entrevista Pascoal Lamy 17/05/08
Pascoal Lamy é um dos homens mais importantes do mundo globalizado. Diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), comanda as negociações da Rodada de Doha, que pretende renovar os marcos regulatórios das transações internacionais. Ele recebeu, em Genebra, um pequeno grupo de jornalistas latino-americanos e caribenhos. Em uma conversa franca, criticou os subsídios dos países ricos aos agricultores, que provocam distorções de preços e escassez de comida, admitiu que as eleições nos Estados Unidos afetam as negociações e deixou claro que, hoje, os países em desenvolvimento sentam-se à mesa da plenária da OMC em condições de igualdade com os ricos. Insistiu, ainda, que a negociação é a única saída para resolver os conflitos comerciais que a globalização gerou. Disse que a instituição não dá conselhos, mas tenta ser um árbitro dos conflitos.
Pergunta: Quais são as perspectivas reais, do ponto de vista político, de que a Rodada de Doha se encerre nos próximos meses? Pascal Lamy: É preciso entender uma coisa. Todos os negociadores na OMC têm um mandato e orgulho profissional, ao voltar para seus países, de ter feito o melhor possível. Existem dois aspectos: o político e o técnico. Do ponto de vista político, converso com presidentes e ministros duas a três vezes por dia. Todos de maior peso querem concluir a rodada até o fim deste ano. Há um consenso sobre isso. Claro que nem sempre Bush, Lula ou Singh (da Índia) têm a mesma visão do que seria uma rodada justa. Mas eles têm uma determinação coletiva para chegar a um acordo. Todos investiram capital político em Doha, também por estarmos em uma fase de crise econômica internacional, com escassez de alimentos. O fato é que estamos chegando ao fim de um ciclo político nos Estados Unidos e todos os grandes players estão dispostos a fazer concessões substanciais, especialmente os norte-americanos. Do aspecto técnico, há muitas especificidades, necessidades específicas. Há países discutindo o comércio de manteiga, aves, têxteis e produtos químicos. Pela complexidade, pode-se sentir uma certa frustração. Acredito que ambos os ingredientes estão à mesa, o que não é uma condição suficiente para a convergência de um acordo. Vai dar certo? Não sei. Estou empenhado que sim. Minha função é tentar chegarmos a um acordo. Não é um assunto de teoria dos jogos, mas psicológica e política. É uma grande maionese: os ingredientes estão na receita, tento ter uma certa flexibilidade, mas às vezes o tempo fica um pouco turbulento e nada funciona.
P: O senhor acredita que, na fase atual de negociações, os países em desenvolvimento têm uma posição política mais forte, por serem produtores e exportadores de commodities e estarem crescendo a taxas muito superiores às do Primeiro Mundo? PL: Fui chefe-de-gabinete do então presidente da Comissão Européia, Jacques Delors, do começo de 1986 ao final de 1994. Eu vivi um ciclo importante à época. E se eu compará-lo à situação de hoje, o mundo mudou completamente. Antes havia um clube seleto, composto pelos EUA, União Européia, Canadá e Japão, que basicamente iam às compras. Naquela época, apesar de fundadores da OMC, Brasil e Índia, por exemplo, não faziam parte do jogo. Se o clube dos quatro grandes chegava a uma conclusão, ela era imediatamente acatada pelos países restantes. Os países emergentes, hoje, sentam à mesa em condições de igualdade. Um exemplo é a agricultura. Os EUA, Japão e Canadá nunca haviam antes aceitado o tema, que hoje tem muita força. O motivo pelo qual a agricultura é tão importante neste momento não é por que tem uma grande participação no comércio global. Tem apenas 8%. O processo agora é genuinamente multilateral. Quando falo com meus colegas do FMI, ONU ou Banco Mundial, eles enfatizam que há um lugar no sistema internacional de a distribuição do poder se ajustou muito mais rapidamente na OMC. Isso porque aqui não há diferenças de cotas e votos. Todos são, em tese, iguais. A rodada atual (de Doha) reflete exatamente essa mudança: maior representatividade dos emergentes.
Pergunta: Quais são as perspectivas reais, do ponto de vista político, de que a Rodada de Doha se encerre nos próximos meses? Pascal Lamy: É preciso entender uma coisa. Todos os negociadores na OMC têm um mandato e orgulho profissional, ao voltar para seus países, de ter feito o melhor possível. Existem dois aspectos: o político e o técnico. Do ponto de vista político, converso com presidentes e ministros duas a três vezes por dia. Todos de maior peso querem concluir a rodada até o fim deste ano. Há um consenso sobre isso. Claro que nem sempre Bush, Lula ou Singh (da Índia) têm a mesma visão do que seria uma rodada justa. Mas eles têm uma determinação coletiva para chegar a um acordo. Todos investiram capital político em Doha, também por estarmos em uma fase de crise econômica internacional, com escassez de alimentos. O fato é que estamos chegando ao fim de um ciclo político nos Estados Unidos e todos os grandes players estão dispostos a fazer concessões substanciais, especialmente os norte-americanos. Do aspecto técnico, há muitas especificidades, necessidades específicas. Há países discutindo o comércio de manteiga, aves, têxteis e produtos químicos. Pela complexidade, pode-se sentir uma certa frustração. Acredito que ambos os ingredientes estão à mesa, o que não é uma condição suficiente para a convergência de um acordo. Vai dar certo? Não sei. Estou empenhado que sim. Minha função é tentar chegarmos a um acordo. Não é um assunto de teoria dos jogos, mas psicológica e política. É uma grande maionese: os ingredientes estão na receita, tento ter uma certa flexibilidade, mas às vezes o tempo fica um pouco turbulento e nada funciona.
P: O senhor acredita que, na fase atual de negociações, os países em desenvolvimento têm uma posição política mais forte, por serem produtores e exportadores de commodities e estarem crescendo a taxas muito superiores às do Primeiro Mundo? PL: Fui chefe-de-gabinete do então presidente da Comissão Européia, Jacques Delors, do começo de 1986 ao final de 1994. Eu vivi um ciclo importante à época. E se eu compará-lo à situação de hoje, o mundo mudou completamente. Antes havia um clube seleto, composto pelos EUA, União Européia, Canadá e Japão, que basicamente iam às compras. Naquela época, apesar de fundadores da OMC, Brasil e Índia, por exemplo, não faziam parte do jogo. Se o clube dos quatro grandes chegava a uma conclusão, ela era imediatamente acatada pelos países restantes. Os países emergentes, hoje, sentam à mesa em condições de igualdade. Um exemplo é a agricultura. Os EUA, Japão e Canadá nunca haviam antes aceitado o tema, que hoje tem muita força. O motivo pelo qual a agricultura é tão importante neste momento não é por que tem uma grande participação no comércio global. Tem apenas 8%. O processo agora é genuinamente multilateral. Quando falo com meus colegas do FMI, ONU ou Banco Mundial, eles enfatizam que há um lugar no sistema internacional de a distribuição do poder se ajustou muito mais rapidamente na OMC. Isso porque aqui não há diferenças de cotas e votos. Todos são, em tese, iguais. A rodada atual (de Doha) reflete exatamente essa mudança: maior representatividade dos emergentes.
P: Como fica a situação de países mais pobres, mais fracos, como muitas ilhas caribenhas? PL: Vamos lembrar apenas que essa negociação não é apenas sobre agricultura e indústria. Há 20 tópicos em discussão, que a mídia não explora, como regras para o comércio e o meio ambiente, nível de glicemia de vinhos e refrigerantes, milhares de assuntos que não vêm à tona. Se eu fosse os Estados Unidos ou a República Dominicana, ao fim do dia, eu olharia para o quadro completo. Não apenas alguns itens, como subsídios e tarifas agrícolas. Os EUA, Japão, Noruega e Suíça sabem que precisam assumir compromissos e derrubar seus subsídios que distorcem o comércio global. A magnitude média que têm de aceitar é uma redução de 78%. Essas coisas têm um custo, mas precisam ser feitas. Não acredito que Argentina e Brasil tenham problemas em fazer concessões, porque são mais competitivos em commodities do que os EUA, claro considerando a redução dos subsídios. Para os países pobres, há um só caminho: as negociações na OIT, defendendo os seus interesses.
P: Qual é o impacto das eleições presidenciais norte-americanas na Rodada de Doha? PL: As eleições nos EUA influenciam as negociações. O atual governo norte-americano quer o fim da rodada antes de sua administração terminar. Todos os negociadores sabem o que podem conseguir com o atual presidente, mas desconhecem o que virá no próximo governo. Esse elemento prático tem um impacto forte na OMC. Claro que haverá um novo presidente, mas em termos de comércio, um outro elemento importante é o Congresso, o que não existe em outros países. Também por isso, a probabilidade de um acordo é uma questão em aberto. Os negociadores norte-americanos muitas vezes alegam: “isso não vai ser aceito no Parlamento”. Às vezes, é verdade. Às vezes, não. P: Como o senhor avalia o fato de o número de presidentes de esquerda terem crescido na América Latina? PL: A esquerda é um conceito muito amplo, desde a centro-esquerda a antiglobalização furiosos. Não dá para classificar em uma só categoria, porque o espectro é imenso. Mas vou responder pragmaticamente. Quando converso com Michelle Bachelet (Chile), com Lula, com o primeiro-ministro Gordon Brown (Inglaterra), com José Luis Zapatero (Espanha), todos têm a mesma idéia de que precisam de um sistema multilateral sólido para o benefícios das populações desses países. Há alguns com posições mais críticas. Mas se eu comparar a situação atual com há de cinco anos, vejo uma mudança na situação. Muitos interlocutores àquele tempo me diziam: “Você tem que matar a OMC, porque a organização mata as pessoas”. Hoje, há um discurso mais equilibrado. Muitos da esquerda admitem agora que a globalização veio para ficar, gostemos ou não.
P: Como o senhor avalia os movimentos de nacionalização de empresas privadas, como ocorreu na Venezuela e Bolívia? PL: Vou falar em nome da OMC, porque tenho um mandato. Se os membros da OMC obedecerem aos compromissos que assumiram junto à organização, tudo bem. Se eles quebrarem os compromissos, nada posso fazer. Não tenho autoridade para tomar atitudes quando algum país infringe regras. Se um integrante da OMC desrespeita as normas, um outro atingido tem de reclamar. E temos uma série de procedimentos para discutir a disputa. Quero apenas enfatizar que nenhuma regra da OMC diz se uma empresa tem de ser pública ou privada. Não intervimos nesse aspecto. Mas, se um país assumiu algum compromisso de tratar o capital estrangeiro da mesma forma que o nacional, aqui em negociações, há um espaço enorme para a reação dos que se sentiram prejudicados. Há uma enorme geometria de negociações. Temos que analisar caso a caso. P: Os subsídios dos países ricos aos agricultores são parte do problema da falta de comida no mercado mundial? PL: Sim. Os subsídios são parte do problema. É um assunto muito complexo. Os motivos para a alta dos preços dos alimentos recentemente são variados. Muitos têm a ver com o baixo nível dos estoques, a seca, o preço do petróleo e a mudança da dieta das populações dos países emergentes, porque eles se tornaram menos pobres. Eles comem mais carne e cereais, por exemplo. É fato que a capacidade de produção das nações em desenvolvimento foi prejudicada por subsídios injustos à exportação nos países ricos. São distorções comerciais que prejudicam os fazendeiros dos emergentes. Mas a OMC espera ter parte da solução nesta rodada. Mas os subsídios também são parte da solução. Na OMC, podemos ter boas notícias no futuro, com a queda dessas barreiras. P: Como ficam os acordos comerciais regionais e bilaterais, diante das incertezas da Rodada de Doha? A OMC está fracassando? PL: A abertura comercial não é escolher entre bilateral ou multilateral. Ninguém é obrigado a fazer esta opção. Há coexistência sempre entre as duas instâncias. Os acordos regionais têm menor amplitude do que os que fazemos aqui. Tem havido sim um aumento de acordos bilaterais e regionais. No entanto, o número de países que está ingressando no estágio de desenvolvimento cresceu muito e, para eles, interessa o comércio internacional. É inevitável que as nações tenham se movido em direção à integração regional e isso tem a ver com a globalização e a necessidade de enfrentar os seus desafios. É uma busca pelo fortalecimento geopolítico. Isso não é um problema para nós, desde que respeitem os acordos que firmamos em Genebra. P: Vários países limitaram as exportações de alimentos em função da crise. Como o senhor avalia essas iniciativas? PL: Não há dúvida de que a situação internacional é tensa. Como economista, considero que adotar restrições às exportações só contribui para secar ainda mais o mercado. Como político, se fosse, eu provavelmente faria o mesmo, para atender o consumo da população do meu país. Como diretor-geral da OMC, eu olharia para as nossas regras e elas dizem que restrições às exportações podem ser feitas em circunstâncias específicas. Nós não damos conselhos aos países sobre o que fazer. Não somos o Banco Mundial nem o Fundo Monetário Internacional. Nós estamos no campo dos acordos e da disciplina. As duas maneiras de mudar as regras internacionais são por meio de guerra ou negociação. Aqui, nosso negócio é paz. E, nesta rodada, estamos quase chegando lá. É complexo, é uma organização imensa, com 151 membros. Tratados internacionais aqui só podem ser finalizados por consenso. Se apenas um país discordar de um ponto, é preciso recomeçar.
P: Qual é o impacto das eleições presidenciais norte-americanas na Rodada de Doha? PL: As eleições nos EUA influenciam as negociações. O atual governo norte-americano quer o fim da rodada antes de sua administração terminar. Todos os negociadores sabem o que podem conseguir com o atual presidente, mas desconhecem o que virá no próximo governo. Esse elemento prático tem um impacto forte na OMC. Claro que haverá um novo presidente, mas em termos de comércio, um outro elemento importante é o Congresso, o que não existe em outros países. Também por isso, a probabilidade de um acordo é uma questão em aberto. Os negociadores norte-americanos muitas vezes alegam: “isso não vai ser aceito no Parlamento”. Às vezes, é verdade. Às vezes, não. P: Como o senhor avalia o fato de o número de presidentes de esquerda terem crescido na América Latina? PL: A esquerda é um conceito muito amplo, desde a centro-esquerda a antiglobalização furiosos. Não dá para classificar em uma só categoria, porque o espectro é imenso. Mas vou responder pragmaticamente. Quando converso com Michelle Bachelet (Chile), com Lula, com o primeiro-ministro Gordon Brown (Inglaterra), com José Luis Zapatero (Espanha), todos têm a mesma idéia de que precisam de um sistema multilateral sólido para o benefícios das populações desses países. Há alguns com posições mais críticas. Mas se eu comparar a situação atual com há de cinco anos, vejo uma mudança na situação. Muitos interlocutores àquele tempo me diziam: “Você tem que matar a OMC, porque a organização mata as pessoas”. Hoje, há um discurso mais equilibrado. Muitos da esquerda admitem agora que a globalização veio para ficar, gostemos ou não.
P: Como o senhor avalia os movimentos de nacionalização de empresas privadas, como ocorreu na Venezuela e Bolívia? PL: Vou falar em nome da OMC, porque tenho um mandato. Se os membros da OMC obedecerem aos compromissos que assumiram junto à organização, tudo bem. Se eles quebrarem os compromissos, nada posso fazer. Não tenho autoridade para tomar atitudes quando algum país infringe regras. Se um integrante da OMC desrespeita as normas, um outro atingido tem de reclamar. E temos uma série de procedimentos para discutir a disputa. Quero apenas enfatizar que nenhuma regra da OMC diz se uma empresa tem de ser pública ou privada. Não intervimos nesse aspecto. Mas, se um país assumiu algum compromisso de tratar o capital estrangeiro da mesma forma que o nacional, aqui em negociações, há um espaço enorme para a reação dos que se sentiram prejudicados. Há uma enorme geometria de negociações. Temos que analisar caso a caso. P: Os subsídios dos países ricos aos agricultores são parte do problema da falta de comida no mercado mundial? PL: Sim. Os subsídios são parte do problema. É um assunto muito complexo. Os motivos para a alta dos preços dos alimentos recentemente são variados. Muitos têm a ver com o baixo nível dos estoques, a seca, o preço do petróleo e a mudança da dieta das populações dos países emergentes, porque eles se tornaram menos pobres. Eles comem mais carne e cereais, por exemplo. É fato que a capacidade de produção das nações em desenvolvimento foi prejudicada por subsídios injustos à exportação nos países ricos. São distorções comerciais que prejudicam os fazendeiros dos emergentes. Mas a OMC espera ter parte da solução nesta rodada. Mas os subsídios também são parte da solução. Na OMC, podemos ter boas notícias no futuro, com a queda dessas barreiras. P: Como ficam os acordos comerciais regionais e bilaterais, diante das incertezas da Rodada de Doha? A OMC está fracassando? PL: A abertura comercial não é escolher entre bilateral ou multilateral. Ninguém é obrigado a fazer esta opção. Há coexistência sempre entre as duas instâncias. Os acordos regionais têm menor amplitude do que os que fazemos aqui. Tem havido sim um aumento de acordos bilaterais e regionais. No entanto, o número de países que está ingressando no estágio de desenvolvimento cresceu muito e, para eles, interessa o comércio internacional. É inevitável que as nações tenham se movido em direção à integração regional e isso tem a ver com a globalização e a necessidade de enfrentar os seus desafios. É uma busca pelo fortalecimento geopolítico. Isso não é um problema para nós, desde que respeitem os acordos que firmamos em Genebra. P: Vários países limitaram as exportações de alimentos em função da crise. Como o senhor avalia essas iniciativas? PL: Não há dúvida de que a situação internacional é tensa. Como economista, considero que adotar restrições às exportações só contribui para secar ainda mais o mercado. Como político, se fosse, eu provavelmente faria o mesmo, para atender o consumo da população do meu país. Como diretor-geral da OMC, eu olharia para as nossas regras e elas dizem que restrições às exportações podem ser feitas em circunstâncias específicas. Nós não damos conselhos aos países sobre o que fazer. Não somos o Banco Mundial nem o Fundo Monetário Internacional. Nós estamos no campo dos acordos e da disciplina. As duas maneiras de mudar as regras internacionais são por meio de guerra ou negociação. Aqui, nosso negócio é paz. E, nesta rodada, estamos quase chegando lá. É complexo, é uma organização imensa, com 151 membros. Tratados internacionais aqui só podem ser finalizados por consenso. Se apenas um país discordar de um ponto, é preciso recomeçar.
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