O paradigma da ideologia texto de Slavoj Zizek.
Polarização entre fundamentalismo e democracia aponta para a falta de uma linguagem que permita questionar a ausência de liberdade nas sociedades contemporâneas http://www.youtube.com/watch?v=d16kMXUXPOE&mode=related&search=
De acordo com a mitologia grega antiga, Europa era uma princesa fenícia que foi raptada e violentada por Zeus, que assumira a forma de um touro -não surpreende que o nome dela signifique "a melancólica". E, na realidade, não é isso mesmo a Europa? A Europa, como noção ideológica, não nasceu de dois sequestros de uma pérola oriental por bárbaros do Ocidente? Primeiro os romanos sequestraram e vulgarizaram o pensamento grego e, depois, no início da Idade Média, o Ocidente bárbaro sequestrou e vulgarizou o cristianismo. E não é verdade que algo semelhante está acontecendo hoje, pela terceira vez? A recente "guerra ao terror" não é a abominável conclusão, o "ponto no i" do longo e gradativo processo de colonização ideológica, política e econômica da Europa pelos Estados Unidos? Não foi a Europa mais uma vez sequestrada pelo Ocidente, por uma civilização americana que hoje dita os padrões globais e trata a Europa como sua província "de facto"? Depois dos ataques contra o World Trade Center, a grande história na mídia era a ascensão da "Schadenfreude" [prazer sentido com as desgraças alheias" antiamericana e a ausência, entre a "intelligentsia" européia, de solidariedade humana simples com o sofrimento americano. Mas a história verdadeira que deveria ser contada é exatamente a oposta: a ausência total de iniciativa política autônoma européia. Na esteira de 11 de setembro, a Europa -composta pelos Estados-chave da União Européia- enveredou pelo caminho dos "compromissos incondicionais", cedendo às pressões americanas. A guerra no Afeganistão, os planos para um ataque ao Iraque, a nova explosão de violência na Palestina: a cada vez ouviram-se vozes abafadas de discordância na Europa, dizendo respeito a pontos específicos, a chamados por uma abordagem mais equilibrada. Mas não houve resistência formal nem qualquer imposição de uma percepção global diferente da crise. Nenhuma instituição européia se arriscou a anunciar um distanciamento amigável, mas claro, da posição americana. Não surpreende, portanto, que essas vozes de protesto tenham se calado -elas literalmente não tinham importância ou consequência, não passavam de gestos vazios cuja função era fazer com que nós, europeus, pudéssemos dizer a nós mesmos "sim, nós protestamos, cumprimos nosso dever!", ao mesmo tempo em que, em silêncio, ratificávamos o fato consumado da política americana. Esse fiasco chegou ao auge com a invasão israelense da Cisjordânia, onde a própria situação pede uma nova iniciativa política, a única coisa que seria capaz de romper o impasse atual. O aspecto mais frustrante dessa crise é que nada pode ser feito, embora todos tenham consciência de qual, basicamente, seria a solução (dois Estados, Israel e Palestina; o esvaziamento dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, em troca do reconhecimento pleno de Israel e de sua segurança). A Europa é um lugar ideal de onde lançar tal iniciativa -sob a condição de que ela ganhe a força necessária para distanciar-se claramente da hegemonia americana. Após o final da Guerra Fria, não existem obstáculos externos sérios a tal gesto; deveríamos simplesmente buscar a coragem necessária e fazê-lo. Consequentemente, a verdadeira catástrofe político-ideológica de 11 de setembro foi a européia: o resultado de 11 de setembro é o fortalecimento inédito da hegemonia americana, sob todos seus aspectos. A Europa sucumbiu diante de uma espécie de chantagem ideológico-política dos EUA: "Não são mais escolhas econômicas ou políticas que estão em jogo agora, mas nossa própria sobrevivência -e, na guerra contra o terrorismo, vocês ou estão conosco ou contra nós". É aqui, nesse ponto em que a referência à simples sobrevivência entra como a legitimação última, que nos vemos lidando com a ideologia política em toda sua pureza.
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Tinta vermelhaNuma piada antiga contada sobre a já extinta República Democrática da Alemanha, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria. Ciente de que todas suas cartas serão lidas por censores, ele diz a seus amigos: "Vamos combinar um código. Se vocês receberem cartas minhas escritas em azul, o que elas dizem é verdade; se estiver escrito em vermelho, é mentira".Depois de um mês, seus amigos recebem a primeira carta escrita em tinta azul: "Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias de mercadorias, a comida é farta, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais e não faltam garotas bonitas dispostas a namorar. A única coisa que não se consegue encontrar é tinta vermelha".Não é isso o próprio paradigma de como funciona a ideologia, não apenas sob condições de censura "totalitária", mas também, e possivelmente ainda mais, nas condições mais refinadas da censura liberal? Nós nos "sentimos livres" porque nos falta a própria linguagem na qual poderíamos formular nossa ausência de liberdade. Essa ausência de tinta vermelha significa, hoje, que todos os termos principais que usamos para designar o conflito atual -"guerra ao terror", "direitos humanos" etc.- são termos falsos que, em lugar de nos ajudar a refletir sobre a situação, confundem a percepção que temos dela. Ou seja, nossas próprias "liberdades" servem para mascarar e sustentar nossa ausência mais profunda de liberdade.
E o mesmo não se aplica à escolha entre "democracia ou fundamentalismo"? Não é fato que, dentro dos termos em que essa escolha nos é apresentada, simplesmente não é possível optar pelo "fundamentalismo"? O que é problemático na maneira como a ideologia dominante nos impõe essa escolha não é o "fundamentalismo" em si, mas sim o conteúdo específico oculto sob o guarda-chuva da "democracia": como se a única alternativa possível ao "fundamentalismo" fosse o sistema de democracia liberal parlamentar, em conjunto com o capitalismo global de hoje.A mensagem básica da mídia é a seguinte: os joguinhos fáceis já terminaram, e, agora, todos devem tomar partido (contra ou a favor do terrorismo). E, como ninguém é abertamente a favor dele, isso significa que a própria dúvida em si, a simples adoção de uma atitude de questionamento, é denunciada como apoio disfarçado ao terrorismo. É exatamente essa a tentação a que se precisa resistir: é precisamente nesses momentos de aparente clareza de opções que a confusão é total. A escolha que nos está sendo proposta não é a verdadeira. Hoje, mais do que nunca, é preciso ter força para dar um passo para trás e refletir sobre os antecedentes da situação.Em nome da "guerra contra o terror", determinada visão positiva das relações políticas globais é silenciosamente imposta aos europeus. E, se quisermos que o legado democrático da Europa sobreviva, devemos interpretar o fiasco de 11 de setembro como o último aviso de que o tempo está se esgotando, que a Europa precisa avançar rapidamente para afirmar-se como força ideológica, política e econômica autônoma, que possui suas prioridades próprias. Não é a resistência do Terceiro Mundo contra o imperialismo americano. A Europa unificada é o único contraponto viável aos EUA e à China, como as duas potências globais. Logo, a esquerda deve apropriar-se, sem constrangimentos, do slogan da Europa unificada como contraponto ao globalismo americanizado.
De acordo com a mitologia grega antiga, Europa era uma princesa fenícia que foi raptada e violentada por Zeus, que assumira a forma de um touro -não surpreende que o nome dela signifique "a melancólica". E, na realidade, não é isso mesmo a Europa? A Europa, como noção ideológica, não nasceu de dois sequestros de uma pérola oriental por bárbaros do Ocidente? Primeiro os romanos sequestraram e vulgarizaram o pensamento grego e, depois, no início da Idade Média, o Ocidente bárbaro sequestrou e vulgarizou o cristianismo. E não é verdade que algo semelhante está acontecendo hoje, pela terceira vez? A recente "guerra ao terror" não é a abominável conclusão, o "ponto no i" do longo e gradativo processo de colonização ideológica, política e econômica da Europa pelos Estados Unidos? Não foi a Europa mais uma vez sequestrada pelo Ocidente, por uma civilização americana que hoje dita os padrões globais e trata a Europa como sua província "de facto"? Depois dos ataques contra o World Trade Center, a grande história na mídia era a ascensão da "Schadenfreude" [prazer sentido com as desgraças alheias" antiamericana e a ausência, entre a "intelligentsia" européia, de solidariedade humana simples com o sofrimento americano. Mas a história verdadeira que deveria ser contada é exatamente a oposta: a ausência total de iniciativa política autônoma européia. Na esteira de 11 de setembro, a Europa -composta pelos Estados-chave da União Européia- enveredou pelo caminho dos "compromissos incondicionais", cedendo às pressões americanas. A guerra no Afeganistão, os planos para um ataque ao Iraque, a nova explosão de violência na Palestina: a cada vez ouviram-se vozes abafadas de discordância na Europa, dizendo respeito a pontos específicos, a chamados por uma abordagem mais equilibrada. Mas não houve resistência formal nem qualquer imposição de uma percepção global diferente da crise. Nenhuma instituição européia se arriscou a anunciar um distanciamento amigável, mas claro, da posição americana. Não surpreende, portanto, que essas vozes de protesto tenham se calado -elas literalmente não tinham importância ou consequência, não passavam de gestos vazios cuja função era fazer com que nós, europeus, pudéssemos dizer a nós mesmos "sim, nós protestamos, cumprimos nosso dever!", ao mesmo tempo em que, em silêncio, ratificávamos o fato consumado da política americana. Esse fiasco chegou ao auge com a invasão israelense da Cisjordânia, onde a própria situação pede uma nova iniciativa política, a única coisa que seria capaz de romper o impasse atual. O aspecto mais frustrante dessa crise é que nada pode ser feito, embora todos tenham consciência de qual, basicamente, seria a solução (dois Estados, Israel e Palestina; o esvaziamento dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, em troca do reconhecimento pleno de Israel e de sua segurança). A Europa é um lugar ideal de onde lançar tal iniciativa -sob a condição de que ela ganhe a força necessária para distanciar-se claramente da hegemonia americana. Após o final da Guerra Fria, não existem obstáculos externos sérios a tal gesto; deveríamos simplesmente buscar a coragem necessária e fazê-lo. Consequentemente, a verdadeira catástrofe político-ideológica de 11 de setembro foi a européia: o resultado de 11 de setembro é o fortalecimento inédito da hegemonia americana, sob todos seus aspectos. A Europa sucumbiu diante de uma espécie de chantagem ideológico-política dos EUA: "Não são mais escolhas econômicas ou políticas que estão em jogo agora, mas nossa própria sobrevivência -e, na guerra contra o terrorismo, vocês ou estão conosco ou contra nós". É aqui, nesse ponto em que a referência à simples sobrevivência entra como a legitimação última, que nos vemos lidando com a ideologia política em toda sua pureza.
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Tinta vermelhaNuma piada antiga contada sobre a já extinta República Democrática da Alemanha, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria. Ciente de que todas suas cartas serão lidas por censores, ele diz a seus amigos: "Vamos combinar um código. Se vocês receberem cartas minhas escritas em azul, o que elas dizem é verdade; se estiver escrito em vermelho, é mentira".Depois de um mês, seus amigos recebem a primeira carta escrita em tinta azul: "Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias de mercadorias, a comida é farta, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais e não faltam garotas bonitas dispostas a namorar. A única coisa que não se consegue encontrar é tinta vermelha".Não é isso o próprio paradigma de como funciona a ideologia, não apenas sob condições de censura "totalitária", mas também, e possivelmente ainda mais, nas condições mais refinadas da censura liberal? Nós nos "sentimos livres" porque nos falta a própria linguagem na qual poderíamos formular nossa ausência de liberdade. Essa ausência de tinta vermelha significa, hoje, que todos os termos principais que usamos para designar o conflito atual -"guerra ao terror", "direitos humanos" etc.- são termos falsos que, em lugar de nos ajudar a refletir sobre a situação, confundem a percepção que temos dela. Ou seja, nossas próprias "liberdades" servem para mascarar e sustentar nossa ausência mais profunda de liberdade.
E o mesmo não se aplica à escolha entre "democracia ou fundamentalismo"? Não é fato que, dentro dos termos em que essa escolha nos é apresentada, simplesmente não é possível optar pelo "fundamentalismo"? O que é problemático na maneira como a ideologia dominante nos impõe essa escolha não é o "fundamentalismo" em si, mas sim o conteúdo específico oculto sob o guarda-chuva da "democracia": como se a única alternativa possível ao "fundamentalismo" fosse o sistema de democracia liberal parlamentar, em conjunto com o capitalismo global de hoje.A mensagem básica da mídia é a seguinte: os joguinhos fáceis já terminaram, e, agora, todos devem tomar partido (contra ou a favor do terrorismo). E, como ninguém é abertamente a favor dele, isso significa que a própria dúvida em si, a simples adoção de uma atitude de questionamento, é denunciada como apoio disfarçado ao terrorismo. É exatamente essa a tentação a que se precisa resistir: é precisamente nesses momentos de aparente clareza de opções que a confusão é total. A escolha que nos está sendo proposta não é a verdadeira. Hoje, mais do que nunca, é preciso ter força para dar um passo para trás e refletir sobre os antecedentes da situação.Em nome da "guerra contra o terror", determinada visão positiva das relações políticas globais é silenciosamente imposta aos europeus. E, se quisermos que o legado democrático da Europa sobreviva, devemos interpretar o fiasco de 11 de setembro como o último aviso de que o tempo está se esgotando, que a Europa precisa avançar rapidamente para afirmar-se como força ideológica, política e econômica autônoma, que possui suas prioridades próprias. Não é a resistência do Terceiro Mundo contra o imperialismo americano. A Europa unificada é o único contraponto viável aos EUA e à China, como as duas potências globais. Logo, a esquerda deve apropriar-se, sem constrangimentos, do slogan da Europa unificada como contraponto ao globalismo americanizado.
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