
Label France: Quais são, a seu ver, os valores mais importantes a salvaguardar e transmitir?
Alain Finkielkraut: Antes mesmo de nos perguntarmos sobre os valores, seria essencial, para mim, que pudéssemos transmitir uma certa idéia de transmissão. Devo confessar que estou bastante inquieto diante do fascínio que essa mudança de milésimo provoca um pouco por toda parte, porque eu vejo nisso uma estranha impaciência e a idéia de que o importante, antes de mais nada, é adaptar-se a transformações. É sem dúvida necessário preparar-se para isso, mas se nos entregarmos completamente a esse entusiasmo corremos o risco de chegar a um paradoxo segundo o qual a única coisa a ser transmitida seria o futuro!Ora, justamente a idéia de transmissão baseia-se no fato de que o presente não conhece todas as respostas. Se ele se entregar a si mesmo ou se for concebido apenas como aberto para o futuro, o presente será uma prisão. Devemos saber distanciar-nos de nós mesmos, e as obras do passado podem nos ajudar nesse empreendimento. É por isso que devemos preocupar-nos com as obras, antes de nos preocuparmos com os valores, sobre os quais estamos todos de acordo: igualdade, liberdade, fraternidade ou tolerância. Porque existe um valor particularmente frágil, o da compreensão do mundo humano, que passa pela leitura das obras. Assim, eu diria que é preciso legar uma exigência de transmissão e um valor essencial, que é a paixão de compreender.

Essa fidelidade à herança, no cerne de sua última obra, que estigmatiza a "ingratidão" de nosso tempo para com o passado, não seria uma forma de nostalgia que corre o risco de nos impedir de seguir adiante?Não se trata de uma nostalgia do passado como tal. Todavia, eu acho que a nostalgia assim mesmo tem o seu lugar. Impressiona-me o ódio que se pode ter por este sentimento. Wnquanto que, como mostrou magnificamente Jankélévitch, esse sentimento tem algo de humano. A nostalgia prende-nos a pequenos nadas porque estes lembram momentos que não voltarão mais. Como o tempo é irreversível, o passado como tal é motivo de nostalgia. Demos direito de cidadania à nostalgia, cessemos de viver exclusivamente na expectativa de um futuro melhor. O tecnicismo reinante gostaria de nos convencer de que a nostalgia de nada serve. Sem dúvida, mas ela faz parte da humanidade do Homem. Porém, quando falo de transmissão, quero dizer que existem obras do passado que são arrancadas do passado ao qual elas pertencem. Nós desenvolvemos no Ocidente uma certa idéia do clássico que consiste em pensar que estamos realmente inscritos em um tempo histórico, mas que existe entre os homens uma possibilidade de comunicação em torno de significações que podem ser vistas além da História. Não é o passado como tal que se trata de cultivar, mas uma relação entre os homens que esteja completamente subordinada à História.Em que a escrita e a cultura distinguem-se radicalmente das novas tecnologias da informação e da comunicação?
Eu não pretendo «diabolizar» essas novas tecnologias, nem idolatrar a escrita. Mas creio simplesmente que, apesar da transformação que se anuncia, é preciso defender o livro. Exalta-se a interatividade que reina na Internet. Ora, eu não preciso disso passa refletir ou para pensar quando estou lendo um autor. Estamos hoje assimilando comunicação e interação. E é essa assimilação que o livro refuta. Não existe qualquer interatividade com um livro. É uma forma de comunicação totalmente estranha, uma conversação bizarra com alguém que, de uma certa maneira, não está falando a você, que deu o melhor de si, e que sobrevive em suas obras.
Além disso, o texto que você lê num livro tem uma ordem, uma autoridade. Você pode rasgar as suas páginas, mas não pode «maquinar» como gostaria selecionando apenas o que lhe interessa, tal ou tal tema dos quais gostaria de obter todas as ocorrências, como permite a multimídia. O livro tem um peso, uma heteronomia, um hieratismo que se impõe a você. O livro não é flexível nem interativo. A interação não deve ser o todo da comunicação. Porque, se ela assim se tornasse, nós nos comunicaríamos apenas com os vivos. O que seria uma barbaridade.O telefone celular e a Internet, por exemplo, prestam-nos muitos serviços, permitem-nos ter um melhor desempenho, mas nada substitui o silêncio da reflexão solitária. Se o nosso valor, essencial a nós ocidentais, é a autonomia, como você quer ser autônomo estando em estado de interatividade permanente? Você será um bom cara cooperativo, mas não será necessariamente um espírito livre.Para completar, a conversa ao vivo, que se tem em torno de uma refeição com amigos, tem um charme e uma singularidade que não podem ser substituídas por essas máquinas. Não percamos de vista essa grande herança da amizade em benefício dessa comunicação generalizada. Por fim, a técnica produz a não-distância. Esta é uma realização extraordinária, mas nesse «tête-à-tête» do indivíduo com a globalidade, existe um senso do mundo que corre o risco de se perder. O mundo não é necessariamente o que essa forma de globalização nos diz, não é apenas redes. É também territórios, nações, paisagens.Aliás, tem-se a impressão de que, desde o início da guerra na ex-Iugoslávia em 1991 até a conferência da OMC em Seattle hoje, todos os acontecimentos políticos estiveram lá para nos lembrar o peso das coisas, a nós que o estamos esquecendo sem cessar. Sim, existem territórios, sim, existem grupos, sim, a questão das fronteiras permanece uma questão capital, sim, existem também agricultores e paisagens. Foi-se a época em que era necessário enxergar além dessas fronteiras, desses distritos. O cosmopolitismo do pensamento das Luzes no século XVIII encarnava essa aspiração, essa necessidade para o indivíduo de fugir aos preconceitos da tradição, ao particular para atingir valores universais. Agora, trata-se de fugir a outras evidências. Não mais as do local, mas as do global. Porque, se existe aldeia, Mac Luhan tem razão, essa é realmente uma «aldeia global». E existem preconceitos quanto ao global hoje que nos impedem de ver a realidade, ou que nos levam a desprezar todos os agrupamentos particulares, como formas bárbaras de humanidade.Contra o humanismo abstrato, o senhor reabilita em seu último livro o enraizamento do ser humano no concreto e no particular...
A filósofa Simone Weil já denunciava o que há de bárbaro no fato de desenraizar os homens. Acho que esse movimento de desenraizamento, que é próprio à civilização moderna, deve ser aplicado hoje ao fetichismo da técnica. Na época moderna, a técnica permitiu que fôssemos arrancados da terra, e hoje, eu acho que é preciso arrancar-nos da técnica para preservar um certo contato com a terra.

Está sendo germinada uma reconciliação do particular com o universal nesse reconhecimento do fato de todos os homens pertencerem a uma terra...Acho que a nossa civilização ocidental baseava-se em uma articulação extremamente sutil do particular e do universal. A Europa era ao mesmo tempo essa exigência universal marcada pelos direitos do homem e do cidadão, que fundamenta a democracia moderna, e ao mesmo tempo o enraizamento dessa exigência em nações particulares, que permitiram a essas aspirações universais virem ao mundo. A nação era então um ator político que tinha a preocupação com o mundo.Um dos riscos da época na qual estamos entrando é precisamente o de uma disjunção entre o particular e o universal, onde o universal encontra-se reduzido a uma espécie de globalização dominada pela técnica e a economia, e onde a preocupação com o mundo dá lugar à cultura através de suas identidades particulares no horizonte do multiculturalismo. Acho que é preciso resistir de todas as maneiras a uma disjunção como essa. Não digo que a nação seja um ator que não se pode suplantar2, mas que, se estamos criando a Europa é precisamente para impedir que essa disjunção ocorra.A nação não é portanto um âmbito ultrapassado, a seu ver?Não, de fato. É necessário compreender sobretudo que os povos não se encontram todos no mesmo estágio, porque não tiveram todos a mesma história. Nós, europeus do oeste, pretendemos superar o Estado-Nação para constituir a Europa. Ora, existem povos, principalmente no leste europeu, que mal estão saindo de impérios para se constituir em nações. É preciso reconhecer a legitimidade de sua reivindicação. Entretanto, é preciso permanecer exigente quanto aos princípios democráticos que devem fundamentar esses Estados-Nações.Será que o modelo cívico de nação, promovido pela França, baseado em um contrato é uma filiação política, mais do que no fato de se fazer parte de um grupo étnico ou cultural, é um modelo de futuro para os Estados-Nações?Convém reconsiderar com um pouco de humildade a origem de nosso sentimento nacional na França. Se nós desenvolvemos um modelo cívico, não foi porque possuíamos um senso inato da universalidade, mas simplesmente porque a monarquia havia realizado um enorme trabalho em favor da constituição da nação. A nação existia antes da Revolução de 1789, mas eram o rei e a aristocracia que dominavam. A Revolução consistiu em transferir a fonte e a legitimidade da soberania nacional do rei ao povo. Era um problema político.Em outros países da Europa, a questão era apresentada de forma diferente. Ali onde reinava o Império (austro-húngaro) e não nas grandes monarquias territoriais como a França e a Inglaterra, as nações deviam constituir-se e fazer valer sua originalidade cultural. Ou seja sua língua, sua memória e suas lembranças comuns. Assim, se houve um modelo mais cívico do que étnico, como na Alemanha, é porque a história nacional da Europa não se fez da mesma maneira para todos. Além disso, na França também essa dimensão de se pertencer a um grupo existe. A França não é simplesmente uma "ágora", ela é todo um patrimônio natural e cultural que possui um valor singular.Na realidade, o que me parece desejável para os Estados-Nações, seja qual for a origem do sentimento nacional, é que se construam com base em um modelo democrático. É verdade que, em nome do modelo étnico de nação, pode-se negar a democracia. Porque é difícil pensar a pluralidade de opiniões quando se postula a existência de uma única identidade comum. Mas essa dificuldade deve ser superada em favor da democracia.
O que, a seu ver, deverá fundamentar no futuro a nacionalidade francesa?A França soube ser uma pátria adotiva e é preciso que assim permaneça. É preciso também para isso que ela tenha uma concepção substancial de si mesma. É necessário transpor essa oposição étnico/cívico. A França é uma história, uma língua, são obras, monumentos e igrejas. E, é claro, é possível pensar que essa herança possa ser partilhada por outros, porque ela pode se fazer amada por eles. A França tem algo a dar. Ela me deu muito, a mim que sou filho de imigrantes poloneses!Assiste-se hoje, o que me parece grave, ao desenvolvimento de uma nova noção de hospitalidade. Antigamente, a hospitalidade consistia em dar algo a alguém. Hoje, é como se quanto menos se dá, mais se é generoso, já que se trata mais de respeitar a identidade do que chega do que integrá-lo na ideologia multiculturalista, que vem ganhando terreno na França. Ao pregar o "a cada um a sua identidade", ela combate o próprio princípio da integração, que é apresentada como uma ideologia colonial. Eu acho essa afirmação perigosa, mentirosa e mesmo abjeta. Ela leva a que se furte à criação de um espaço comum, sob o manto da tolerância e da generosidade, a que se renuncie a oferecer, a ensinar seja o que for àquele que chega, sob o pretexto de não querer impor-lhe uma história que não é a sua, porque isso seria uma forma de imperialismo e constituiria uma violência simbólica. Esse raciocínio deveria nos levaria a rejeitar o estudo do latim, sob o pretexto de que nossos ancestrais eram gauleses e não romanos! Ora, se estudamos o latim desde tempos imemoriais é porque ela é "a" língua original e, através dela, é uma civilização que se nos impõe.Depois de séculos de dominação, às vezes violenta e sangrenta, que o Ocidente exerceu no mundo, o senhor contesta o fato de que a consciência pesada do Ocidente o impeça de desempenhar um papel no mundo.Essa consciência pesada tem um sentido. Aliás, a consciência pesada é a própria consciência. Não defendo portanto a volta à inocência. O Ocidente tem sem dúvida coisas a se fazer perdoar e continuará tendo: o aumento da desigualdade entre os países do Norte e do Sul, por exemplo. Longe de mim então a idéia de converter a consciência pesada do Ocidente em não sei que alegre soberania. Quando poderíamos ser tentados hoje a isso, já que o liberalismo venceu todos os seus rivais demostrando ser um sistema mais confiável do que os outros. O comunismo desfigurou o anti-capitalismo: sair do comunismo é portanto elaborar uma crítica do capitalismo que nada fique a dever a essa ideologia.Porém, ao mesmo tempo, é claro, a consciência pesada pode ter efeitos perversos quando alimenta a boa consciência do campo da frente ou quando faz com que os europeus abdiquem da ambição de estender aos outros os valores universais dos direitos humanos, por exemplo.Acredito que toda política deve ser concebida hoje com base em um horizonte cosmopolita. Esta é uma das contribuições da modernidade. O sentido da política é a responsabilidade em relação ao mundo. Nós devemos portanto agir no mundo e para o mundo. Nós, ocidentais, em particular, já que isso faz parte de nossa cultura e porque possuímos, além disso, os meios para fazê-lo.

No que diz respeito à França, teria ela um papel particular a desempenhar?De Gaulle achava que a nação era a comunidade política por excelência e defendia portanto a autodeterminação dos povos. Eu acredito ser essa uma das mensagens que devemos, nós franceses, continuar a transmitir ao mundo. Infelizmente nós a esquecemos, enquanto que ela podia ter tido um importante papel no momento em que desmoronavam os últimos impérios. Na própria medida em que procuramos hoje ultrapassar a nação, a nossa tendência foi a de considerar perigosa toda reivindicação nacional, e abordar de maneira negativa a «fragmentação» dos impérios e o surgimento dessas «pequenas nações». Acho que a França perdeu uma ótima oportunidade de ser ela mesma.Além disso, a França também deve manter o seu resplendor no mundo através da sua língua. A língua francesa não é apenas um simples meio de comunicação. O que faz a sua singularidade é que ela tem algo de artificial, que não é o artifício do Estado ou da administração, como dizem hoje os regionalistas, mas o da literatura. Existe uma prodigiosa ligação entre a língua francesa e a literatura francesa. Aliás, os estrangeiros que amam a nossa língua amam-na por causa disso. Eis aí uma herança que devemos preservar.Que conhecimentos, que aptidões a escola de amanhã deverá inculcar?A escola tem a função de fazer a grande mediação de nossas sociedades entre os vivos e os mortos. Isto é uma evidência, que foi formulada no início do humanismo, mas que tende hoje a desaparecer do discurso oficial. Como dizia Charles Péguy no início do século, o professor não é o representante nem do Estado, nem da sociedade, mas o da humanidade através de suas obras, o representante dos poetas e dos artistas. E deve permanecer como tal, com mais razão na época da escrita generalizada.
A escola tem o papel de ensinar a cultura geral às crianças, o que não é exclusividade de um determinado tipo de preparação profissional. Mas esse papel é central. Ele deve até ser reforçado hoje, quando se prepara a redução do tempo de trabalho para que todo mundo possa trabalhar3 . Isso significa que a escola deve voltar a sua função original; «scholé» significa lazer, a aprendizagem do lazer, a capacidade de se dedicar à reflexão, à conversação e à contemplação. É uma tarefa urgente, já que o lazer vai se expandir. Vai-se permitir que a indústria do lazer governe o lazer? Vai-se deixar instalar essa hegemonia televisiva e consumista sobre o lazer? Será que o lazer vai ser de fato termos cada vez mais programas de televisão ou podermos fazer as compras no domingo? se considerarmos que a civilização tem algo de melhor a oferecer, então é preciso devolver à escola a sua vocação, porque o lazer, que era privilégio dos mestres nas sociedades antigas, está se tornando hoje o problema de todo mundo.O que o senhor pensa da tendência de se reduzir cada vez mais o espaço dos professores em benefício dos computadores?
Os computadores são-nos exaltados como instrumentos pedagógicos por serem interativos. Trata-se de fato de substituir a verticalidade pela horizontalidade. Existe uma verticalidade – uma relação hierárquica – da relação entre o professor e o aluno que o sentimento democrático contemporâneo não suporta. Tudo o que é horizontal é melhor do que tudo o que é vertical. Eu acho que essa idéia é absurda, porque a verticalidade é indispensável à escola, é preciso transcender a escola. Transcendência da admiração pelas obras, transcendência também, ou seja dissimetria de toda relação pedagógica entre o que sabe e o que não sabe.Acreditamos hoje, com efeito, que tudo passa pela atividade do aluno. O aprendizado da língua é vítima desse culto à interatividade generalizada. Queremos dar a palavra aos alunos antes de lhes dar a língua. A língua é aprendida ouvindo e lendo, e não falando, contrariamente ao que se diz. Mas tudo o que diz respeito à receptividade foi banido. Isto é uma aberração.Como o senhor vê o lugar dos intelectuais no mundo de hoje e de amanhã?Nas democracias modernas, onde a idéia de humanidade encontra-se na própria base da cidadania, onde se governa em nome de princípios universais, existe uma categoria de pessoas que tem como função lembrar aos governantes e ao povo a existência, a legitimidade e a força desses princípios: os intelectuais. Nos dias de hoje, nossas sociedades apelam cada vez mais para eles, o que atesta bem a sua necessidade de ver a universalidade representada. Eu não acredito portanto no desaparecimento dos intelectuais, acredito simplesmente na necessidade que têm de defender seus princípios, o que os leva a intervir nas situações de exceção, mas desenvolver também a sua reflexão filosófica sobre o curso normal das coisas, para evitar deixar o debate entregue apenas aos políticos e especialistas. Porque a política é uma questão do mundo comum, e esse mundo não deveria ser dividido em fatias pelos especialistas. O intelectual também deve zelar pela integridade do mundo comum.
De que maneira o senhor interpreta o surgimento de movimentos cidadãos internacionais como o que vimos por ocasião da conferência de Seattle em dezembro de 19994?Achei que as Organizações Não-Governamentais (ONGs) que se manifestaram em Seattle [Estados Unidos] estiveram formidáveis. Porque elas fizeram a distinção entre a globalização e a preocupação com o mundo. Porque fugimos a essa oposição um pouco fácil demais entre os cosmopolitas que transcendem as fronteiras e os revoltosos ouriçados em seus territórios. Ora, esses homens e mulheres que chegaram a protestar contra a uniformização do mundo com seus queijos, seus produtos e sua terra estavam lá para defender todas as terras, para defender a terra.
Foram duas idéias que se confrontaram, provando que a globalização não tem o monopólio da idéia de mundo. Foi o que houve de maravilhoso em Seattle, esse desmentido extraordinário tanto ao marxismo quanto ao liberalismo, com o slogan «agricultores de todos os países, unam-se!». Os agricultores deram a essa elite lobotomizada o que é realmente uma das raras boas novidades da época presente!