais: condutas de ruptura amplamente mediatizadas – os famosos "rodeios" da periferia de Lyon, em que carros furtados circulavam em alta velocidade pelos bairros populares, sendo em seguida ritualmente incendiados numa espécie de potlatch dos tempos modernos; e a formação de um movimento beur3 e de associações anti-racistas. Se a violência já era então fato presente e facilmente observável nas periferias urbanas, ela não era ainda tema do debate público. Mas passa a ser no começo dos anos de 1990, quando o termo "violência urbana" é introduzido na mídia e começa a formatar os despachos da agência de notícias France Press, tornando-se uma rubrica permanente nas redações de jornal e televisão (cf. Peralva e Macé, 2002). Esse momento corresponde a uma radicalização do debate de que é objeto essa categoria da população. Daí para frente ela encarnará não mais os limites do "modelo republicano" e a necessidade de um ajuste em sua capacidade de "integração", conforme os termos utilizados na década anterior, mas a ameaça contra ele: passa a ser vista como "incapaz de se integrar", de "respeitar a lei comum" e os preceitos da "República". Tal é o contexto moral que marca o ressurgimento das émeutes no país.
Os levantes da morte
Os levantes populares do tipo dos que nos interessam aqui distinguem-se em função do que neles está em jogo, a cada momento. Na Europa pré-industrial, eles eram "alimentares" – ligados à variação no preço do trigo, item particularmente importante no orçamento das famílias pobres (cf. Tilly, 1978; Rudé, 1982); na França do século XIX, traduzem a presença no espaço público de uma massa popular que ameaça o poder pela via da ruptura revolucionária – nesse sentido, a violência tem um conteúdo protopolítico, embora crime e violência política fossem então quase inseparáveis, o que de resto explica a designação "classes perigosas". Os levantes que, na década de 1960, pontuaram a longa luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis foram inextricavelmente ligados à dinâmica das relações raciais no país. Como caracterizar o conteúdo dos levantes desencadeados por jovens descendentes de imigrantes nas periferias urbanas francesas nos anos de 1990? Embora eles sejam freqüentemente explicados como resultado das dificuldades sociais que afetam essa categoria da população, há neles alguns traços específicos que se repetem há 25 anos e que só uma abordagem fenomenológica do problema permite revelar.
A primeira émeute dessa série na França ocorre em Vaulx-en-Velin, periferia urbana de Lyon, em outubro de 1990. À época, o bairro afetado pela violência encontrava-se em plena renovação urbana, por iniciativa da prefeitura, apoiada por uma maioria de vereadores comunistas. No sábado, dia 6, Thomas Claudio, jovem descendente de imigrantes portugueses, morre em um acidente de motocicleta ao tentar escapar de um controle policial por não estar usando o (obrigatório) capacete. No domingo, dia 7, incidentes violentos são registrados no bairro. Na segunda-feira, dia 8, eles se estendem a outras cidades da periferia de Lyon e sua gravidade se intensifica.
Duas pesquisas sobre o tema realizadas para o Instituto de Altos Estudos da Segurança Interna, IHESI, permitiram-me recensear 24 incidentes do mesmo tipo entre outubro de 1990 e julho de 1995 em diferentes cidades da França. Esses dados levaram-me a designar essas manifestações como "os levantes da morte". Em outras palavras, o fenômeno, tal como se repete na França desde outubro de 1990 (e tal como se configurou em novembro de 2005, último levante importante registrado), pode ser definido como um protesto violento engajado por jovens habitantes das periferias urbanas em resposta à morte violenta de um deles. Em mais de um terço dos casos estudados, a polícia esteve direta ou indiretamente envolvida na morte que desencadeou o protesto4. Mas registram-se igualmente incidentes em razão de mortes causadas por vigias de supermercados, por suicídio na prisão ou crises desencadeadas por sentenças judiciais consideradas condescendentes com relação a autores de homicídios de jovens, ou diretamente em reação contra tais homicídios. Os jovens confirmam essa causalidade central. Em outubro de 1990, por ocasião do levante de Vaulx-en-Velin, um deles declara aos jornalistas: "Não esqueçam de dizer que isso não tem nada a ver com os verões quentes das Minguettes [referência aos "rodeios" de carros do início dos anos de 1980 em um bairro de Venissieux, também periferia urbana de Lyon]. Agora é por causa dos mortos" (Libération, 8 de outubro de 1990, grifo meu).
Ao fenômeno corresponde uma temporalidade típica-ideal, em três atos. Primeiro ato, um protesto violento circunscrito a um bairro – o bairro de residência da vítima – imediatamente após a morte violenta do jovem5. Segundo ato, assiste-se a um deslocamento da área do conflito, freqüentemente em direção ao centro da cidade ou mesmo para cidades próximas, graças à presença de casseurs6. Observa-se nesse momento uma elevação considerável do nível de violência. Terceiro ato, a violência reflui e uma manifestação pacífica é organizada na tentativa de transformar a revolta inicial em protesto político. O epicentro do levante, a émeute propriamente dita, é constituído por um movimento de base emocional, em reação contra a morte violenta em questão. Embora não se trate de mobilização organizada, a violência constitui os jovens como comunidade imaginada e, mais ainda, constitui em torno deles um espaço público no qual são chamados a se comportar como atores coletivos. A violência atrai a mídia e suscita a presença de uma nebulosa de aliados – adultos do bairro, sindicalistas, atores institucionais. Ela mobiliza vereadores, deputados e o poder público em geral. A presença dos casseurs introduz nesse processo dois elementos novos. Primeiro, transformando a émeute de protesto ligado a uma experiência territorializada em algo maior, na medida em que as depredações ampliam a geografia da violência. Mas também porque os casseurs marcam os limites desse espaço público recém-constituído e das negociações que ele autoriza. A violência da émeute é canalizada de forma precisa e é autolimitada. Freqüentemente os émeutiers procuram demarcar-se das depredações efetuadas pelos casseurs, reivindicando um tratamento institucional dos problemas que os afetam. Mas o espaço público que em torno deles se forma, graças à violência, é frágil e desfaz-se rápido demais, impedindo-os de se constituírem duradouramente como atores coletivos.
O engajamento subjetivo na violência
Interessava-me compreender as condições do engajamento subjetivo dos jovens na émeute. Até que ponto esse engajamento tinha raízes sociais e podia ser explicado em termos de pobreza, exclusão, fracasso escolar, como pretendiam os mais diversos atores do debate público, inclusive os jornalistas? Para tentar responder, escolhi o caminho do estudo de caso. Interessou-me uma émeute ocorrida em 1994 numa cidade da periferia norte de Paris, em que o incidente desencadeador havia sido a morte de um jovem por outro jovem. Nenhuma intervenção da polícia, direta ou indireta, nenhuma intervenção de adultos ou vigias de supermercado. Simplesmente um acerto de contas entre adolescentes (a vítima tinha 16 anos). Numa primeira etapa, estabeleci uma reconstituição rigorosa dos fatos, recolhendo depoimentos dos mais diversos participantes, entrevistando policiais da delegacia local e os da brigada de homicídios, responsável pelo inquérito. Numa segunda etapa, realizei uma intervenção sociológica7 com os jovens envolvidos, o que significou um convívio de alguns meses com eles. Esse trabalho permitiu um bom entendimento geral da dinâmica do protesto. Mas sobretudo ele confirmou a centralidade da angústia da morte na arquitetura geral do levante.
Centralidade perceptível, primeiro, por meio dos diferentes depoimentos de jovens que recolhemos. Eis um pouco do que eles disseram:
– As émeutes acontecem quando um sujeito morre. Por exemplo, um "tira" derruba um cara numa moto. Fazem uma émeute para ele porque ninguém gosta da polícia.
– As émeutes, é por causa da morte dos jovens em alguns bairros, para vingá-los.
– As émeutes, é por causa de um crime... Você conhece uma pessoa, ela morreu sem razão nenhuma, você sente ódio...
Uma pesquisadora pergunta ao mais jovem dos jovens do grupo como se poderia evitar a émeute; a resposta é surpreendente:
– Não se pode evitar. Quando ela vem, ela vem. Quando a morte vem – ela vem... Vem de repente, não pode ir embora de repente. Quando vem – bom, você não pode renegar a morte...
Protesto fundamental contra a morte violenta de um jovem, há na émeute algo difícil de verbalizar. Um deles acrescenta: "A gente quebra, só isso". No dia em que a émeute foi discutida no nosso grupo de intervenção, um silêncio profundo se instalou. Um dos pesquisadores efetuou um relato retrospectivo dos fatos, e um adolescente perguntou: "Eu só queria saber uma coisa: por que ele foi morto?". O pesquisador diz que a resposta viria com o julgamento do culpado. Uma menina pergunta quando seria o julgamento e começa a chorar (ela era afilhada da mãe do autor do crime). O pesquisador prossegue seu relato. Um dos jovens o interrompe: "Não tenho vontade de falar nisso". O pesquisador pede que ele explique por quê. Ele responde que não sabe, e acrescenta em seguida: "Se a gente falar nisso, é como se...". Ele não completa a frase. Depois retoma: "Não leve a mal, mas isso traz de volta lembranças ruins. A gente pode falar de outra coisa". Aos jornalistas, um deles havia declarado, por ocasião do protesto: "Se nós não tivéssemos nos mexido, ele [a vítima] teria sido enterrado como um imigrantezinho qualquer".
As hesitações que pontuaram nossa discussão são sugestivas da dimensão sagrada do levante. Na França, afirma Jean-Pierre Bernard, a ritualização da morte inscreve-se em uma tradição republicana e de esquerda. Quanto mais o ator se define como ator histórico, mais a celebração ritualizada da morte faz parte do seu processo de estruturação. "A morte comunista é [...] um problema coletivo e comunitário. Ela revela ou precipita o engajamento e a adesão a uma ideologia, a um conjunto de práticas. Ela serve de referência, de exemplo e de marca para o futuro" (Bernard, 1986, p. 42). Essa celebração da morte como elemento constitutivo da memória e do ator coletivo efetua-se freqüentemente pela via do conflito. A esse respeito Madeleine Rebérioux relembra: "Foram necessários quinze anos para que o muro dos confederados8 emergisse como referência privilegiada das mortes da Comuna (de Paris)". Essa memória organiza-se com a "República", e faz parte de um processo que termina por integrá-la, progressivamente, à memória nacional (cf. Rebérioux, 1984, p. 620).
As mortes que hoje se situam no epicentro dos levantes urbanos ainda permanecem em parte estranhas à consciência nacional francesa. Elas são principalmente um problema da juventude imigrante das periferias e dos que com ela convivem mais diretamente. E, no entanto, essas mortes não são menos ritualizadas.
No caso estudado, um educador conta que, depois da onda de violências, os jovens primeiro quiseram ver o amigo na morgue, antes que o caixão fosse lacrado:
[...] eles pediram que nós os acompanhássemos porque estavam com muito medo, eu acho. Pudemos ver Paul, beijá-lo, nos despedir dele... A pessoa está deitada, coberta com um lençol branco, só o rosto aparecendo. Havia a família, muito pouca gente da família. Eles eram muito isolados em relação à sua própria comunidade.
Os amigos encarregaram-se da preparação do enterro. Houve uma reunião, da qual participaram vários funcionários da prefeitura. Era um domingo e os jovens diziam: "Eles vieram, mesmo num domingo...". Nosso interlocutor prossegue:
No dia do enterro, nós os acompanhamos. Havia a família com eles. E justo aqueles que pareciam prestes a cometer as piores violências, a embarcar nos piores delírios, justo esses mantiveram a mais perfeita calma. Eles não queriam a polícia, a polícia estava lá. Eles não queriam os jornalistas, os jornalistas estavam lá. Mas eles respeitaram o contrato9.
Outra testemunha confirma essa apropriação completa pelos jovens da morte do amigo, vivida por eles sem mediação, como morte deles próprios:
[...] havia muito poucos adultos. Os meninos baixaram sozinhos o caixão e cada um deles jogou um pouco de terra por cima. Nunca antes eu havia visto uma coisa assim. Um a um, eles se alternaram, com uma picareta e uma pá para cobrir a fossa. Tive a impressão que era uma coisa muito forte, esse vínculo. Estavam enterrando um deles. Foi insuportável para mim, como ser humano, ver aquilo.
O luto foi tanto mais difícil na medida em que aquela morte trazia a marca da ilegitimidade dos envolvidos e do seu círculo próximo. As reações hostis foram numerosas no âmbito do colégio que a maioria deles freqüentava. Durante quinze dias, vários alunos estiveram ausentes das classes, o que foi mal aceito por alguns professores, e a equipe pedagógica se dividiu. Embora o morto fosse um antigo aluno do colégio, nenhum professor assistiu ao enterro.
Muita gente ficou na defensiva. E, sobretudo, o problema foi mal resolvido aqui. O diretor autorizou certas discussões. E os professores não entenderam isso. Era a negação completa do acontecido – e não se tratava de um acontecimento qualquer. Tratava-se do luto pela morte de um deles. Para nós, isso era muito importante. Quando se perde um ser amado, tem-se o direito de chorar por ele, tem-se o direito também de viver o luto. Direito de refazer a memória. Eu não queria que eles ficassem na rua, com todos os riscos de que a situação degenerasse. Era como uma espécie de acerto de contas extremamente violento. Tudo isso foi denunciado, inclusive no nível ministerial (Assistente social).
Quando eles foram reunidos no nosso grupo de pesquisa, um ano depois, o momento da verbalização daquela experiência ainda não havia chegado.
A lógica da depredação
Se há na émeute uma lógica de autolimitação voluntária, os atos de depredação promovidos pelos casseurs, ao contrário, visam a amplificar o protesto mobilizando meios muito mais consistentes: destruição de prédios públicos e equipamentos esportivos, como em Vaulx-en-Velin e Bron (periferia de Lyon) em abril de 1994, quando o ginásio foi arrombado e incendiado graças ao uso de "carros-tanque"10. Nesse contexto, não se observavam atos de pilhagem. A violência era expressiva, como a das émeutes, e não instrumental. Isso sugere a presença de casseurs políticos cuja perspectiva seria protestar contra políticas públicas que, segundo eles, pretendiam anestesiar os males que afetam as populações dos bairros populares, sem permitir mudanças efetivas em suas condições de vida.
Por outro lado, os casseurs não se definem por uma base territorial própria, mas pela mobilidade e pela variedade das lógicas que informam seu engajamento na violência. Um estudo realizado em 1990 a partir da análise de um universo de 46 jovens – 23 maiores e 23 menores, detidos por ocasião de uma manifestação de estudantes secundaristas em 12 de novembro – sugere que, do ponto de vista da idade, da nacionalidade e do domicílio, eles corresponderiam ao perfil médio dos estudantes secundaristas, com uma propensão maior ao fracasso escolar. O estudo distingue também, nesse conjunto, um quarto de casseurs premeditados e uma ampla maioria de "ocasionais", que se lançam nas depredações a partir do momento em que elas começam a acontecer (cf. CNV, 1990). Os primeiros são designados também casseurs profissionais: acreditam no emprego sistemático da violência para implodir o que chamam de "política do esparadrapo". Não se trata, como no caso da émeute, de uma estratégia que solicita uma abertura do espaço de negociações; trata-se, ao contrário, de tornar visíveis os limites do espaço institucional. São extremamente minoritários – provavelmente mais ainda do que no universo analisado pelo relatório do CNV: vinte em 2000, segundo a estimativa de um deles, que tive a oportunidade de entrevistar. Mas dispõem de uma capacidade considerável de ampliar o perímetro da violência.
O tratamento jornalístico da émeute
O debate em torno da responsabilidade das imprensas escrita e televisiva na qualidade de possíveis incitadoras das violências urbanas tem sido quase tão importante, de alguns anos para cá, quanto o debate sobre a violência propriamente dita. Essa discussão intensificou-se a partir de 1998, depois que um canal regional de televisão filmou diretamente grupos de jovens de um bairro de Strasburgo queimando carros na noite de Ano Novo. Até ali, as imagens de carros queimados de que se dispunha eram as do dia seguinte, as das carcaças calcinadas com grupos de curiosos em volta, num ambiente de destruição. Na noite de Ano Novo de 1997, pela primeira vez uma equipe de jornalistas, acompanhando a freqüência de rádio do corpo de bombeiros, como há muito se faz no Brasil, pôde filmar ao vivo os incêndios. As reações da opinião pública foram tanto mais virulentas quanto se pretendia que essas imagens, divulgadas por todas as emissoras de televisão, teriam contribuído para intensificar a violência.
Foi nesse contexto que Eric Macé e eu lançamos uma pesquisa nacional com cerca de cinqüenta jornalistas de televisão e imprensa escrita sobre o tratamento da violência urbana pela mídia (cf. Peralva e Macé, 2002)11. Nossa primeira constatação foi de que, embora duramente acusados de falta de ética, os jornalistas não se preocupavam menos com as conseqüências das notícias que divulgavam do que o resto da população. Pudemos observar, nas redações, um debate ético sobre a questão, pelo menos tão importante quanto o que estava acontecendo fora delas. Muitos jornalistas preferiam, em certos momentos, não filmar ou não divulgar certas notícias para não correrem o risco de provocar incidentes indesejáveis. E se práticas antiéticas existiam, isso estava longe de ser um fenômeno generalizado. A idéia, bastante presente nos debates, de que as imagens violentas suscitariam reações de imitação e, portanto, novas violências, parecia-nos, por outro lado, pouco consistente com o resultado de pesquisas que mostravam que a "recepção" pelo público das mensagens veiculadas pela mídia era social e culturalmente situada. Em outras palavras: não existe imitação pura, mas reinterpretação, individual e/ou coletiva, das representações da violência (na ficção ou na informação) por categorias da população mais ou menos sensíveis ao tipo de mensagem divulgado. Era, portanto, da relação entre a mensagem e os diversos tipos de receptor que a violência podia (ou não) decorrer, e tudo parecia indicar que a mídia ocupava uma posição subalterna nisso. Ao mesmo tempo, a relação mídia/violência, empiricamente observável, precisava ser explicada.
Nossas constatações sobre as condições de produção da notícia levaram-nos a atribuir grande importância à análise do debate público em torno da violência. Isso porque, embora os jornalistas fossem atores-chave desse debate, a eles cabendo a tarefa de fazer circular o conjunto de idéias referentes aos problemas públicos, eles não eram os únicos elementos ativos no processo de produção da notícia, em grande parte determinada pela relação com as fontes. Ora, essas fontes, por seu turno, eram também elementos ativos do espaço público, engajados num debate público contraditório em defesa de pontos de vista e interesses particulares, embora capazes de produzir a ilusão de estarem submetendo ao debate apenas dados "objetivos" da realidade.
Em outros termos, abordamos o tratamento jornalístico da violência urbana na França como resultado não simplesmente da ação dos jornalistas, mas como um sistema em que os atores principais eram os jornalistas e suas fontes, todos tendo como referência de suas intervenções a "opinião pública". Esse deslocamento do ponto de vista da análise nos permitiu mostrar que, paralelamente aos profissionais da imprensa, outros atores sociais importantes contribuíam para uma formatação do debate público sobre a violência urbana segundo seus interesses próprios. Tal era o caso da polícia, ou dos sindicatos – de professores, de motoristas de transportes coletivos –, muitos dos quais se apoiavam na denúncia da violência para reivindicar melhorias em suas condições de trabalho ou maiores recursos para este ou aquele setor. Pudemos mostrar também que os jovens das periferias urbanas eram os que mais sofriam com a desigualdade das condições de acesso ao espaço público, de tal modo que a violência era para eles um recurso que permitia atrair a atenção da mídia, gerando condições de participação e de expressão pública. O momento das émeutes tinha também esse significado: por meio da violência tornava-se possível constituir um espaço de conflito e de debate; e, inclusive, quanto mais intensa a violência, maiores as chances de uma abertura de espaço. Evidentemente, nessa dinâmica, o lugar da televisão era fundamental.
Nossa análise distinguiu três regimes principais de tratamento jornalístico da violência: as situações de rotina, em que as estratégias de comunicação das fontes de informação – atores políticos ou sindicatos, por exemplo, conforme indicado acima – e a assimetria nas relações entre elas desempenham papel fundamental; as situações excepcionais, como no caso das émeutes, em que a dimensão imprevista do acontecimento desorganiza a rotina e reconfigura os quadros de interpretação do problema; e, por fim, o regime de amplificação, em que o jornalista participa diretamente da produção da violência, na medida em que cabe a ele a iniciativa da matéria que vai tratar do assunto. Este, por sinal, foi exatamente o caso da noite de Ano Novo de 1997 já referida. Uma reconstituição dos fatos efetuada pelo jornal Libération mostra que, em 15 de dezembro, uma autoridade da área de segurança de Strasburgo divulgou estatísticas relativas à queima de carros na cidade no período de fim de ano. Um despacho da agência France Press em 26 de dezembro alimentou as redações de jornais com a informação de que o número de incêndios estava crescendo. Isso bastou para que uma rede de televisão local tomasse a iniciativa de filmar ao vivo a queima de carros, confirmando o interesse público pelo problema e abrindo espaço para ampliá-lo. O caso da émeute é relativamente distinto desse exemplo, porque a iniciativa da notícia não é dos jornalistas – eles se limitam a cobrir um protesto violento que já está ocorrendo, no qual os jovens reagem à morte violenta de um deles.
Em dezembro de 1998, tivemos a oportunidade de examinar detalhadamente o modo como a imprensa escrita e a televisão lidavam com uma émeute. Nossa pesquisa sobre o tratamento jornalístico da violência estava em andamento quando um protesto de grandes proporções, com duração de uma semana, foi desencadeado em Toulouse. Um adolescente de 16 anos, que tentava furtar um carro, foi morto com um tiro disparado pela arma de um policial. Embora baleado, ele conseguiu fugir. De volta à delegacia, a equipe não declarou o incidente, nem o uso da arma (o policial mais tarde afirmou não ter percebido que seu revólver havia disparado). O adolescente em fuga escondeu-se debaixo de um carro poucas ruas adiante e esvaiu-se em sangue até o dia seguinte, quando o corpo foi encontrado por um transeunte.
O exame do tratamento jornalístico desse protesto mostrou-nos, primeiro, o conflito de interpretações que a situação revelava: entre os émeutiers e a opinião pública local e nacional sensível à morte brutal de um adolescente, preocupados em esclarecer a responsabilidade da polícia nesse incidente grave, e as autoridades locais e nacionais da área de segurança, bem como os sindicatos de policiais, preocupados em defender com unhas e dentes a imagem da polícia. Esse exame mostrou-nos também a ambivalência dos jornalistas: por um lado, sensíveis ao tema dos direitos humanos – do direito à vida – que a émeute trazia para a ordem do dia, a tal ponto que a crítica à instituição policial foi, de início, unânime entre eles, e isso independentemente da orientação política dos órgãos a que pertenciam; mas, por outro lado, sensíveis também à legitimidade inconteste das "instituições republicanas", sério obstáculo, portanto, ao exercício de qualquer crítica contra elas. A polícia terminou levando a melhor nesse conflito de interpretações: um incidente isolado (o tiro disparado contra um policial por um indivíduo sem nenhuma relação com o protesto) fez com que a morte do adolescente deixasse de interessar a imprensa, suscitando ao mesmo tempo uma reinterpretação da violência, agora não mais pela idéia de luta pelo direito à vida, mas por meio das categorias policiais do combate à delinqüência e ao crime.
Novembro de 2005
A crise de novembro de 2005 apresenta semelhanças formais com os incidentes que descrevemos até o momento. Na origem, uma émeute12: jovens descendentes de imigrantes desencadearam o protesto em reação contra a morte violenta de dois deles. Em seguida, a extensão do perímetro da violência graças à intervenção de casseurs. Pela primeira vez em 25 anos, no entanto, a violência afetou o território nacional no seu conjunto. Pela primeira vez, também, sindicatos, associações e partidos de esquerda mantiveram-se praticamente silenciosos. E a importância adquirida pela presença da imprensa internacional na cobertura dos acontecimentos não tem termo de comparação com qualquer outra situação do mesmo tipo.
Clichy-sous-Bois
Em 27 de outubro, a denúncia de furto de um automóvel levou a polícia a Clichy-sous-Bois (município da periferia nordeste de Paris, com 23 mil habitantes). Essa intervenção terminou redundando em um acidente grave: três adolescentes, para fugir do controle policial, pularam o muro de uma central elétrica – dois deles morreram imediatamente, eletrocutados, e o terceiro escapou com ferimentos graves. Naquela mesma noite, carros foram incendiados na cidade e verificaram-se também incidentes com a polícia e o corpo de bombeiros. No dia seguinte, os enfrentamentos prosseguiram, já incluindo a cidade vizinha de Montfermeil. Tiros foram disparados contra as brigadas do CRS13. No dia 30, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, anunciou que receberia as famílias dos adolescentes mortos, que no entanto se recusaram a encontrá-lo. O advogado que as representava solicitou abertura de inquérito para saber "por que jovens que nada tinham a temer sentiram-se tão ameaçados a ponto de penetrar em um local perigoso". Por várias noites consecutivas a violência prosseguiu em Clichy. Por algum tempo, a polícia não falou de levantes e sim de "incidentes localizados". Em meio a um novo conflito entre émeutiers e a polícia, a mesquita de Clichy foi atingida por uma bomba de gás lacrimogênio, contribuindo para radicalizar ainda mais a violência.
Os acontecimentos de Clichy-sous-Bois constituem o epicentro da crise de novembro e apresentam a mesma forma básica que já evocamos anteriormente: na origem, um protesto violento desencadeado em resposta à morte violenta de dois jovens, após uma intervenção malsucedida da polícia. No caso, coube principalmente a líderes religiosos muçulmanos a tarefa de apaziguar os ânimos, em lugar dos sindicatos e das associações que, nas ocorrências de émeutes, sempre se incumbiram de dar ao protesto um caráter pacífico, de manifestação pública. Em um artigo publicado no jornal Libération, os sociólogos Didier Lapeyronnie e Laurent Mucchielli notavam justamente que dessa vez os émeutiers estavam sozinhos14.
Importa observar, mais além da angústia que a morte violenta de um jovem suscita entre os membros de seu círculo próximo, o sentimento de injustiça que se associa a essa morte considerada inaceitável, sentimento estreitamente ligado à ação da polícia nos bairros populares. A idéia de "classe perigosa" retorna com toda a força, como muitos sociólogos vêm indicando há algum tempo a respeito desses conflitos, na medida em que aí se combinam o sentimento de opressão e a percepção da delinqüência, por parte daqueles que a praticam, como ato de resistência legítimo (cf. Hobsbawm, 1976). Tal sentimento de injustiça e o protesto que ele alimenta, a recusa em aceitar a banalização da morte, são inseparáveis de uma cultura política republicana que afirma a prioridade do direito à vida e dos direitos humanos em geral. Em outras palavras, desenha-se em torno da émeute, como já dissemos, um importante conflito de interpretações no que se refere à responsabilidade da polícia no incidente: de um lado, o Estado tenta evitar ao máximo que a polícia seja desacreditada; de outro, os jovens, por experiência, consideram a responsabilidade dos policiais um fato indubitável. Neste caso, como no de Toulouse, a mídia hesita entre as duas versões em confronto.
A primeira reação do ministério do Interior após a morte dos adolescentes foi declarar, com base apenas nas afirmações dos policiais, que eles não estavam sendo perseguidos quando se refugiaram na central elétrica. Diante da pressão das famílias e da ampliação da área dos conflitos, o primeiro-ministro veio a público para garantir que tudo seria feito para esclarecer as circunstâncias das mortes. A imprensa de início referiu-se simplesmente a uma "morte acidental", mas pouco a pouco começou a interessar-se pelos detalhes. Os primeiros resultados do inquérito administrativo permitiram constatar que um policial havia prevenido seus colegas, por rádio, quanto ao risco de morte que os adolescentes corriam. A mensagem foi captada por várias viaturas, mas nada foi feito para salvá-los, e os policiais diretamente envolvidos continuaram afirmando não ter visto nada. As declarações do terceiro adolescente, que escapou com ferimentos graves, confirmaram que os três haviam buscado refúgio no interior da central para escapar da polícia. Um inquérito judicial foi aberto para estabelecer a verdade dos fatos, que, como sempre nesses casos, deverá levar muito tempo para vir a público.
O sentimento de injustiça que a émeute traduz – e de impotência quanto à possibilidade de uma resposta institucional justa à violência sofrida – tem a ver com essa situação, que, por isso, não pode ser explicada apenas à luz de indicadores gerais relativos às condições de vida dos jovens pobres descendentes de imigrantes, quer sejam as desigualdades sociais ou as discriminações efetivamente sofridas por eles. O protesto revela a que ponto esses jovens estão imersos na cultura política francesa dos direitos humanos, que reprova a banalização da morte violenta e injusta. Nesse sentido, vale observar o quanto as émeutes francesas se diferenciam dos riots norte-americanos, que causam dezenas de mortes; na França, essa violência só produz perdas materiais. Ao mesmo tempo, a impermeabilidade à crítica que garante uma legitimidade inconteste às instituições republicanas – das quais faz parte a polícia – é vivida pelos émeutiers como algo intolerável, uma vez que os desqualifica e desqualifica seu protesto.
A ampliação do perímetro da violência
No dia 2 de novembro, a imprensa informou que as tensões, antes restritas à área próxima de Clichy-sous-Bois, se haviam estendido ao conjunto da região de Ile-de-France. A violência era medida dia após dia pelo número de carros queimados. Uma delegacia de polícia, uma concessionária de automóveis, um ginásio e um centro comercial foram apedrejados e incendiados. Uma garagem de ônibus ao sul de Paris queimou integralmente e ônibus de passageiros foram esvaziados em pleno dia e também incendiados.
Pouco a pouco os incidentes estenderam-se ao resto do país. No dia 8 de novembro, o primeiro-ministro Dominique de Villepin decidiu decretar o estado de urgência15. O toque de recolher foi instaurado em grandes cidades como Nice, Orléans, Le Havre, Amiens e Rouen. A violência diminuiu imediatamente. Alguns incidentes graves, no entanto, continuaram a ocorrer depois do estado de urgência, como o incêndio do teatro nacional de Louvrais, em Pontoise, periferia norte de Paris: um carro-tanque destruiu a porta envidraçada da entrada e terminou sua corrida contra uma pilastra do hall. No dia 13, a violência prosseguia no interior do país, notadamente com incidentes em pleno dia no centro de Lyon. No dia 16 de novembro a polícia anunciou que a situação havia se normalizado em toda a França. Segundo o Serviço de Informações (Renseignements Généraux), ao longo desses 21 dias passou-se progressivamente de pequenos atos de "guerrilha urbana", com os primeiros incidentes ligados à morte dos dois adolescentes em Clichy-sous-Bois, a uma "insurreição urbana" e um "movimento de revolta popular" (Le Monde, 7 de dezembro de 2005). Pela primeira vez em 25 anos esse tipo de protesto tinha essa duração e adquiria tal dimensão nacional.
O tratamento jornalístico do protesto
A novidade, nesse plano, foi o grande interesse manifestado pela imprensa internacional com relação ao que estava ocorrendo na França. A importância da cobertura televisiva em detrimento da imprensa escrita e radiofônica traduzia um movimento relativamente recente de reorganização de grandes plataformas de informação, como a BBC em Londres, ou a multiplicação do número de correspondentes permanentes no exterior de cadeias de televisão brasileiras, por exemplo. Essas tendências, bastante visíveis naquele momento, pareciam apontar para um novo patamar na mundialização do debate público. A situação francesa mereceu destaque por um longo período em toda a imprensa escrita, televisiva e eletrônica européia, com as imagens de carros e ônibus queimados sendo passadas e repassadas, como ocorrera com as do 11 de setembro nos Estados Unidos. Da Suécia ao Qatar, diz o Le Monde de 10 de novembro, "numerosas autoridades políticas e religiosas pronunciaram-se a respeito das violências urbanas na França". No dia 14, em uma declaração pública, o presidente da República protestou contra a imagem do país veiculada pelos jornalistas estrangeiros e manifestou a intenção de organizar um encontro com os responsáveis das grandes cadeias de televisão, que, segundo ele, não estariam refletindo adequadamente a "realidade" da crise das periferias urbanas.
Esse debate público mundial, construído por meio dos pontos de vista da imprensa de vários países, implicou uma tradução da crise francesa nos termos dos diferentes debates nacionais: para os russos e Vladimir Putin, havia uma analogia clara com o terrorismo checheno e a necessidade de esmagá-lo; para a imprensa britânica, tratava-se da "crise do modelo de integração francês", concorrente do modelo britânico, posto que, contrariamente a este último, recusa-se a reconhecer a especificidade étnica e cultural das populações imigrantes.
A dimensão da crise
Os levantes urbanos de novembro de 2005 implodiram os limites espaciais e temporais dos protestos anteriores e revestiram a forma de um "repertório nacional da ação coletiva popular", conforme os termos de Tilly (1986). A natureza da ação não havia mudado, mas sim a escala do protesto. Até então as émeutes, embora ocorressem em diversos momentos em diferentes pontos do território nacional, apresentavam-se como ações localizadas e fragmentárias. Ainda que as condições para a mudança de escala estivessem dadas, em função da generalização progressiva dessa experiência desde 1990, até então ela não ocorrera. A presença da imprensa internacional criou, sem dúvida, um efeito de ampliação do protesto, uma vez que multiplicou o número de cenas públicas oferecidas aos manifestantes. Mas isso não explica tudo.
Mesmo em pequena escala, as émeutes sempre foram um "fato social total", impossível de ser compreendido apenas à luz dos indicadores relativos à pobreza e às múltiplas desigualdades que afetam os bairros populares. Esse psicodrama coletivo sempre implicou, simultaneamente, a dinâmica das instituições, as condições do espaço e do debate público e a vida política do país em geral. Os imigrantes e as periferias urbanas, onde eles vivem, cristalizam há muito tempo as inquietações da população francesa diante do desemprego, da mundialização, do terrorismo ou, simplesmente, da mudança. O debate sobre a violência urbana foi central nas eleições presidenciais de 2002: ele levou a extrema-direita ao segundo turno, excluindo o candidato da esquerda, e transformou Jacques Chirac, de simples candidato da direita republicana, com pouco mais de 18% dos sufrágios no primeiro turno, em candidato de união nacional aclamado por 80% dos eleitores no segundo turno.
A "crise das banlieues" de novembro de 2005 é inseparável de uma conjuntura política marcada pela divisão no seio da atual maioria parlamentar de direita. E, contrariamente às émeutes anteriores analisadas por mim, caracterizadas – não obstante os limites próprios dessa forma de ação coletiva – por certo grau de autonomia, a violência de novembro de 2005 é marcada por uma forte dose de heteronomia e reflete as tensões observáveis na esfera política.
Pivô da crise, Nicolas Sarkozy, presidente da UMP, o partido da direita republicana, é o candidato provável à eleição presidencial de 2007, contra a vontade de Jacques Chirac (de quem se tornou inimigo incontornável em 1995, quando apoiou outro candidato da direita à presidência). A pretensão de Sarkozy à sucessão de Chirac manifestou-se desde o início do atual mandato, quando ele passou a ocupar o cargo de ministro do Interior (equivalente ao de ministro da Justiça no Brasil) com um discurso agressivo em relação à juventude imigrante das periferias urbanas, destinado a seduzir o eleitorado de extrema-direita. Após um período fora do ministério para se dedicar à presidência da UMP, ele retornou em junho de 2005, a pedido de Chirac – num contexto marcado pela rivalidade com o primeiro-ministro, Dominique de Villepin, também potencial candidato às eleições presidenciais de 200716. Utilizando uma estratégia eleitoral marcada por forte presença na mídia, Sarkozy procurou apresentar-se desde o início como representante da ordem e da lei (utilizando uma linguagem crua para se referir aos "delinqüentes"), e, ao mesmo tempo, como porta-voz de um reformismo liberal. Em junho de 2005, por exemplo, poucos dias depois de ter retornado ao Ministério do Interior, uma bala perdida num bairro popular da periferia norte de Paris provocou a morte de uma criança. Esse fato envolvia a responsabilidade do Ministério, mas o ministro contornou habilmente as críticas com um "factóide": declarou que iria promover uma "lavagem total" no bairro ("nettoyer la cité au Kärcher"). O escândalo suscitado por essa declaração, que feriu as suscetibilidades dos moradores e foi considerada de conotação racista, trouxe para o segundo plano qualquer discussão em torno da morte da criança. As críticas, que se prolongaram por vários meses, concentraram-se na personalidade do ministro, bem mais do que na incompetência do Ministério por ele dirigido em garantir a segurança dos cidadãos.
A morte por eletrocussão dos dois adolescentes de Clichy-sous-Bois ocorreu dois dias depois de Nicolas Sarkozy ter produzido mais um desses "factóides". Em visita "surpresa" à delegacia de polícia de outro bairro popular da periferia norte de Paris, acompanhado de jornalistas e câmeras de televisão, Sarkozy referiu-se aos jovens (delinqüentes) do bairro como "gangrena" e "ralé" – la racaille. A visita, efetuada às 21 horas – horário em que a delegacia estava habitualmente fechada (ela foi aberta especialmente nessa noite) –, criou uma "cena" para o ministro e uma situação de conflito aberto com os moradores do bairro, que acorreram em massa para ver o que estava acontecendo. O prefeito da cidade (Argenteuil), do mesmo partido de Sarkozy, declarou mais tarde que não havia sido prevenido da visita e lamentou que todo o trabalho realizado localmente, na perspectiva de responder aos problemas do bairro, pudesse ter sido liquidado por uma intervenção tão intempestiva.
A série de violências desencadeadas a partir das mortes de Clichy-sous-Bois está diretamente ligada a essas ações do ministro do Interior, que imprimiram ao protesto uma lógica diretamente política: para muitos jovens descendentes de imigrantes em toda a França, tratava-se de obrigá-lo a pedir demissão (o Le Monde de 4 de novembro, por exemplo, traz as declarações de jovens de Aulnay-sous-Bois, uma semana depois do início das manifestações: "Isso é apenas o começo. Vamos continuar até que Sarkozy peça demissão". A televisão registrou várias outras declarações do mesmo tipo em toda a França).
Crise das periferias urbanas, crise da democracia
Por trás dos levantes urbanos que vêm ocorrendo na França há 25 anos, não está apenas uma crise social; está também uma crise de representação, na medida em que os habitantes dos bairros populares, jovens ou não, excluídos do mundo do trabalho, não têm acesso à esfera política. Desse ponto de vista, é importante notar que, a cada levante, a dinâmica da violência tende a desembocar em um esforço de organização coletiva, mas o fôlego nunca é suficiente para que isso se mantenha – e, mesmo quando é esse o caso, o âmbito da ação é excessivamente limitado para que seus efeitos sejam sentidos num plano mais geral. De um lado, não há vontade política de dar voz e meios de atuação a essas populações – o voto dos estrangeiros no plano municipal, que fazia parte do programa de campanha do primeiro governo de François Mitterrand, jamais foi adotado pela esquerda. Por outro lado, a instância organizativa que lhes permitiria existir coletivamente, a associação, é concebida na França como uma estrutura pára-estatal, subvencionada com fundos públicos e estreitamente controlada (cf. Barthelemy, 2000). A tentativa de eleger descendentes de imigrantes no âmbito municipal a partir das clássicas listas dos partidos de esquerda e de direita marcou a atividade associativa dos jovens descendentes de imigrantes nos anos de 1980, mas os resultados foram magros; e sobretudo o élan associativo observado nessa década degringolou nos anos de 1990, redundando em conflitos de grande porte e na liquidação judiciária de algumas iniciativas, como no caso da associação nacional France Plus (cf. Peralva, 2002).
Nesse sentido, o debate público sobre as periferias urbanas define-se por uma assimetria estrutural. Os bairros populares são construídos como "problemas", objetos do olhar externo, dispondo quase que exclusivamente da violência como recurso de ação. Mas a heteronomia que define essa parcela da população faz dela, ao mesmo tempo, o foco catalisador de uma crise mais geral da democracia francesa. Tal crise requer pelo menos três níveis de análise: 1) ela se traduz em um esgarçamento visível do tecido social, com uma parte da população integrada à dinâmica econômica e outra excluída ou destinada ao trabalho intermitente e precário, privada de iniciativa e reduzida aos benefícios da assistência pública; 2) ela se traduz em uma interpelação radical das bases propriamente nacionais de uma democracia que, desde o fim do século XIX, constituiu-se como espaço principal de expressão dos conflitos sociais e da negociação política. No quadro de um mercado mundializado, a questão dos conflitos do trabalho está colocada em novos termos; por outro lado, as migrações transnacionais e os fluxos de produtos lícitos e ilícitos, que ignoram as fronteiras dos Estados, posicionam estes últimos diante de problemas sem solução imediata, debilitando-os perante uma opinião pública, para quem a "ordem" se tornou uma reivindicação fundamental17; 3) ela se traduz em uma interpelação das bases sociais da representação, problema que transcende amplamente os limites das periferias urbanas e que vem afetando de forma duradoura os partidos da direita e da esquerda clássicas, abrindo um espaço significativo para a extrema-direita e para a extrema-esquerda, transformando o voto em instrumento de rejeição da mudança (como em maio de 2005, com o "não" resultante do referendo sobre o Tratado de Constituição Européia), muito mais do que de defesa de projetos alternativos (cf. Perrineau, 2003)18.
Essas três questões – social, nacional e política – estão, é claro, estreitamente interligadas, mas a crise de representação teve uma importância dinâmica fundamental no episódio de novembro de 2005. A relativa indefinição da base atual dos partidos restaurou o carisma e o populismo como princípios de elegibilidade.
Contrariamente ao que se poderia supor, os institutos de pesquisa indicaram que Nicolas Sarkozy não se havia enfraquecido pela violência de novembro. Sua estratégia eleitoral agressiva parecia, portanto, estar dando certo. Concorrente direto de seu ministro do Interior à Presidência da República, o primeiro-ministro Dominique de Villepin decidiu então adotar uma estratégia semelhante, propondo de si mesmo uma imagem de dinamismo e capacidade de induzir a mudança. Para isso fez votar em fevereiro, como medida de urgência, a lei da "igualdade das oportunidades", que, entre outros dispositivos, incluía um novo contrato de trabalho destinado aos jovens com menos de 26 anos. Durante um período de dois anos, essa medida autorizaria os patrões a despedirem seus jovens empregados sem aviso prévio e sem nenhuma justificativa. A resistência dos estudantes universitários e secundaristas paralisou por dois meses (um trimestre letivo) os estabelecimentos de ensino. Com a ajuda das grandes centrais sindicais, eles finalmente obtiveram a retirada do dispositivo. Menos de três meses depois, a crise do "Contrato do Primeiro Emprego" foi a réplica em outras bases da crise de novembro de 2005.
Novembro de 2005: redes de televisão do mundo inteiro transmitiram por vários dias as impressionantes imagens de automóveis em chamas nas periferias urbanas da França. Os jornalistas explicavam que a "crise do modelo social de integração" francês estaria provocando a revolta de jovens sem diploma, desempregados, filhos de imigrantes, vítimas constantes do fracasso escolar, do racismo e da exclusão. A expressão émeute, utilizada para designar esses protestos urbanos violentos, riot em inglês, não tem equivalente exato em português. Sua dupla raiz – movimento e emoção – sugere o quanto a émeute é, indissociavelmente, uma "coisa" e um pensamento que a qualifica. Há nela a idéia de movimento, mas há também o atributo da "irracionalidade" que seria própria a uma manifestação de tipo emocional. Tal atributo nada tem a ver em si com a violência – nem todo protesto violento é qualificado de émeute. Quando camponeses franceses atacam caminhões espanhóis ou italianos para destruir mercadorias (frutas, legumes, vinho) que supostamente impõem a seus próprios produtos uma concorrência desleal, não se fala de émeute. Enquadradas por sindicatos rurais, essas manifestações inscrevem-se nos quadros de inteligibilidade característicos dos "movimentos sociais".
A émeute está ligada na Europa a uma longa tradição histórica de protestos pré-democráticos que pareciam fadados a desaparecer sob a democracia. Nos anos de 1950, quando Eric Hobsbawm publica seu estudo sobre as premissas da revolta na Europa moderna, ele insiste no caráter arcaico desse tipo de protesto, inimaginável em nossa era, segundo ele (cf. Hobsbawm, 1966, p. 129). E quando, surpreendentemente, o fenômeno ressurge, como em Brixton em abril de 1981, primeiro grande levante do gênero na Europa do século XX, um relatório destinado ao Parlamento britânico diagnostica por trás desse conflito um questionamento profundo das bases da paz civil (cf. Scarman, 1982).
De fato: o esgotamento dessa forma tradicional de ação coletiva popular que é a émeute se explica pela excepcional ampliação do espaço político que dominou o horizonte das democracias ocidentais ao longo do século XX. Fenômeno "pré-político", segundo a expressão polêmica e freqüentemente contestada de Hobsbawm, a émeute, em suas formas históricas mais antigas, está estreitamente ligada a um déficit de cidadania e tende a desaparecer sempre que cidadania e capacidade de negociação política se desenvolvem. Nesse sentido, sua reativação tem de ser compreendida à luz da formidável erosão atual do campo político e daquilo que, na experiência contemporânea, escapa ao quadro institucional democrático – mesmo quando esse quadro é parcialmente preservado.
O retorno das émeutes na França
O declínio dos levantes urbanos a partir de meados do século XIX deu-se paralelamente aos progressos na organização dos trabalhadores (formação de sindicatos, partidos, de uma imprensa operária), mas foi efeito também de importantes mudanças na maneira como as elites se relacionavam com as massas populares. Antes classificadas como classes "perigosas", estas últimas foram sendo paulatinamente redefinidas como classes "laboriosas" (cf. Chevalier, 1984; Robert, 1990), conquistando o direito à manifestação pacífica nas ruas (cf. Favre, 1990)1. Essas mudanças remetem às condições históricas que tornaram possível uma pacificação relativa das relações sociais, graças ao chamado "modelo republicano", que surge em meio aos intensos debates sobre a maneira de se "criar uma sociedade" que marcaram o advento da 3ª República (1870-1940) (cf. Donzelot, 1984).
Após a revolução de 1848, após a derrota de 1870 contra a Alemanha e a Comuna de Paris algum tempo depois, os riscos de desagregação, ruptura e violência eram consideráveis na França. A "República", nesse sentido, representou um compromisso limitado entre ordem social e democracia. A ordem constituiu-se sobre uma base nacional graças à formação, nos termos de Dominique Schnapper (1994), de uma "comunidade de cidadãos": apoiados na laicidade (isto é, na neutralidade) do Estado, esses cidadãos podiam definir-se como indivíduos iguais diante do Estado e da lei, não obstante a profunda desigualdade social que os separava e não obstante o fato de seus credos políticos, religiosos ou culturais serem diferentes. A ordem constituiu-se também com base em um princípio social – a complementaridade de funções econômicas características do mundo industrial, distintas mas igualmente necessárias e portanto legítimas, como a de operário e patrão, tornava viável a existência de uma solidariedade "orgânica" e possível a construção de uma "sociedade" (nacional), nos termos de Durkheim. Quanto à democracia, ela se construiu não simplesmente pelo reconhecimento do direito de voto aos operários, mas pela aceitação, pela "República" e no âmbito da nação, da legitimidade do conflito de classes. Nesse sentido, a representação do fenômeno republicano enquanto simples "comunidade de cidadãos" (cf. Schnapper, 1994), que impregna o debate francês atual, é perfeitamente inexata, posto que não considera o tema do conflito de classes, indissociável da formação da nação naquele momento (cf. Gauchet, 1980).
Hoje, uma das razões (embora não a única) do esgotamento desse modelo é justamente o debilitamento do conflito de classes, diante de uma dinâmica definida por novos patamares de individualização da vida social e pela construção de novas formas de agregação coletiva a partir de princípios distintos daqueles que tiveram por base o conflito industrial. As condições históricas em que esse esgotamento se efetua são complexas e remetem a um conjunto de transformações que afetaram de modo ininterrupto a França e as grandes democracias industriais no momento do segundo pós-guerra: desde o crescimento considerável dos níveis de consumo, a diminuição relativa do emprego industrial e a ampliação proporcional do setor de serviços e das camadas médias, a melhoria das condições de proteção social e o crescimento dos níveis de educação da população, até, mais recentemente, todas as mudanças econômicas e tecnológicas que acompanharam o fenômeno da mundialização e toda a gama de efeitos negativos a ele associados, como o crescimento do desemprego e o debilitamento da capacidade das instituições de Estado de preservarem as antigas bases "republicanas" da unidade nacional (cf. Dubet, 2002; Schnapper, 2002).
Se as mudanças são complexas e profundas, seus aspectos negativos principais assumiram os traços de uma juventude de extração popular formada por descendentes dos trabalhadores estrangeiros que se instalaram no país entre 1945 e 1974, no quadro de uma política de imigração destinada a suprir com mão-de-obra pouco qualificada a economia francesa (cf. Weil, 1991). Com o fechamento das fronteiras à imigração de trabalho, na década de 1970, os trabalhadores estrangeiros adquiriram o direito à residência permanente no país trazendo suas famílias, graças a um dispositivo denominado "reagrupamento familiar"2. A imigração portanto prossegue, não mais como imigração de trabalho, mas como de povoamento. Antes praticamente invisíveis, esses novos imigrantes logo se tornariam visíveis no mundo urbano, onde deixam a marca de suas práticas religiosas, da presença de seus filhos nas escolas, ao mesmo tempo em que os homens passam a ser maciçamente atingidos pelo desemprego.
A entrada no espaço público de uma juventude formada por descendentes de imigrantes estrangeiros ocorre no começo dos anos de 1980 com duas expressões principais: condutas de ruptura amplamente mediatizadas – os famosos "rodeios" da periferia de Lyon, em que carros furtados circulavam em alta velocidade pelos bairros populares, sendo em seguida ritualmente incendiados numa espécie de potlatch dos tempos modernos; e a formação de um movimento beur3 e de associações anti-racistas. Se a violência já era então fato presente e facilmente observável nas periferias urbanas, ela não era ainda tema do debate público. Mas passa a ser no começo dos anos de 1990, quando o termo "violência urbana" é introduzido na mídia e começa a formatar os despachos da agência de notícias France Press, tornando-se uma rubrica permanente nas redações de jornal e televisão (cf. Peralva e Macé, 2002). Esse momento corresponde a uma radicalização do debate de que é objeto essa categoria da população. Daí para frente ela encarnará não mais os limites do "modelo republicano" e a necessidade de um ajuste em sua capacidade de "integração", conforme os termos utilizados na década anterior, mas a ameaça contra ele: passa a ser vista como "incapaz de se integrar", de "respeitar a lei comum" e os preceitos da "República". Tal é o contexto moral que marca o ressurgimento das émeutes no país.
Os levantes da morte
Os levantes populares do tipo dos que nos interessam aqui distinguem-se em função do que neles está em jogo, a cada momento. Na Europa pré-industrial, eles eram "alimentares" – ligados à variação no preço do trigo, item particularmente importante no orçamento das famílias pobres (cf. Tilly, 1978; Rudé, 1982); na França do século XIX, traduzem a presença no espaço público de uma massa popular que ameaça o poder pela via da ruptura revolucionária – nesse sentido, a violência tem um conteúdo protopolítico, embora crime e violência política fossem então quase inseparáveis, o que de resto explica a designação "classes perigosas". Os levantes que, na década de 1960, pontuaram a longa luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis foram inextricavelmente ligados à dinâmica das relações raciais no país. Como caracterizar o conteúdo dos levantes desencadeados por jovens descendentes de imigrantes nas periferias urbanas francesas nos anos de 1990? Embora eles sejam freqüentemente explicados como resultado das dificuldades sociais que afetam essa categoria da população, há neles alguns traços específicos que se repetem há 25 anos e que só uma abordagem fenomenológica do problema permite revelar.
A primeira émeute dessa série na França ocorre em Vaulx-en-Velin, periferia urbana de Lyon, em outubro de 1990. À época, o bairro afetado pela violência encontrava-se em plena renovação urbana, por iniciativa da prefeitura, apoiada por uma maioria de vereadores comunistas. No sábado, dia 6, Thomas Claudio, jovem descendente de imigrantes portugueses, morre em um acidente de motocicleta ao tentar escapar de um controle policial por não estar usando o (obrigatório) capacete. No domingo, dia 7, incidentes violentos são registrados no bairro. Na segunda-feira, dia 8, eles se estendem a outras cidades da periferia de Lyon e sua gravidade se intensifica.
Duas pesquisas sobre o tema realizadas para o Instituto de Altos Estudos da Segurança Interna, IHESI, permitiram-me recensear 24 incidentes do mesmo tipo entre outubro de 1990 e julho de 1995 em diferentes cidades da França. Esses dados levaram-me a designar essas manifestações como "os levantes da morte". Em outras palavras, o fenômeno, tal como se repete na França desde outubro de 1990 (e tal como se configurou em novembro de 2005, último levante importante registrado), pode ser definido como um protesto violento engajado por jovens habitantes das periferias urbanas em resposta à morte violenta de um deles. Em mais de um terço dos casos estudados, a polícia esteve direta ou indiretamente envolvida na morte que desencadeou o protesto4. Mas registram-se igualmente incidentes em razão de mortes causadas por vigias de supermercados, por suicídio na prisão ou crises desencadeadas por sentenças judiciais consideradas condescendentes com relação a autores de homicídios de jovens, ou diretamente em reação contra tais homicídios. Os jovens confirmam essa causalidade central. Em outubro de 1990, por ocasião do levante de Vaulx-en-Velin, um deles declara aos jornalistas: "Não esqueçam de dizer que isso não tem nada a ver com os verões quentes das Minguettes [referência aos "rodeios" de carros do início dos anos de 1980 em um bairro de Venissieux, também periferia urbana de Lyon]. Agora é por causa dos mortos" (Libération, 8 de outubro de 1990, grifo meu).
Ao fenômeno corresponde uma temporalidade típica-ideal, em três atos. Primeiro ato, um protesto violento circunscrito a um bairro – o bairro de residência da vítima – imediatamente após a morte violenta do jovem5. Segundo ato, assiste-se a um deslocamento da área do conflito, freqüentemente em direção ao centro da cidade ou mesmo para cidades próximas, graças à presença de casseurs6. Observa-se nesse momento uma elevação considerável do nível de violência. Terceiro ato, a violência reflui e uma manifestação pacífica é organizada na tentativa de transformar a revolta inicial em protesto político. O epicentro do levante, a émeute propriamente dita, é constituído por um movimento de base emocional, em reação contra a morte violenta em questão. Embora não se trate de mobilização organizada, a violência constitui os jovens como comunidade imaginada e, mais ainda, constitui em torno deles um espaço público no qual são chamados a se comportar como atores coletivos. A violência atrai a mídia e suscita a presença de uma nebulosa de aliados – adultos do bairro, sindicalistas, atores institucionais. Ela mobiliza vereadores, deputados e o poder público em geral. A presença dos casseurs introduz nesse processo dois elementos novos. Primeiro, transformando a émeute de protesto ligado a uma experiência territorializada em algo maior, na medida em que as depredações ampliam a geografia da violência. Mas também porque os casseurs marcam os limites desse espaço público recém-constituído e das negociações que ele autoriza. A violência da émeute é canalizada de forma precisa e é autolimitada. Freqüentemente os émeutiers procuram demarcar-se das depredações efetuadas pelos casseurs, reivindicando um tratamento institucional dos problemas que os afetam. Mas o espaço público que em torno deles se forma, graças à violência, é frágil e desfaz-se rápido demais, impedindo-os de se constituírem duradouramente como atores coletivos.
O engajamento subjetivo na violência
Interessava-me compreender as condições do engajamento subjetivo dos jovens na émeute. Até que ponto esse engajamento tinha raízes sociais e podia ser explicado em termos de pobreza, exclusão, fracasso escolar, como pretendiam os mais diversos atores do debate público, inclusive os jornalistas? Para tentar responder, escolhi o caminho do estudo de caso. Interessou-me uma émeute ocorrida em 1994 numa cidade da periferia norte de Paris, em que o incidente desencadeador havia sido a morte de um jovem por outro jovem. Nenhuma intervenção da polícia, direta ou indireta, nenhuma intervenção de adultos ou vigias de supermercado. Simplesmente um acerto de contas entre adolescentes (a vítima tinha 16 anos). Numa primeira etapa, estabeleci uma reconstituição rigorosa dos fatos, recolhendo depoimentos dos mais diversos participantes, entrevistando policiais da delegacia local e os da brigada de homicídios, responsável pelo inquérito. Numa segunda etapa, realizei uma intervenção sociológica7 com os jovens envolvidos, o que significou um convívio de alguns meses com eles. Esse trabalho permitiu um bom entendimento geral da dinâmica do protesto. Mas sobretudo ele confirmou a centralidade da angústia da morte na arquitetura geral do levante.
Centralidade perceptível, primeiro, por meio dos diferentes depoimentos de jovens que recolhemos. Eis um pouco do que eles disseram:
– As émeutes acontecem quando um sujeito morre. Por exemplo, um "tira" derruba um cara numa moto. Fazem uma émeute para ele porque ninguém gosta da polícia.
– As émeutes, é por causa da morte dos jovens em alguns bairros, para vingá-los.
– As émeutes, é por causa de um crime... Você conhece uma pessoa, ela morreu sem razão nenhuma, você sente ódio...
Uma pesquisadora pergunta ao mais jovem dos jovens do grupo como se poderia evitar a émeute; a resposta é surpreendente:
– Não se pode evitar. Quando ela vem, ela vem. Quando a morte vem – ela vem... Vem de repente, não pode ir embora de repente. Quando vem – bom, você não pode renegar a morte...
Protesto fundamental contra a morte violenta de um jovem, há na émeute algo difícil de verbalizar. Um deles acrescenta: "A gente quebra, só isso". No dia em que a émeute foi discutida no nosso grupo de intervenção, um silêncio profundo se instalou. Um dos pesquisadores efetuou um relato retrospectivo dos fatos, e um adolescente perguntou: "Eu só queria saber uma coisa: por que ele foi morto?". O pesquisador diz que a resposta viria com o julgamento do culpado. Uma menina pergunta quando seria o julgamento e começa a chorar (ela era afilhada da mãe do autor do crime). O pesquisador prossegue seu relato. Um dos jovens o interrompe: "Não tenho vontade de falar nisso". O pesquisador pede que ele explique por quê. Ele responde que não sabe, e acrescenta em seguida: "Se a gente falar nisso, é como se...". Ele não completa a frase. Depois retoma: "Não leve a mal, mas isso traz de volta lembranças ruins. A gente pode falar de outra coisa". Aos jornalistas, um deles havia declarado, por ocasião do protesto: "Se nós não tivéssemos nos mexido, ele [a vítima] teria sido enterrado como um imigrantezinho qualquer".
As hesitações que pontuaram nossa discussão são sugestivas da dimensão sagrada do levante. Na França, afirma Jean-Pierre Bernard, a ritualização da morte inscreve-se em uma tradição republicana e de esquerda. Quanto mais o ator se define como ator histórico, mais a celebração ritualizada da morte faz parte do seu processo de estruturação. "A morte comunista é [...] um problema coletivo e comunitário. Ela revela ou precipita o engajamento e a adesão a uma ideologia, a um conjunto de práticas. Ela serve de referência, de exemplo e de marca para o futuro" (Bernard, 1986, p. 42). Essa celebração da morte como elemento constitutivo da memória e do ator coletivo efetua-se freqüentemente pela via do conflito. A esse respeito Madeleine Rebérioux relembra: "Foram necessários quinze anos para que o muro dos confederados8 emergisse como referência privilegiada das mortes da Comuna (de Paris)". Essa memória organiza-se com a "República", e faz parte de um processo que termina por integrá-la, progressivamente, à memória nacional (cf. Rebérioux, 1984, p. 620).
As mortes que hoje se situam no epicentro dos levantes urbanos ainda permanecem em parte estranhas à consciência nacional francesa. Elas são principalmente um problema da juventude imigrante das periferias e dos que com ela convivem mais diretamente. E, no entanto, essas mortes não são menos ritualizadas.
No caso estudado, um educador conta que, depois da onda de violências, os jovens primeiro quiseram ver o amigo na morgue, antes que o caixão fosse lacrado:
[...] eles pediram que nós os acompanhássemos porque estavam com muito medo, eu acho. Pudemos ver Paul, beijá-lo, nos despedir dele... A pessoa está deitada, coberta com um lençol branco, só o rosto aparecendo. Havia a família, muito pouca gente da família. Eles eram muito isolados em relação à sua própria comunidade.
Os amigos encarregaram-se da preparação do enterro. Houve uma reunião, da qual participaram vários funcionários da prefeitura. Era um domingo e os jovens diziam: "Eles vieram, mesmo num domingo...". Nosso interlocutor prossegue:
No dia do enterro, nós os acompanhamos. Havia a família com eles. E justo aqueles que pareciam prestes a cometer as piores violências, a embarcar nos piores delírios, justo esses mantiveram a mais perfeita calma. Eles não queriam a polícia, a polícia estava lá. Eles não queriam os jornalistas, os jornalistas estavam lá. Mas eles respeitaram o contrato9.
Outra testemunha confirma essa apropriação completa pelos jovens da morte do amigo, vivida por eles sem mediação, como morte deles próprios:
[...] havia muito poucos adultos. Os meninos baixaram sozinhos o caixão e cada um deles jogou um pouco de terra por cima. Nunca antes eu havia visto uma coisa assim. Um a um, eles se alternaram, com uma picareta e uma pá para cobrir a fossa. Tive a impressão que era uma coisa muito forte, esse vínculo. Estavam enterrando um deles. Foi insuportável para mim, como ser humano, ver aquilo.
O luto foi tanto mais difícil na medida em que aquela morte trazia a marca da ilegitimidade dos envolvidos e do seu círculo próximo. As reações hostis foram numerosas no âmbito do colégio que a maioria deles freqüentava. Durante quinze dias, vários alunos estiveram ausentes das classes, o que foi mal aceito por alguns professores, e a equipe pedagógica se dividiu. Embora o morto fosse um antigo aluno do colégio, nenhum professor assistiu ao enterro.
Muita gente ficou na defensiva. E, sobretudo, o problema foi mal resolvido aqui. O diretor autorizou certas discussões. E os professores não entenderam isso. Era a negação completa do acontecido – e não se tratava de um acontecimento qualquer. Tratava-se do luto pela morte de um deles. Para nós, isso era muito importante. Quando se perde um ser amado, tem-se o direito de chorar por ele, tem-se o direito também de viver o luto. Direito de refazer a memória. Eu não queria que eles ficassem na rua, com todos os riscos de que a situação degenerasse. Era como uma espécie de acerto de contas extremamente violento. Tudo isso foi denunciado, inclusive no nível ministerial (Assistente social).
Quando eles foram reunidos no nosso grupo de pesquisa, um ano depois, o momento da verbalização daquela experiência ainda não havia chegado.
A lógica da depredação
Se há na émeute uma lógica de autolimitação voluntária, os atos de depredação promovidos pelos casseurs, ao contrário, visam a amplificar o protesto mobilizando meios muito mais consistentes: destruição de prédios públicos e equipamentos esportivos, como em Vaulx-en-Velin e Bron (periferia de Lyon) em abril de 1994, quando o ginásio foi arrombado e incendiado graças ao uso de "carros-tanque"10. Nesse contexto, não se observavam atos de pilhagem. A violência era expressiva, como a das émeutes, e não instrumental. Isso sugere a presença de casseurs políticos cuja perspectiva seria protestar contra políticas públicas que, segundo eles, pretendiam anestesiar os males que afetam as populações dos bairros populares, sem permitir mudanças efetivas em suas condições de vida.
Por outro lado, os casseurs não se definem por uma base territorial própria, mas pela mobilidade e pela variedade das lógicas que informam seu engajamento na violência. Um estudo realizado em 1990 a partir da análise de um universo de 46 jovens – 23 maiores e 23 menores, detidos por ocasião de uma manifestação de estudantes secundaristas em 12 de novembro – sugere que, do ponto de vista da idade, da nacionalidade e do domicílio, eles corresponderiam ao perfil médio dos estudantes secundaristas, com uma propensão maior ao fracasso escolar. O estudo distingue também, nesse conjunto, um quarto de casseurs premeditados e uma ampla maioria de "ocasionais", que se lançam nas depredações a partir do momento em que elas começam a acontecer (cf. CNV, 1990). Os primeiros são designados também casseurs profissionais: acreditam no emprego sistemático da violência para implodir o que chamam de "política do esparadrapo". Não se trata, como no caso da émeute, de uma estratégia que solicita uma abertura do espaço de negociações; trata-se, ao contrário, de tornar visíveis os limites do espaço institucional. São extremamente minoritários – provavelmente mais ainda do que no universo analisado pelo relatório do CNV: vinte em 2000, segundo a estimativa de um deles, que tive a oportunidade de entrevistar. Mas dispõem de uma capacidade considerável de ampliar o perímetro da violência.
O tratamento jornalístico da émeute
O debate em torno da responsabilidade das imprensas escrita e televisiva na qualidade de possíveis incitadoras das violências urbanas tem sido quase tão importante, de alguns anos para cá, quanto o debate sobre a violência propriamente dita. Essa discussão intensificou-se a partir de 1998, depois que um canal regional de televisão filmou diretamente grupos de jovens de um bairro de Strasburgo queimando carros na noite de Ano Novo. Até ali, as imagens de carros queimados de que se dispunha eram as do dia seguinte, as das carcaças calcinadas com grupos de curiosos em volta, num ambiente de destruição. Na noite de Ano Novo de 1997, pela primeira vez uma equipe de jornalistas, acompanhando a freqüência de rádio do corpo de bombeiros, como há muito se faz no Brasil, pôde filmar ao vivo os incêndios. As reações da opinião pública foram tanto mais virulentas quanto se pretendia que essas imagens, divulgadas por todas as emissoras de televisão, teriam contribuído para intensificar a violência.
Foi nesse contexto que Eric Macé e eu lançamos uma pesquisa nacional com cerca de cinqüenta jornalistas de televisão e imprensa escrita sobre o tratamento da violência urbana pela mídia (cf. Peralva e Macé, 2002)11. Nossa primeira constatação foi de que, embora duramente acusados de falta de ética, os jornalistas não se preocupavam menos com as conseqüências das notícias que divulgavam do que o resto da população. Pudemos observar, nas redações, um debate ético sobre a questão, pelo menos tão importante quanto o que estava acontecendo fora delas. Muitos jornalistas preferiam, em certos momentos, não filmar ou não divulgar certas notícias para não correrem o risco de provocar incidentes indesejáveis. E se práticas antiéticas existiam, isso estava longe de ser um fenômeno generalizado. A idéia, bastante presente nos debates, de que as imagens violentas suscitariam reações de imitação e, portanto, novas violências, parecia-nos, por outro lado, pouco consistente com o resultado de pesquisas que mostravam que a "recepção" pelo público das mensagens veiculadas pela mídia era social e culturalmente situada. Em outras palavras: não existe imitação pura, mas reinterpretação, individual e/ou coletiva, das representações da violência (na ficção ou na informação) por categorias da população mais ou menos sensíveis ao tipo de mensagem divulgado. Era, portanto, da relação entre a mensagem e os diversos tipos de receptor que a violência podia (ou não) decorrer, e tudo parecia indicar que a mídia ocupava uma posição subalterna nisso. Ao mesmo tempo, a relação mídia/violência, empiricamente observável, precisava ser explicada.
Nossas constatações sobre as condições de produção da notícia levaram-nos a atribuir grande importância à análise do debate público em torno da violência. Isso porque, embora os jornalistas fossem atores-chave desse debate, a eles cabendo a tarefa de fazer circular o conjunto de idéias referentes aos problemas públicos, eles não eram os únicos elementos ativos no processo de produção da notícia, em grande parte determinada pela relação com as fontes. Ora, essas fontes, por seu turno, eram também elementos ativos do espaço público, engajados num debate público contraditório em defesa de pontos de vista e interesses particulares, embora capazes de produzir a ilusão de estarem submetendo ao debate apenas dados "objetivos" da realidade.
Em outros termos, abordamos o tratamento jornalístico da violência urbana na França como resultado não simplesmente da ação dos jornalistas, mas como um sistema em que os atores principais eram os jornalistas e suas fontes, todos tendo como referência de suas intervenções a "opinião pública". Esse deslocamento do ponto de vista da análise nos permitiu mostrar que, paralelamente aos profissionais da imprensa, outros atores sociais importantes contribuíam para uma formatação do debate público sobre a violência urbana segundo seus interesses próprios. Tal era o caso da polícia, ou dos sindicatos – de professores, de motoristas de transportes coletivos –, muitos dos quais se apoiavam na denúncia da violência para reivindicar melhorias em suas condições de trabalho ou maiores recursos para este ou aquele setor. Pudemos mostrar também que os jovens das periferias urbanas eram os que mais sofriam com a desigualdade das condições de acesso ao espaço público, de tal modo que a violência era para eles um recurso que permitia atrair a atenção da mídia, gerando condições de participação e de expressão pública. O momento das émeutes tinha também esse significado: por meio da violência tornava-se possível constituir um espaço de conflito e de debate; e, inclusive, quanto mais intensa a violência, maiores as chances de uma abertura de espaço. Evidentemente, nessa dinâmica, o lugar da televisão era fundamental.
Nossa análise distinguiu três regimes principais de tratamento jornalístico da violência: as situações de rotina, em que as estratégias de comunicação das fontes de informação – atores políticos ou sindicatos, por exemplo, conforme indicado acima – e a assimetria nas relações entre elas desempenham papel fundamental; as situações excepcionais, como no caso das émeutes, em que a dimensão imprevista do acontecimento desorganiza a rotina e reconfigura os quadros de interpretação do problema; e, por fim, o regime de amplificação, em que o jornalista participa diretamente da produção da violência, na medida em que cabe a ele a iniciativa da matéria que vai tratar do assunto. Este, por sinal, foi exatamente o caso da noite de Ano Novo de 1997 já referida. Uma reconstituição dos fatos efetuada pelo jornal Libération mostra que, em 15 de dezembro, uma autoridade da área de segurança de Strasburgo divulgou estatísticas relativas à queima de carros na cidade no período de fim de ano. Um despacho da agência France Press em 26 de dezembro alimentou as redações de jornais com a informação de que o número de incêndios estava crescendo. Isso bastou para que uma rede de televisão local tomasse a iniciativa de filmar ao vivo a queima de carros, confirmando o interesse público pelo problema e abrindo espaço para ampliá-lo. O caso da émeute é relativamente distinto desse exemplo, porque a iniciativa da notícia não é dos jornalistas – eles se limitam a cobrir um protesto violento que já está ocorrendo, no qual os jovens reagem à morte violenta de um deles.
Em dezembro de 1998, tivemos a oportunidade de examinar detalhadamente o modo como a imprensa escrita e a televisão lidavam com uma émeute. Nossa pesquisa sobre o tratamento jornalístico da violência estava em andamento quando um protesto de grandes proporções, com duração de uma semana, foi desencadeado em Toulouse. Um adolescente de 16 anos, que tentava furtar um carro, foi morto com um tiro disparado pela arma de um policial. Embora baleado, ele conseguiu fugir. De volta à delegacia, a equipe não declarou o incidente, nem o uso da arma (o policial mais tarde afirmou não ter percebido que seu revólver havia disparado). O adolescente em fuga escondeu-se debaixo de um carro poucas ruas adiante e esvaiu-se em sangue até o dia seguinte, quando o corpo foi encontrado por um transeunte.
O exame do tratamento jornalístico desse protesto mostrou-nos, primeiro, o conflito de interpretações que a situação revelava: entre os émeutiers e a opinião pública local e nacional sensível à morte brutal de um adolescente, preocupados em esclarecer a responsabilidade da polícia nesse incidente grave, e as autoridades locais e nacionais da área de segurança, bem como os sindicatos de policiais, preocupados em defender com unhas e dentes a imagem da polícia. Esse exame mostrou-nos também a ambivalência dos jornalistas: por um lado, sensíveis ao tema dos direitos humanos – do direito à vida – que a émeute trazia para a ordem do dia, a tal ponto que a crítica à instituição policial foi, de início, unânime entre eles, e isso independentemente da orientação política dos órgãos a que pertenciam; mas, por outro lado, sensíveis também à legitimidade inconteste das "instituições republicanas", sério obstáculo, portanto, ao exercício de qualquer crítica contra elas. A polícia terminou levando a melhor nesse conflito de interpretações: um incidente isolado (o tiro disparado contra um policial por um indivíduo sem nenhuma relação com o protesto) fez com que a morte do adolescente deixasse de interessar a imprensa, suscitando ao mesmo tempo uma reinterpretação da violência, agora não mais pela idéia de luta pelo direito à vida, mas por meio das categorias policiais do combate à delinqüência e ao crime.
Novembro de 2005
A crise de novembro de 2005 apresenta semelhanças formais com os incidentes que descrevemos até o momento. Na origem, uma émeute12: jovens descendentes de imigrantes desencadearam o protesto em reação contra a morte violenta de dois deles. Em seguida, a extensão do perímetro da violência graças à intervenção de casseurs. Pela primeira vez em 25 anos, no entanto, a violência afetou o território nacional no seu conjunto. Pela primeira vez, também, sindicatos, associações e partidos de esquerda mantiveram-se praticamente silenciosos. E a importância adquirida pela presença da imprensa internacional na cobertura dos acontecimentos não tem termo de comparação com qualquer outra situação do mesmo tipo.
Clichy-sous-Bois
Em 27 de outubro, a denúncia de furto de um automóvel levou a polícia a Clichy-sous-Bois (município da periferia nordeste de Paris, com 23 mil habitantes). Essa intervenção terminou redundando em um acidente grave: três adolescentes, para fugir do controle policial, pularam o muro de uma central elétrica – dois deles morreram imediatamente, eletrocutados, e o terceiro escapou com ferimentos graves. Naquela mesma noite, carros foram incendiados na cidade e verificaram-se também incidentes com a polícia e o corpo de bombeiros. No dia seguinte, os enfrentamentos prosseguiram, já incluindo a cidade vizinha de Montfermeil. Tiros foram disparados contra as brigadas do CRS13. No dia 30, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, anunciou que receberia as famílias dos adolescentes mortos, que no entanto se recusaram a encontrá-lo. O advogado que as representava solicitou abertura de inquérito para saber "por que jovens que nada tinham a temer sentiram-se tão ameaçados a ponto de penetrar em um local perigoso". Por várias noites consecutivas a violência prosseguiu em Clichy. Por algum tempo, a polícia não falou de levantes e sim de "incidentes localizados". Em meio a um novo conflito entre émeutiers e a polícia, a mesquita de Clichy foi atingida por uma bomba de gás lacrimogênio, contribuindo para radicalizar ainda mais a violência.
Os acontecimentos de Clichy-sous-Bois constituem o epicentro da crise de novembro e apresentam a mesma forma básica que já evocamos anteriormente: na origem, um protesto violento desencadeado em resposta à morte violenta de dois jovens, após uma intervenção malsucedida da polícia. No caso, coube principalmente a líderes religiosos muçulmanos a tarefa de apaziguar os ânimos, em lugar dos sindicatos e das associações que, nas ocorrências de émeutes, sempre se incumbiram de dar ao protesto um caráter pacífico, de manifestação pública. Em um artigo publicado no jornal Libération, os sociólogos Didier Lapeyronnie e Laurent Mucchielli notavam justamente que dessa vez os émeutiers estavam sozinhos14.
Importa observar, mais além da angústia que a morte violenta de um jovem suscita entre os membros de seu círculo próximo, o sentimento de injustiça que se associa a essa morte considerada inaceitável, sentimento estreitamente ligado à ação da polícia nos bairros populares. A idéia de "classe perigosa" retorna com toda a força, como muitos sociólogos vêm indicando há algum tempo a respeito desses conflitos, na medida em que aí se combinam o sentimento de opressão e a percepção da delinqüência, por parte daqueles que a praticam, como ato de resistência legítimo (cf. Hobsbawm, 1976). Tal sentimento de injustiça e o protesto que ele alimenta, a recusa em aceitar a banalização da morte, são inseparáveis de uma cultura política republicana que afirma a prioridade do direito à vida e dos direitos humanos em geral. Em outras palavras, desenha-se em torno da émeute, como já dissemos, um importante conflito de interpretações no que se refere à responsabilidade da polícia no incidente: de um lado, o Estado tenta evitar ao máximo que a polícia seja desacreditada; de outro, os jovens, por experiência, consideram a responsabilidade dos policiais um fato indubitável. Neste caso, como no de Toulouse, a mídia hesita entre as duas versões em confronto.
A primeira reação do ministério do Interior após a morte dos adolescentes foi declarar, com base apenas nas afirmações dos policiais, que eles não estavam sendo perseguidos quando se refugiaram na central elétrica. Diante da pressão das famílias e da ampliação da área dos conflitos, o primeiro-ministro veio a público para garantir que tudo seria feito para esclarecer as circunstâncias das mortes. A imprensa de início referiu-se simplesmente a uma "morte acidental", mas pouco a pouco começou a interessar-se pelos detalhes. Os primeiros resultados do inquérito administrativo permitiram constatar que um policial havia prevenido seus colegas, por rádio, quanto ao risco de morte que os adolescentes corriam. A mensagem foi captada por várias viaturas, mas nada foi feito para salvá-los, e os policiais diretamente envolvidos continuaram afirmando não ter visto nada. As declarações do terceiro adolescente, que escapou com ferimentos graves, confirmaram que os três haviam buscado refúgio no interior da central para escapar da polícia. Um inquérito judicial foi aberto para estabelecer a verdade dos fatos, que, como sempre nesses casos, deverá levar muito tempo para vir a público.
O sentimento de injustiça que a émeute traduz – e de impotência quanto à possibilidade de uma resposta institucional justa à violência sofrida – tem a ver com essa situação, que, por isso, não pode ser explicada apenas à luz de indicadores gerais relativos às condições de vida dos jovens pobres descendentes de imigrantes, quer sejam as desigualdades sociais ou as discriminações efetivamente sofridas por eles. O protesto revela a que ponto esses jovens estão imersos na cultura política francesa dos direitos humanos, que reprova a banalização da morte violenta e injusta. Nesse sentido, vale observar o quanto as émeutes francesas se diferenciam dos riots norte-americanos, que causam dezenas de mortes; na França, essa violência só produz perdas materiais. Ao mesmo tempo, a impermeabilidade à crítica que garante uma legitimidade inconteste às instituições republicanas – das quais faz parte a polícia – é vivida pelos émeutiers como algo intolerável, uma vez que os desqualifica e desqualifica seu protesto.
A ampliação do perímetro da violência
No dia 2 de novembro, a imprensa informou que as tensões, antes restritas à área próxima de Clichy-sous-Bois, se haviam estendido ao conjunto da região de Ile-de-France. A violência era medida dia após dia pelo número de carros queimados. Uma delegacia de polícia, uma concessionária de automóveis, um ginásio e um centro comercial foram apedrejados e incendiados. Uma garagem de ônibus ao sul de Paris queimou integralmente e ônibus de passageiros foram esvaziados em pleno dia e também incendiados.
Pouco a pouco os incidentes estenderam-se ao resto do país. No dia 8 de novembro, o primeiro-ministro Dominique de Villepin decidiu decretar o estado de urgência15. O toque de recolher foi instaurado em grandes cidades como Nice, Orléans, Le Havre, Amiens e Rouen. A violência diminuiu imediatamente. Alguns incidentes graves, no entanto, continuaram a ocorrer depois do estado de urgência, como o incêndio do teatro nacional de Louvrais, em Pontoise, periferia norte de Paris: um carro-tanque destruiu a porta envidraçada da entrada e terminou sua corrida contra uma pilastra do hall. No dia 13, a violência prosseguia no interior do país, notadamente com incidentes em pleno dia no centro de Lyon. No dia 16 de novembro a polícia anunciou que a situação havia se normalizado em toda a França. Segundo o Serviço de Informações (Renseignements Généraux), ao longo desses 21 dias passou-se progressivamente de pequenos atos de "guerrilha urbana", com os primeiros incidentes ligados à morte dos dois adolescentes em Clichy-sous-Bois, a uma "insurreição urbana" e um "movimento de revolta popular" (Le Monde, 7 de dezembro de 2005). Pela primeira vez em 25 anos esse tipo de protesto tinha essa duração e adquiria tal dimensão nacional.
O tratamento jornalístico do protesto
A novidade, nesse plano, foi o grande interesse manifestado pela imprensa internacional com relação ao que estava ocorrendo na França. A importância da cobertura televisiva em detrimento da imprensa escrita e radiofônica traduzia um movimento relativamente recente de reorganização de grandes plataformas de informação, como a BBC em Londres, ou a multiplicação do número de correspondentes permanentes no exterior de cadeias de televisão brasileiras, por exemplo. Essas tendências, bastante visíveis naquele momento, pareciam apontar para um novo patamar na mundialização do debate público. A situação francesa mereceu destaque por um longo período em toda a imprensa escrita, televisiva e eletrônica européia, com as imagens de carros e ônibus queimados sendo passadas e repassadas, como ocorrera com as do 11 de setembro nos Estados Unidos. Da Suécia ao Qatar, diz o Le Monde de 10 de novembro, "numerosas autoridades políticas e religiosas pronunciaram-se a respeito das violências urbanas na França". No dia 14, em uma declaração pública, o presidente da República protestou contra a imagem do país veiculada pelos jornalistas estrangeiros e manifestou a intenção de organizar um encontro com os responsáveis das grandes cadeias de televisão, que, segundo ele, não estariam refletindo adequadamente a "realidade" da crise das periferias urbanas.
Esse debate público mundial, construído por meio dos pontos de vista da imprensa de vários países, implicou uma tradução da crise francesa nos termos dos diferentes debates nacionais: para os russos e Vladimir Putin, havia uma analogia clara com o terrorismo checheno e a necessidade de esmagá-lo; para a imprensa britânica, tratava-se da "crise do modelo de integração francês", concorrente do modelo britânico, posto que, contrariamente a este último, recusa-se a reconhecer a especificidade étnica e cultural das populações imigrantes.
A dimensão da crise
Os levantes urbanos de novembro de 2005 implodiram os limites espaciais e temporais dos protestos anteriores e revestiram a forma de um "repertório nacional da ação coletiva popular", conforme os termos de Tilly (1986). A natureza da ação não havia mudado, mas sim a escala do protesto. Até então as émeutes, embora ocorressem em diversos momentos em diferentes pontos do território nacional, apresentavam-se como ações localizadas e fragmentárias. Ainda que as condições para a mudança de escala estivessem dadas, em função da generalização progressiva dessa experiência desde 1990, até então ela não ocorrera. A presença da imprensa internacional criou, sem dúvida, um efeito de ampliação do protesto, uma vez que multiplicou o número de cenas públicas oferecidas aos manifestantes. Mas isso não explica tudo.
Mesmo em pequena escala, as émeutes sempre foram um "fato social total", impossível de ser compreendido apenas à luz dos indicadores relativos à pobreza e às múltiplas desigualdades que afetam os bairros populares. Esse psicodrama coletivo sempre implicou, simultaneamente, a dinâmica das instituições, as condições do espaço e do debate público e a vida política do país em geral. Os imigrantes e as periferias urbanas, onde eles vivem, cristalizam há muito tempo as inquietações da população francesa diante do desemprego, da mundialização, do terrorismo ou, simplesmente, da mudança. O debate sobre a violência urbana foi central nas eleições presidenciais de 2002: ele levou a extrema-direita ao segundo turno, excluindo o candidato da esquerda, e transformou Jacques Chirac, de simples candidato da direita republicana, com pouco mais de 18% dos sufrágios no primeiro turno, em candidato de união nacional aclamado por 80% dos eleitores no segundo turno.
A "crise das banlieues" de novembro de 2005 é inseparável de uma conjuntura política marcada pela divisão no seio da atual maioria parlamentar de direita. E, contrariamente às émeutes anteriores analisadas por mim, caracterizadas – não obstante os limites próprios dessa forma de ação coletiva – por certo grau de autonomia, a violência de novembro de 2005 é marcada por uma forte dose de heteronomia e reflete as tensões observáveis na esfera política.
Pivô da crise, Nicolas Sarkozy, presidente da UMP, o partido da direita republicana, é o candidato provável à eleição presidencial de 2007, contra a vontade de Jacques Chirac (de quem se tornou inimigo incontornável em 1995, quando apoiou outro candidato da direita à presidência). A pretensão de Sarkozy à sucessão de Chirac manifestou-se desde o início do atual mandato, quando ele passou a ocupar o cargo de ministro do Interior (equivalente ao de ministro da Justiça no Brasil) com um discurso agressivo em relação à juventude imigrante das periferias urbanas, destinado a seduzir o eleitorado de extrema-direita. Após um período fora do ministério para se dedicar à presidência da UMP, ele retornou em junho de 2005, a pedido de Chirac – num contexto marcado pela rivalidade com o primeiro-ministro, Dominique de Villepin, também potencial candidato às eleições presidenciais de 200716. Utilizando uma estratégia eleitoral marcada por forte presença na mídia, Sarkozy procurou apresentar-se desde o início como representante da ordem e da lei (utilizando uma linguagem crua para se referir aos "delinqüentes"), e, ao mesmo tempo, como porta-voz de um reformismo liberal. Em junho de 2005, por exemplo, poucos dias depois de ter retornado ao Ministério do Interior, uma bala perdida num bairro popular da periferia norte de Paris provocou a morte de uma criança. Esse fato envolvia a responsabilidade do Ministério, mas o ministro contornou habilmente as críticas com um "factóide": declarou que iria promover uma "lavagem total" no bairro ("nettoyer la cité au Kärcher"). O escândalo suscitado por essa declaração, que feriu as suscetibilidades dos moradores e foi considerada de conotação racista, trouxe para o segundo plano qualquer discussão em torno da morte da criança. As críticas, que se prolongaram por vários meses, concentraram-se na personalidade do ministro, bem mais do que na incompetência do Ministério por ele dirigido em garantir a segurança dos cidadãos.
A morte por eletrocussão dos dois adolescentes de Clichy-sous-Bois ocorreu dois dias depois de Nicolas Sarkozy ter produzido mais um desses "factóides". Em visita "surpresa" à delegacia de polícia de outro bairro popular da periferia norte de Paris, acompanhado de jornalistas e câmeras de televisão, Sarkozy referiu-se aos jovens (delinqüentes) do bairro como "gangrena" e "ralé" – la racaille. A visita, efetuada às 21 horas – horário em que a delegacia estava habitualmente fechada (ela foi aberta especialmente nessa noite) –, criou uma "cena" para o ministro e uma situação de conflito aberto com os moradores do bairro, que acorreram em massa para ver o que estava acontecendo. O prefeito da cidade (Argenteuil), do mesmo partido de Sarkozy, declarou mais tarde que não havia sido prevenido da visita e lamentou que todo o trabalho realizado localmente, na perspectiva de responder aos problemas do bairro, pudesse ter sido liquidado por uma intervenção tão intempestiva.
A série de violências desencadeadas a partir das mortes de Clichy-sous-Bois está diretamente ligada a essas ações do ministro do Interior, que imprimiram ao protesto uma lógica diretamente política: para muitos jovens descendentes de imigrantes em toda a França, tratava-se de obrigá-lo a pedir demissão (o Le Monde de 4 de novembro, por exemplo, traz as declarações de jovens de Aulnay-sous-Bois, uma semana depois do início das manifestações: "Isso é apenas o começo. Vamos continuar até que Sarkozy peça demissão". A televisão registrou várias outras declarações do mesmo tipo em toda a França).
Crise das periferias urbanas, crise da democracia
Por trás dos levantes urbanos que vêm ocorrendo na França há 25 anos, não está apenas uma crise social; está também uma crise de representação, na medida em que os habitantes dos bairros populares, jovens ou não, excluídos do mundo do trabalho, não têm acesso à esfera política. Desse ponto de vista, é importante notar que, a cada levante, a dinâmica da violência tende a desembocar em um esforço de organização coletiva, mas o fôlego nunca é suficiente para que isso se mantenha – e, mesmo quando é esse o caso, o âmbito da ação é excessivamente limitado para que seus efeitos sejam sentidos num plano mais geral. De um lado, não há vontade política de dar voz e meios de atuação a essas populações – o voto dos estrangeiros no plano municipal, que fazia parte do programa de campanha do primeiro governo de François Mitterrand, jamais foi adotado pela esquerda. Por outro lado, a instância organizativa que lhes permitiria existir coletivamente, a associação, é concebida na França como uma estrutura pára-estatal, subvencionada com fundos públicos e estreitamente controlada (cf. Barthelemy, 2000). A tentativa de eleger descendentes de imigrantes no âmbito municipal a partir das clássicas listas dos partidos de esquerda e de direita marcou a atividade associativa dos jovens descendentes de imigrantes nos anos de 1980, mas os resultados foram magros; e sobretudo o élan associativo observado nessa década degringolou nos anos de 1990, redundando em conflitos de grande porte e na liquidação judiciária de algumas iniciativas, como no caso da associação nacional France Plus (cf. Peralva, 2002).
Nesse sentido, o debate público sobre as periferias urbanas define-se por uma assimetria estrutural. Os bairros populares são construídos como "problemas", objetos do olhar externo, dispondo quase que exclusivamente da violência como recurso de ação. Mas a heteronomia que define essa parcela da população faz dela, ao mesmo tempo, o foco catalisador de uma crise mais geral da democracia francesa. Tal crise requer pelo menos três níveis de análise: 1) ela se traduz em um esgarçamento visível do tecido social, com uma parte da população integrada à dinâmica econômica e outra excluída ou destinada ao trabalho intermitente e precário, privada de iniciativa e reduzida aos benefícios da assistência pública; 2) ela se traduz em uma interpelação radical das bases propriamente nacionais de uma democracia que, desde o fim do século XIX, constituiu-se como espaço principal de expressão dos conflitos sociais e da negociação política. No quadro de um mercado mundializado, a questão dos conflitos do trabalho está colocada em novos termos; por outro lado, as migrações transnacionais e os fluxos de produtos lícitos e ilícitos, que ignoram as fronteiras dos Estados, posicionam estes últimos diante de problemas sem solução imediata, debilitando-os perante uma opinião pública, para quem a "ordem" se tornou uma reivindicação fundamental17; 3) ela se traduz em uma interpelação das bases sociais da representação, problema que transcende amplamente os limites das periferias urbanas e que vem afetando de forma duradoura os partidos da direita e da esquerda clássicas, abrindo um espaço significativo para a extrema-direita e para a extrema-esquerda, transformando o voto em instrumento de rejeição da mudança (como em maio de 2005, com o "não" resultante do referendo sobre o Tratado de Constituição Européia), muito mais do que de defesa de projetos alternativos (cf. Perrineau, 2003)18.
Essas três questões – social, nacional e política – estão, é claro, estreitamente interligadas, mas a crise de representação teve uma importância dinâmica fundamental no episódio de novembro de 2005. A relativa indefinição da base atual dos partidos restaurou o carisma e o populismo como princípios de elegibilidade.
Contrariamente ao que se poderia supor, os institutos de pesquisa indicaram que Nicolas Sarkozy não se havia enfraquecido pela violência de novembro. Sua estratégia eleitoral agressiva parecia, portanto, estar dando certo. Concorrente direto de seu ministro do Interior à Presidência da República, o primeiro-ministro Dominique de Villepin decidiu então adotar uma estratégia semelhante, propondo de si mesmo uma imagem de dinamismo e capacidade de induzir a mudança. Para isso fez votar em fevereiro, como medida de urgência, a lei da "igualdade das oportunidades", que, entre outros dispositivos, incluía um novo contrato de trabalho destinado aos jovens com menos de 26 anos. Durante um período de dois anos, essa medida autorizaria os patrões a despedirem seus jovens empregados sem aviso prévio e sem nenhuma justificativa. A resistência dos estudantes universitários e secundaristas paralisou por dois meses (um trimestre letivo) os estabelecimentos de ensino. Com a ajuda das grandes centrais sindicais, eles finalmente obtiveram a retirada do dispositivo. Menos de três meses depois, a crise do "Contrato do Primeiro Emprego" foi a réplica em outras bases da crise de novembro de 2005.
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