entrevista Boris Cyrulnik 17/03/08

Por outro lado, e é a psicanalista Anna Freud que explica isso, é preciso atingir duas vezes para fazer um traumatismo: uma vez na realidade (é a provação, o sofrimento, a humilhação, a perda) e outra na representação do real e no discurso dos outros sobre a pessoa depois do acontecimento. De fato, é, muitas vezes, no discurso social que se deve procurar compreender o efeito devastador do trauma.A idéia que fazemos do que nos acontece depende muito do olhar dos outros. Se você tem desgosto, piedade, horror ao que me aconteceu, é o seu olhar que irá transformar minha provação em traumatismo. Penso nas mulheres violentadas ao dizer isso. Quase todas elas contam que não foi a compaixão que as ajudou a superar o problema, mas quando um homem lhes disse: "preciso de você". O fato de alguém ter novamente manifestado estima por elas foi o que as refez como mulheres.




Fazer nascer uma criança não basta, é preciso também colocá-la no mundo, cercá-la de circuitos sensoriais que lhe sirvam de tutores de desenvolvimento. Mesmo que uma criança seja sadia genética e neurologicamente, se ao seu redor não houver quem a toque, lhe fale, cuide de sua higiene, ou mesmo chame a sua atenção, seu desenvolvimento será gravemente alterado. A privação de contatos e de afeição pode chegar a gerar atrofias físicas e cerebrais. Em instituições onde as crianças órfãs são despersonalizadas, algumas meninas chegam a não desenvolver plenamente sua feminilidade do ponto de vista hormonal.O que demonstra a que ponto a identidade sexual é também resultado de uma construção social e cultural...De fato, a diferença entre os sexos é de ordem hormonal, anatômica, mas também muito de ordem afetiva e cultural. Foi nossa civilização ocidental que colocou separadamente o biológico de um lado e o cultural do outro, mas, na realidade, eles estão em interação. Por essa razão, para se desenvolver bem, uma criança precisa tanto de glucídeos quanto de palavras.Quais são as possíveis reações de um indivíduo após um traumatismo e a que lógica elas obedecem?É preciso saber que um traumatismo é reparável, mas não reversível. Existe uma condição para a metamorfose. Se os recursos internos tiverem sido adquiridos e, ao nosso redor, depois do traumatismo, existirem recursos externos – tutores de superação –, temos mais chance de superar do que de permanecer feridos. Do contrário, tornamo-nos vulneráveis. O impacto dos traumatismos é portanto desigual, conforme a história das pessoas e o ambiente em que vivem.O ser humano possui estratégias de adaptação às perturbações pós-traumáticas que visam fazê-lo sofrer menos. Mas essa adaptação diante de um trauma, principalmente nas crianças, nem sempre é benéfica quando gera uma amputação de sua personalidade, a submissão, a renúncia em tornar-se si mesmo, a busca da indiferença intelectual, o esfriamento afetivo, a desconfiança ou a sedução do agressor.Algumas reações podem ser salvadoras, embora condenadas pela sociedade. Por exemplo, as crianças abandonadas que vivem nas ruas, especialmente na América Latina, só podem sobreviver tornando-se delinqüentes. Aquela que não sabe roubar, que não sabe se juntar a outros para agredir os adultos, possui uma esperança de vida de oito a dez dias. Nesse caso, a delinqüência tem o valor de uma adaptação a uma sociedade louca. Outra reação saudável em alguns casos após o trauma é a recusa de se lembrar. Acho que isso deve ser respeitado, como, por exemplo, no caso de um país que sofreu uma guerra civil e precisa ser reconstruído. É o caso do Camboja, onde os khmers vermelhos comem hoje à mesma mesa que os filhos daqueles que eles assassinaram. Como fazer para coexistir e seguir em frente depois de semelhantes dramas, se a prática da negação não for aplicada?

O senhor não acha importante para um país, a longo prazo, poder olhar de frente a sua história?
CDepende. Eu comparo a negação à reação dos feridos em acidentes rodoviários que, assim que encontram uma posição antálgica, recusam-se a se deixar remover quando se pretende ajudá-los. E têm razão, porque se os tocarmos em qualquer lugar corremos o risco de agravar seus ferimentos e fazê-los sofrer. Mas eles estão enganados também, porque não podemos salvá-los deixando-os na estrada. Acho que é preciso observar esse aspecto. O ideal seria poder abrir os dossiês imediatamente, evitando ao mesmo tempo a guerra civil, o que, infelizmente, raras vezes parece ser possível.Que atitude deveriam adotar os próximos, os profissionais e os poderes públicos para ajudar as pessoas traumatizadas, especialmente as crianças, a se recuperar e se desenvolver livremente?É fundamental salientar que, mesmo nos casos mais terríveis, como os das crianças que assistiram ao massacre de toda a família, existe sempre a esperança, porque os determinismos humanos, em sua maioria, não são definitivos. Mas, para isso, é indispensável não considerar a pessoa como condenada. Declarar que uma criança não tem recuperação e abandoná-la à própria sorte é o mesmo que criar as condições para o que se predisse. Não se deve reduzir a pessoa a seu trauma ou mantê-la na posição de vítima. Por outro lado, a possibilidade de esquecimento depende muito das reações emocionais do meio, para quem muitas vezes é extremamente difícil suportar a representação do choque sofrido por seu filho, cônjuge, pai ou mãe. Porém, não é mergulhando junto que se vai ajudar o filho, a mulher ou o homem feridos.

Para completar, seria necessário oferecer à vítima a oportunidade de se dar, de se tornar útil, para que possa reparar a auto-estima. Temos aí todo um trabalho cultural a fazer para não nos contentarmos em prestar assistência às pessoas. No caso de crianças em dificuldade, violentas, delinqüentes, trata-se de lhes dar responsabilidades, confiando-lhes tarefas remuneradas que as valorizem e que sejam úteis à comunidade, como foi feito na Grécia, na Suécia ou na Islândia, por exemplo.E os tutores de resiliação?Devemos dispor ao redor das crianças atingidas tutores que as ajudem a retomar o seu desenvolvimento. O importante é convidar essas crianças a fazer alguma coisa de seu trauma, sem esperar que o acaso da vida coloque em seu caminho um encontro, uma paixão que lhes permita recomeçar. Por essa razão, se lhes é excessivamente difícil expressar verbalmente o que lhes aconteceu, nós propomos às crianças outras formas de expressão, especialmente artísticas (desenho, criação de peças teatrais, poesia, etc.) que possibilitem o domínio da emoção e o distanciamento do trauma.Um grande número de crianças traumatizadas assumem atividades artísticas ou militantes a serviço de outras pessoas. Quase todas procuram compreender a razão do que lhes aconteceu e desenvolvem uma grande capacidade de intelectualização. O que, para elas, é um mecanismo de defesa precioso também tem o mérito de ser proveitoso a toda a sociedade. Essa formas de superação são culturais e benéficas para todos. Elas poderiam facilmente ser aplicadas em todas as culturas.

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