Regras universais 12/02/08 por Simon Blackburn.
A tradição idealista em filosofia enfatiza a inevitabilidade e importância crucial do papel que a configuração das nossas mentes desempenha na "construção" do mundo tal como o compreendemos. Isto é compatível com diferentes selecções das características que configuram a mente. Berkeley e a tradição empirista começam com a experiência sensorial, em particular a experiência das qualidades secundárias. É o facto de "residirem nos olhos de quem as vê" que se torna embaraçoso.Hoje, os factores culturais, especialmente linguísticos, são mais proeminentes. Preocupam-nos as variações culturais, e não tanto a subjectividade da experiência. Assim, muitos filósofos contemporâneos aplaudem uma linha de pensamento que encontramos em Wittgenstein: as chamadas considerações acerca de seguir regras. A Wittgenstein interessa o momento em que compreendemos um conceito que, ao ser explicado, nos permite tomar consciência de que "Agora é possível continuar" ou "Agora sei o que significa". Tanto quanto parece, isto acontece ao apreendermos a regra ou princípio que distingue a aplicação correcta de um termo de uma aplicação incorrecta desse termo. Trata-se de uma façanha notável. Algumas pessoas e animais são demasiado patetas para isso (vimos o modo como os cães são incapazes de compreender o que se lhes aponta, dado concentrarem toda a atenção no dedo que aponta). A maneira como realizamos esta façanha e o facto de o fazermos do mesmo modo com suficiente frequência pertencem à história natural. É isto que torna possível a comunicação e a partilha do conhecimento. Mas não é evidente, ou algo que possamos considerar garantido, que o façamos todos da mesma forma. Para isso seria necessário que as nossas mentes estivessem configuradas de modo idêntico. A questão é saber o que determina que as nossas mentes estejam configuradas de uma ou de outra maneira.Na realidade, este é o antigo tópico dos universais, sobre o qual os filósofos gregos reflectiram. A tarefa de compreender e descrever o que nos rodeia requer conceitos que se regem por regras da forma minimalista já descrita. Contudo, o que é a "realidade" subjacente a estas regras? Tradicionalmente, podemos distinguir a este respeito três posições principais:
REALISMO (por vezes chamado PLATONISMO). Estas regras têm uma existência objectiva. Determinam a correcta aplicação dos conceitos a casos do passado, presente e futuro, tal como a casos possíveis. Tomamos contacto com elas através de um misterioso acto de apreensão que não pode compreender-se facilmente em termos naturalistas.
CONCEPTUALISMO. Estas regras são criadas pela mente. O seu surgimento pode explicar-se pelas respostas quducação e pela cultura. Todos os conceitos dependem, deste modo, das nossas respostas: são artefactos produzidos pelas nossas disposições de resposta ao mundo que nos rodeia.
NOMINALISMO. Na realidade, não há quaisquer regras. Só há seres humanos com as suas disposições para aplicar as palavras ou se recusarem a fazê-lo. Não há realmente qualquer "correcção" ou "incorrecção", ainda que as pessoas que aplicam as palavras de um modo diferente da maioria vejam com frequência essas aplicações serem consideradas incorrectas.
Talvez um exemplo no qual cada uma das posições revele os seus pontos fortes possa ajudar. Considere-se um conceito tão duvidoso quanto o de "histeria" ou "neurastenia". Ao usar este conceito, um realista supõe que existe um fenómeno ao qual o conceito se aplica, algo que possui limites claros (algumas pessoas são histéricas e outras não). Ao empregar o termo, "talhamos a natureza nas suas articulações", para usar uma metáfora bastante desagradável. Um conceptualista rejeitará a metáfora. Poderá, no entanto, admitir o conceito de histeria e considerá-lo um princípio ou categoria capaz de traçar os limites de um género particular de condição médica ou psicológica. Permite classificar casos que nos parecem semelhantes e, no fim de contas, é isso que qualquer conceito faz. Finalmente, um nominalista dirá que esta palavra é tão boa como qualquer outra. As pessoas estão dispostas a usá-la, e isso é tudo o que merece ser considerado a respeito de quaisquer palavras.Cada uma destas posições pode ser defendida em versões ligeiramente diferentes e todas têm virtudes e fraquezas próprias. Para o realista ou platonista, as restantes abrem a porta ao idealismo: é a mente que constrói a realidade (se não existe realmente um fenómeno a que chamamos histeria, não há razão para descrever o mundo recorrendo a este conceito. Não é possível obter uma verdade objectiva se o fizermos). Para o platonismo e o conceptualismo, a posição nominalista é insustentável: ao assumi-la estaríamos a negar realidade não apenas ao significado das palavras, como à aplicação de conceitos e ao próprio pensamento. Tratar-se-ia de uma espécie de "eliminativismo", a negação do acto de pensar. Contudo, uma mente que se limite a proferir respostas verbais em consequência de certos estímulos, sem critérios de verdade e de correcção, não é equivalente a qualquer outra. Para o nominalista, o platonismo é demasiado incrível para ser aceite, enquanto o conceptualismo se limitaria a adoptar a retórica associada a seguir uma regra sem estar preparado para assumir a sua substância. Afinal, qual a diferença entre regras que são "constituídas" pelas nossas disposições ou respostas e regras que construímos à medida que reconhecemos a sua necessidade? E qual a diferença entre regras deste tipo e nenhuma regra? Deste ponto de vista, um conceptualista é apenas um nominalista demasiado cobarde para o admitir.Diz-se que os estudantes da Paris medieval chegavam a lutar nas ruas por causa dos universais. Está muita coisa em causa, uma vez que é a nossa capacidade para descrever o mundo de modo verdadeiro ou falso que está em questão, bem como a objectividade de qualquer opinião que tenhamos. Este é, possivelmente, o mais profundo e complexo problema da filosofia. Foi este problema que estruturou a reacção (realista) de Platão aos sofistas (nominalistas). O que hoje designamos por "pós-modernismo" é apenas uma versão do nominalismo, apresentado como a doutrina de que só há textos. Esta versão pitoresca de nominalismo, que encontramos nas modernas humanidades, paralisa qualquer apelo à razão e à verdade. A filosofia "analítica" está do lado de Platão contra esta nova sofística, procurando resistir ao seu canto de sereia.
Nos últimos anos, muitos filósofos consideraram plausível uma forma de realismo "naturalizado" que permite evitar os mistérios do platonismo. Segundo esta doutrina, há de facto propriedades que as coisas possuem, independentemente de as considerarmos desta ou daquela maneira. As nossas mentes constituíram-se em resposta a estas propriedades. A evolução e o sucesso obtido configuraram-nos de modo a permitir-nos responder aos géneros a que as coisas pertencem. Apesar de os conceptualistas terem razão quando sublinham a contingência inerente à configuração das nossas mentes, enganam-se porque esquecem que as mentes não existem no vácuo. As nossas mentes estão naturalmente configuradas pelas estruturas causais do mundo em que vivemos. Em circunstâncias favoráveis, todos evoluímos da mesma maneira porque, no contexto do mundo que habitamos, essa é a maneira correcta de evoluir. Este tipo de realismo pode, por exemplo, ser confrontado com o esboço da ciência das cores que efectuámos no capítulo 2. Tentar-se-ia mostrar que até a classificação das qualidades secundárias está longe de ser arbitrária. E, se as qualidades secundárias reconquistarem um estatuto "realista", as outras seguirão rapidamente o mesmo caminho.Esta é uma perspectiva confortável, que se conjuga facilmente com o "fundacionalismo naturalista" ou evolucionista que inspirou a defesa da harmonia entre as nossas mentes e o mundo que encontrámos no final do capítulo 1. Podemos efectivamente ter a esperança de que sobreviva ao oceano de ideias que tentei agitar neste capítulo. Mas isso exige que estejamos confiantes em que acabaram as nossas dificuldades e que a imagem absoluta ou científica do mundo encontrou o seu lugar próprio ao lado da sua imagem manifesta. Teríamos de pensar que Kant ou um sucessor seu nos guiou argutamente entre Filonous e Moore ou resolveu com sucesso o problema de Hume a respeito da "filosofia moderna" sem ceder demasiado ao idealismo. Nem toda a gente está convencida disto.
REALISMO (por vezes chamado PLATONISMO). Estas regras têm uma existência objectiva. Determinam a correcta aplicação dos conceitos a casos do passado, presente e futuro, tal como a casos possíveis. Tomamos contacto com elas através de um misterioso acto de apreensão que não pode compreender-se facilmente em termos naturalistas.
CONCEPTUALISMO. Estas regras são criadas pela mente. O seu surgimento pode explicar-se pelas respostas quducação e pela cultura. Todos os conceitos dependem, deste modo, das nossas respostas: são artefactos produzidos pelas nossas disposições de resposta ao mundo que nos rodeia.
NOMINALISMO. Na realidade, não há quaisquer regras. Só há seres humanos com as suas disposições para aplicar as palavras ou se recusarem a fazê-lo. Não há realmente qualquer "correcção" ou "incorrecção", ainda que as pessoas que aplicam as palavras de um modo diferente da maioria vejam com frequência essas aplicações serem consideradas incorrectas.
Talvez um exemplo no qual cada uma das posições revele os seus pontos fortes possa ajudar. Considere-se um conceito tão duvidoso quanto o de "histeria" ou "neurastenia". Ao usar este conceito, um realista supõe que existe um fenómeno ao qual o conceito se aplica, algo que possui limites claros (algumas pessoas são histéricas e outras não). Ao empregar o termo, "talhamos a natureza nas suas articulações", para usar uma metáfora bastante desagradável. Um conceptualista rejeitará a metáfora. Poderá, no entanto, admitir o conceito de histeria e considerá-lo um princípio ou categoria capaz de traçar os limites de um género particular de condição médica ou psicológica. Permite classificar casos que nos parecem semelhantes e, no fim de contas, é isso que qualquer conceito faz. Finalmente, um nominalista dirá que esta palavra é tão boa como qualquer outra. As pessoas estão dispostas a usá-la, e isso é tudo o que merece ser considerado a respeito de quaisquer palavras.Cada uma destas posições pode ser defendida em versões ligeiramente diferentes e todas têm virtudes e fraquezas próprias. Para o realista ou platonista, as restantes abrem a porta ao idealismo: é a mente que constrói a realidade (se não existe realmente um fenómeno a que chamamos histeria, não há razão para descrever o mundo recorrendo a este conceito. Não é possível obter uma verdade objectiva se o fizermos). Para o platonismo e o conceptualismo, a posição nominalista é insustentável: ao assumi-la estaríamos a negar realidade não apenas ao significado das palavras, como à aplicação de conceitos e ao próprio pensamento. Tratar-se-ia de uma espécie de "eliminativismo", a negação do acto de pensar. Contudo, uma mente que se limite a proferir respostas verbais em consequência de certos estímulos, sem critérios de verdade e de correcção, não é equivalente a qualquer outra. Para o nominalista, o platonismo é demasiado incrível para ser aceite, enquanto o conceptualismo se limitaria a adoptar a retórica associada a seguir uma regra sem estar preparado para assumir a sua substância. Afinal, qual a diferença entre regras que são "constituídas" pelas nossas disposições ou respostas e regras que construímos à medida que reconhecemos a sua necessidade? E qual a diferença entre regras deste tipo e nenhuma regra? Deste ponto de vista, um conceptualista é apenas um nominalista demasiado cobarde para o admitir.Diz-se que os estudantes da Paris medieval chegavam a lutar nas ruas por causa dos universais. Está muita coisa em causa, uma vez que é a nossa capacidade para descrever o mundo de modo verdadeiro ou falso que está em questão, bem como a objectividade de qualquer opinião que tenhamos. Este é, possivelmente, o mais profundo e complexo problema da filosofia. Foi este problema que estruturou a reacção (realista) de Platão aos sofistas (nominalistas). O que hoje designamos por "pós-modernismo" é apenas uma versão do nominalismo, apresentado como a doutrina de que só há textos. Esta versão pitoresca de nominalismo, que encontramos nas modernas humanidades, paralisa qualquer apelo à razão e à verdade. A filosofia "analítica" está do lado de Platão contra esta nova sofística, procurando resistir ao seu canto de sereia.
Nos últimos anos, muitos filósofos consideraram plausível uma forma de realismo "naturalizado" que permite evitar os mistérios do platonismo. Segundo esta doutrina, há de facto propriedades que as coisas possuem, independentemente de as considerarmos desta ou daquela maneira. As nossas mentes constituíram-se em resposta a estas propriedades. A evolução e o sucesso obtido configuraram-nos de modo a permitir-nos responder aos géneros a que as coisas pertencem. Apesar de os conceptualistas terem razão quando sublinham a contingência inerente à configuração das nossas mentes, enganam-se porque esquecem que as mentes não existem no vácuo. As nossas mentes estão naturalmente configuradas pelas estruturas causais do mundo em que vivemos. Em circunstâncias favoráveis, todos evoluímos da mesma maneira porque, no contexto do mundo que habitamos, essa é a maneira correcta de evoluir. Este tipo de realismo pode, por exemplo, ser confrontado com o esboço da ciência das cores que efectuámos no capítulo 2. Tentar-se-ia mostrar que até a classificação das qualidades secundárias está longe de ser arbitrária. E, se as qualidades secundárias reconquistarem um estatuto "realista", as outras seguirão rapidamente o mesmo caminho.Esta é uma perspectiva confortável, que se conjuga facilmente com o "fundacionalismo naturalista" ou evolucionista que inspirou a defesa da harmonia entre as nossas mentes e o mundo que encontrámos no final do capítulo 1. Podemos efectivamente ter a esperança de que sobreviva ao oceano de ideias que tentei agitar neste capítulo. Mas isso exige que estejamos confiantes em que acabaram as nossas dificuldades e que a imagem absoluta ou científica do mundo encontrou o seu lugar próprio ao lado da sua imagem manifesta. Teríamos de pensar que Kant ou um sucessor seu nos guiou argutamente entre Filonous e Moore ou resolveu com sucesso o problema de Hume a respeito da "filosofia moderna" sem ceder demasiado ao idealismo. Nem toda a gente está convencida disto.
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