Profanações, de Giorgio Agamben 09/06/07 ele é discípulo de foucault.
São dez textos e digo apenas textos — palavra tão vaga — porque creio que não são bem "ensaios", quer dizer, são e não são. Por exemplo, como é que se pode classificar os "Seis minutos mais belos da história do cinema"? Não é fácil. Eu gosto deste tipo de escrita que escapa a uma definição, digo para mim mesma "é belo" ou "é verdadeiro" e isso basta-me. Mas nem sempre, desta vez não chega, há mais qualquer coisa nestes textos de Giorgio Agamben, algo que me impele à leitura, ou melhor, ao prazer da leitura e do pensamento, que quero definir. Talvez seja a forma imprevista como as ideias surgem e se desdobram, em jeito de devaneio? Ou ainda a agilidade e a frescura das palavras? A sua vocação de filólogo? A profusão de itálicos, pontos de interrogação, travessões, aspas, parêntesis, e vento? Chegando aqui, precipito-me e arrisco: o livro de Agamben é composto por dez prosas curtas (kleine Prosastücke), semelhantes a pequenos passeios que nos enchem de alegria, como se fossemos os dois por aí, a conversar (andar a pé para pensar com maior velocidade). Se calhar é uma perversão demasiado walseriana, mas leiam o início de "O Dia do Juízo final":
Que é que me fascina, que me deixa encantado nas fotografias que amo? Creio que se trata, simplesmente, do seguinte: a fotografia é para mim, de certo modo, o dia do juízo Universal, representa o mundo tal como aparece no último dia, no Dia da Cólera. Não é, certamente, uma questão de tema, não quero dizer que as fotografias que amo são aquelas que representam qualquer coisa de grave, de sério ou, até, de trágico. Não, a fotografia pode mostrar um rosto, um objecto, um acontecimento qualquer. É o caso de um fotógrafo como Dondero que, tal como Robert Capa, permaneceu sempre fiel ao jornalismo activo e praticou, frequentemente, aquilo a que se poderia chamar a "flânerie" (ou a "deriva") fotográfica: um passeio sem rumo, fotografando tudo o que aparece. Mas "aquilo que aparece" — o rosto de duas mulheres que passeiam de bicicleta na Escócia, a vitrina de uma loja em Paris — é convocado, é citado a comparecer no Dia do Juízo Final. (...)
Não é de pura conversa que se trata? Da mais interessante conversa? Outro exemplo, o início de "Magia e felicidade":
Benjamin disse uma vez que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é "os adultos serem mais fortes mas a sua incapacidade de magia". A afirmação, pronunciada sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mescalina, não deixa, por isso, de ser menos verdadeira. É provável, de facto, que a invencível tristeza em que se afundam, às vezes, as crianças, nasça exactamente deste conhecimento de não serem capazes de magia. Aquilo que conseguimos atingir através dos nossos méritos e do nosso esforço não pode, de facto, tornar-nos verdadeiramente felizes. Só a magia consegue fazê-lo. Isto não escapou ao génio infantil de Mozart que, numa carta a Bullinger, definiu com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade: "Viver bem e ser feliz são duas coisas diferentes e a segunda, se não houver uma magia qualquer, não me acontecerá certamente. Para isso deveria acontecer qualquer coisa de verdadeiramente fora do natural."As crianças, como as criaturas das fábulas, sabem perfeitamente que, para ser feliz, é necessário meter o génio na garrafa, ter em casa o burro caga-moedas ou a galinha dos ovos de ouro. E, em todas as circunstâncias, conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçar-se honestamente por atingir um objectivo. Magia significa exactamente que ninguém pode ser digno da felicidade que, como os antigos sabiam, a felicidade concedida ao homem é sempre hybris, é sempre presunção e excesso. Mas, se alguém conseguir levar a sorte ao engano, se a felicidade não depender unicamente daquilo que esse alguém é, mas, sim, de uma noz encantada ou de um abre-te sésamo, então, e só então, pode alguém dizer-se bem-aventurado(...)
E ainda (por razões que nem vale a pena explicar), o quarto parágrafo de "Os ajudantes":
Um tipo perfeito de ajudante é Pinóquio, a marioneta maravilhosa que Gepetto quer fabricar para, com ela, percorrer o mundo e ganhar, assim, "uma côdea de pão e um copo de vinho". Nem morto nem vivo, meio golem e meio robô, sempre pronto a cair em todas as tentações e a prometer, no instante seguinte, que "de hoje em diante serei bom", este eterno arquétipo da seriedade e da graça do inumano, na primeira versão do romance, antes de passar pela cabeça do autor acrescentar-lhe um fim edificante, a certa altura "estica os pés" e morre do modo mais vergonhoso, mas sem se transformar em rapaz. E ajudante é também Lucignolo, com aquela sua "pessoazita enxuta, seca e esgalgada, tal qual como, de noite, o pavio novo de uma candeia" que anuncia aos companheiros o país de Cocagne e que ri a bandeiras despregadas quando se apercebe de que lhe nasceram orelhas de burro. Da mesma massa são também os «assistentes» de Walser, irremediável e obstinadamente ocupados a colaborar numa obra absolutamente supérflua, para não dizer inqualificável. Quando estudam — e parece que estudam a sério — é para se tornarem um zero à esquerda. De facto, porque haveriam de ajudar aquele que o mundo considera sério se, na realidade, não existe senão loucura? Preferem passear. E se, nas suas deambulações encontrarem um cão ou outro ser vivo murmuram "não tenho nada para te dar, querido animal, dava-te de boa vontade qualquer coisa, se a tivesse". Acontece é que, no fim, só lhes resta deitar-se num campo, para chorarem, amargamente, a sua "estúpida existência de fedelhos".(Depois, quando chego a casa, arrumo o livro entre "O Passeio e outras histórias" de Robert Walser e "Kafka" de Walter Benjamin.)
Que é que me fascina, que me deixa encantado nas fotografias que amo? Creio que se trata, simplesmente, do seguinte: a fotografia é para mim, de certo modo, o dia do juízo Universal, representa o mundo tal como aparece no último dia, no Dia da Cólera. Não é, certamente, uma questão de tema, não quero dizer que as fotografias que amo são aquelas que representam qualquer coisa de grave, de sério ou, até, de trágico. Não, a fotografia pode mostrar um rosto, um objecto, um acontecimento qualquer. É o caso de um fotógrafo como Dondero que, tal como Robert Capa, permaneceu sempre fiel ao jornalismo activo e praticou, frequentemente, aquilo a que se poderia chamar a "flânerie" (ou a "deriva") fotográfica: um passeio sem rumo, fotografando tudo o que aparece. Mas "aquilo que aparece" — o rosto de duas mulheres que passeiam de bicicleta na Escócia, a vitrina de uma loja em Paris — é convocado, é citado a comparecer no Dia do Juízo Final. (...)
Não é de pura conversa que se trata? Da mais interessante conversa? Outro exemplo, o início de "Magia e felicidade":
Benjamin disse uma vez que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é "os adultos serem mais fortes mas a sua incapacidade de magia". A afirmação, pronunciada sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mescalina, não deixa, por isso, de ser menos verdadeira. É provável, de facto, que a invencível tristeza em que se afundam, às vezes, as crianças, nasça exactamente deste conhecimento de não serem capazes de magia. Aquilo que conseguimos atingir através dos nossos méritos e do nosso esforço não pode, de facto, tornar-nos verdadeiramente felizes. Só a magia consegue fazê-lo. Isto não escapou ao génio infantil de Mozart que, numa carta a Bullinger, definiu com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade: "Viver bem e ser feliz são duas coisas diferentes e a segunda, se não houver uma magia qualquer, não me acontecerá certamente. Para isso deveria acontecer qualquer coisa de verdadeiramente fora do natural."As crianças, como as criaturas das fábulas, sabem perfeitamente que, para ser feliz, é necessário meter o génio na garrafa, ter em casa o burro caga-moedas ou a galinha dos ovos de ouro. E, em todas as circunstâncias, conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçar-se honestamente por atingir um objectivo. Magia significa exactamente que ninguém pode ser digno da felicidade que, como os antigos sabiam, a felicidade concedida ao homem é sempre hybris, é sempre presunção e excesso. Mas, se alguém conseguir levar a sorte ao engano, se a felicidade não depender unicamente daquilo que esse alguém é, mas, sim, de uma noz encantada ou de um abre-te sésamo, então, e só então, pode alguém dizer-se bem-aventurado(...)
E ainda (por razões que nem vale a pena explicar), o quarto parágrafo de "Os ajudantes":
Um tipo perfeito de ajudante é Pinóquio, a marioneta maravilhosa que Gepetto quer fabricar para, com ela, percorrer o mundo e ganhar, assim, "uma côdea de pão e um copo de vinho". Nem morto nem vivo, meio golem e meio robô, sempre pronto a cair em todas as tentações e a prometer, no instante seguinte, que "de hoje em diante serei bom", este eterno arquétipo da seriedade e da graça do inumano, na primeira versão do romance, antes de passar pela cabeça do autor acrescentar-lhe um fim edificante, a certa altura "estica os pés" e morre do modo mais vergonhoso, mas sem se transformar em rapaz. E ajudante é também Lucignolo, com aquela sua "pessoazita enxuta, seca e esgalgada, tal qual como, de noite, o pavio novo de uma candeia" que anuncia aos companheiros o país de Cocagne e que ri a bandeiras despregadas quando se apercebe de que lhe nasceram orelhas de burro. Da mesma massa são também os «assistentes» de Walser, irremediável e obstinadamente ocupados a colaborar numa obra absolutamente supérflua, para não dizer inqualificável. Quando estudam — e parece que estudam a sério — é para se tornarem um zero à esquerda. De facto, porque haveriam de ajudar aquele que o mundo considera sério se, na realidade, não existe senão loucura? Preferem passear. E se, nas suas deambulações encontrarem um cão ou outro ser vivo murmuram "não tenho nada para te dar, querido animal, dava-te de boa vontade qualquer coisa, se a tivesse". Acontece é que, no fim, só lhes resta deitar-se num campo, para chorarem, amargamente, a sua "estúpida existência de fedelhos".(Depois, quando chego a casa, arrumo o livro entre "O Passeio e outras histórias" de Robert Walser e "Kafka" de Walter Benjamin.)
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