*(LITERATURA CLANDESTINA REVOLUCIONÁRIA)*MICHEL FOUCAULT LIBERTE-ME.

VC LEU MICHEL FOUCAULT,NÃO?ENTÃO O QUE VC ESTÁ ESPERANDO FILHO DA PUTA?ELE É A CHAVE DA EVOLUÇÃO DOS HUMANOS.HISTORIA DA LOUCURA,NASCIMENTO DA CLINICA,AS PALAVRAS E AS COISAS,ARQUEOLOGIA DO SABER,A ORDEM DO DISCURSO,EU PIERRE RIVIÉRE,A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS,VIGIAR E PUNIR,HISTORIA DA SEXUALIDADE,EM DEFESA DA SOCIEDADE,OS ANORMAIS...EVOLUÇÃO OU MORTE!

Friday, August 31, 2007

entrevista com Gilles Lipovetsky 31/08/07

Que diferenças caracterizam o pós-moderno do hipermoderno e como acontece essa transição?Gilles Lipovetsky – A principal característica é a idéia de entender, enfim, de fazer sentir que algo era novo. Mas o conceito estava mal, não era pertinente, pois dava a idéia de que a modernidade estava morta, quando, na verdade, se trata simplesmente de uma outra modernidade que apareceu. Pós-moderno quer dizer: a modernidade está morta. Ora, ela não está morta. É uma outra modernidade, e penso até que se trata de uma modernidade muito mais radical, pois os antigos dispositivos que freavam a modernidade, como a política, a família, os papéis sexuais, tudo isso explodiu e somente os grandes princípios da modernidade estão nos conduzindo: a autonomia individual, o mercado, e a tecnociência.
E nessa transição, que relações o senhor poderia estabelecer entre a mídia, a mulher e a moda? Gilles Lipovetsky – A relação é bastante simples, pois durante muito tempo a moda, nas antigas sociedades, se disseminava em grupos pequenos, ou seja, tratava-se, no fundo, de modelos de proximidade que divulgavam a moda… E, a partir do século XIX e no século XX, a gente conhece a moda pela mídia, pelos jornais, pela propaganda comercial, ou seja, pelas imagens. É enorme esse papel, pois o exemplo da delgadeza é um dos mais terríveis. A gente vê muito bem que a força, o peso da mídia tem sido enorme. Todas as mulheres já integraram esse modelo da delgadeza. Há muito tempo, o cinema, a propaganda, tem gerado uma imagem ideal da beleza feminina. Esse é um ponto, mas há muitos mais… Afinal, as mulheres recebem suas informações pela mídia e acomodam-se, criam seus filhos... Os modelos tradicionais estão desaparecendo, e as pessoas procuram, no modelo educacional, as respostas para suas perguntas. “Meu filho não fala, como é que devo agir?” Elas (as mulheres) lêem as matérias. “Meu marido me trai, então será grave, não será grave?” A mídia, e acredito que cada vez mais será assim no futuro, nos oferece soluções. Nos anos 1950, 1960, isso não existia, era uma mídia unicamente para o entretenimento. Hoje vamos para uma mídia que responde às angústias dos homens e das mulheres, que estão um pouco perdidos. Então se oferece para eles debates, discussões, para eles verem que não estão sós, para eles verem o que se pode oferecer como soluções. O conceito de luxo diz respeito aos diferentes segmentos sociais ou está havendo uma mudança cultural nesse conceito?Gilles Lipovetsky – O mercado do luxo é complexo, é múltiplo. Existem vários luxos. Portanto, comprar um produto, um perfume Yves Saint-Laurent é um luxo relativamente acessível para as classes médias, mas existem outros luxos, totalmente inacessíveis… Ou seja, acho que passamos de um luxo relativamente homogêneo, que era o luxo tradicional, um luxo muito regulamentado, muito codificado, muito convencional, para consumos de luxo mais misturados. Há um mercado do luxo muito diferenciado e não há mais imperativos. É possível misturar diferentes estilos, diferentes preços. Não existe mais a pressão coletiva do luxo, ela desapareceu. O modelo tradicional era a corte real, com os imperativos. Hoje dá para fazer o que a gente quer, pode-se misturar as coisas.E quais as relações que podem ser estabelecidas entre o luxo e o consumo sem limite, e a falta das grandes regras e de metas no mundo contemporâneo?Gilles Lipovetsky – São duas as leituras disso. O luxo se desenvolve, porque ele vem compensar a falta de sonho, as pessoas procuram isso. Essa leitura é pessimista, mas não deixa de ser verdadeira. Parte dela é correta, mas não é tudo. Acho que tem uma parte positiva também, algo de gosto, um gosto hedonista, de saborear e descobrir coisas bonitas. Os grandes amantes do vinho não estão em fuga. Eles gostam de um bom vinho, compram garrafas de bom vinho, caras, um produto de luxo, e eles sentem uma real felicidade com coisas de altíssima qualidade, eles são colecionadores, ou seja, o colecionador sente prazer em comprar esse produto. A psicologia do colecionador é algo bastante complicado. Mas mostra que a libido pode estar em outro lugar que não no sexo. A libido pode estar nas mãos, no nariz, nos ouvidos, no gozo, e eu acho que o luxo é um. A paixão pelo descartável nas sociedades contemporâneas cria a necessidade do durável. Como se manifesta essa necessidade?Gilles Lipovetsky – São várias as causas do mito do durável. Primeiro, as razões ecológicas. Temos hoje uma cultura totalmente diferente, em que as pessoas começam a entender, acham imoral jogar tudo fora, desperdiçar... afetaria as próximas gerações. E uma segunda razão é que persiste o gosto pela novidade, mas o antigo reconquistou um certo valor. Eu sou da geração que gostava do novo. Hoje, a gente vê o gosto pelas coisas velhas, pelo vintage[1], pelas antiguidades. O passado recuperou um certo valor, porque a modernidade está mais angustiada e não estamos mais vivendo numa fase na qual se cultua apenas o moderno, o novo. O que dura gera uma certa segurança, uma marca do tempo contra a sociedade do efêmero, do digital, do virtual. Há nisso algo tangível, um pouco nostálgico também. Essa é uma tendência do consumo, não a única. E como o senhor relacionaria as características da nossa época e o aumento dos problemas, como o suicídio, a angústia, a depressão e o medo?Gilles Lipovetsky – É o que acompanha a individualização. Os indivíduos deixaram de ser conduzidos pelo coletivo. Eles não têm mais um grande objetivo coletivo que possa levá-los. Também houve uma mudança nas formas da educação. A gente gera filhos fracos, frágeis, e esse é um grande enigma para o futuro. Mas não há dúvidas de que a educação liberal gerou a fragilização em massa. Esse será um desafio para o século XXI. Deveremos reconquistar o espaço, mas a educação também, pois a gente vê pessoas muito frágeis, como se tivessem ficado sem força, e ali está um belo ideal: o que é educar? A gente não tem progredido muito nesse sentido.Não há limites para as crianças?Gilles Lipovetsky – Não. Elas não recebem uma boa educação. Como se diz agora, as crianças são hiperativas. Não têm senso dos limites. No futuro, deveremos pensar muito bem sobre esse assunto, já que há tudo por ser inventado. Não acho que isso possa durar muito tempo, pois não deixa de ser um grande desperdício humano. Os próprios pais reconhecem, com muita ansiedade até, que não sabem mais criar filhos. Como as relações entre os indivíduos influem na visão que temos de nós mesmos e no desastre ecológico que estamos vivendo, na instabilidade geral, em especial no mundo do trabalho e do desemprego?Gilles Lipovetsky – As relações de trabalho têm alterado as relações entre os indivíduos. Outrora, eles pertenciam a grupos, eram operários, as relações existiam no nosso universo, não se pediam coisas complicadas. Hoje temos as demissões, há uma incerteza quanto ao futuro, as pessoas se questionam. Antes se dizia: “É o capitalismo”. Hoje também, mas além disso se diz: “Eu é que não sou bom, não estou à altura”. Vemos que a instabilidade no mundo do trabalho tem gerado falhas e coisas muito difíceis de serem encaradas para indivíduos que se questionam, que têm dúvidas sobre si. Ao mesmo tempo, isso gera um maior distanciamento entre o indivíduo e a empresa. As pessoas estão mais desconfiadas, elas sabem que sua posição não é perpétua. Portanto, o futuro pede indivíduos cada vez mais móveis, capazes de trocar de empresa e até de profissão. E por isso é que, numa situação geradora de tanta angústia, a educação tem tanta importância. Quanto melhor a formação, maiores as chances de encontrar um novo emprego. Se não tiver uma formação inicial, a situação se torna trágica. Por isso, no século XXI, a hipermodernidade deve fazer um tremendo esforço em matéria de educação, de formação. Caso contrário, geraremos indivíduos que sempre serão rejeitados, e isso é algo terrível.
ato em são paulo DIA 06.09.2007 Quinta-feira Ás 16h, em frente ao Teatro Municipal email contato ato.ordenado@yahoo.com.br
http://www.youtube.com/watch?v=k8gvO4_T4mE

Sunday, August 19, 2007

entrevista Gilles Deleuze 19/08/07

http://www.youtube.com/watch?v=AxAOHez4meA Arnaud Villani – Você é um “monstro”? Gilles Deleuze – “Monstro” é, para começar, um ser composto. E é verdade que escrevi sobre assuntos aparentemente variados. “Monstro” tem um segundo sentido: alguma coisa ou qualquer um cuja extrema determinação deixa plenamente subsistir o indeterminado (por exemplo, um
monstro ao estilo de Goya). Nesse sentido, o pensamento é um monstro.AV – A physis parece exercer um grande papel em sua obra.GD – Você tem razão, creio que eu giro em torno de uma certa idéia da Natureza, mas não
cheguei ainda a considerar essa noção diretamente.
AV – Pode-se designá-lo como “sofista”, no bom sentido, e o antilogos, trata-se de um retorno,para além do golpe de força de Platão contra os sofistas?GD – Não. O antilogos, para mim, está menos ligado à astúcia no sentido dos sofistas do que aoinvoluntário de Proust.AV – O pensamento é, na sua obra, “espermático. Ele tem uma relação clara, nesse sentido, com a sexualidade?GD – Isso é verdade até Lógica do sentido, no qual existe ainda uma relação enunciável entresexualidade e metafísica. Depois, a sexualidade me parece, antes, uma abstração mal fundada.AV – Pode-se modelizar a sua evolução por meio de sínteses?GD – Vejo a minha evolução de forma diferente. Você conhece a “Carta a Michel Cressole”: é aí que explico minha evolução tal como a vejo.AV – O pensamento como audácia e aventura?GD – Naquilo que escrevi, creio muito nesse problema da imagem do pensamento e num pensamento liberto da imagem. É já Diferença e repetição, mas também em Proust, e ainda Mil platôs.AV – Você tem uma capacidade para encontrar, apesar de tudo e de todos, os verdadeiros problemas.GD – Se isso for verdadeiro é porque eu acredito na necessidade de construir um conceito do problema. Tentei em Diferença e repetição e gostaria de retomar essa questão. Mas praticamente isso me leva a buscar, em cada caso, como um problema pode ser colocado. É dessa maneira,parece-me, que a filosofia deve ser considerada como uma ciência: determinar as condições de um problema.AV – Há um início de rizoma Deleuze – Guattari – Foucault – Lyotard – Klossowski – etc.?GD – Isso poderia ter sido feito, mas não se fez. Na verdade, só há rizoma entre Félix e mim.AV – A conclusão de Mil platôs consiste em um modelo topológico radicalmente original em filosofia. Ele é traduzível matematicamente, biologicamente? GD – A conclusão de Mil platôs é, na minha cabeça, uma tabela de categorias (mas incompleta,insuficiente). Não à maneira de Kant, mas à maneira de Whitehead. Categoria assume, pois, um novo sentido, muito especial. Eu gostaria de trabalhar esse ponto. Você pergunta se há transposição matemática e biológica possível. É provavelmente o inverso. Sinto-me bergsoniano, quando Bergson diz que a ciência moderna não encontrou sua metafísica, a metafísica que ela necessitaria. É essa metafísica que me interessa.AV – Pode-se dizer que um amor pela vida, em sua amedrontadora complexidade, o conduz ao longo de toda a sua obra?GD – Sim. O que me desgosta, teoricamente, praticamente, é toda espécie de queixa relativamente à vida, toda cultura trágica, isto é, a neurose. Suporto muito mal as neuroses.AV – Você é um filósofo não-metafísico?GD – Não, eu me sinto um puro metafísico.AV – Um século, para você, poderá ser deleuziano, leve? Ou você é pessimista sobre a possibilidade de se livrar da identidade e do poder dos traços?GD – Não, não sou, de forma alguma, pessimista porque não creio na irreversibilidade das situações. Tomemos o estado catastrófico atual da literatura e do pensamento. Isso não me parece grave para o futuro.AV – Depois de Mil platôs?
GD – Terminei agora um livro sobre Francis Bacon e só tenho agora dois projetos: um sobre
“Pensamento e cinema” e um outro será um livro grande sobre “O que é a filosofia?” (com o
problema das categorias).AV – O mundo é duplo, macrofísico (e a imagem do pensamento aí funciona muito bem) e microfísico (é o seu modelo que, há anos, depois da mesma revolução em ciência, em arte, dá conta disso). Há uma relação polêmica entre esses dois pontos de vista?
GD – A distinção entre o macro e o micro é muito importante, mas ela pertence mais a Félix que a mim. A mim toca, antes, a distinção entre dois tipos de multiplicidade. Isso é o essencial para
mim: o fato de que um desses dois tipos remete às micromultiplicidades não passa de uma
conseqüência. A mesma coisa para o problema do pensamento, e mesmo para as ciências, a
noção de multiplicidade, tal como é introduzida por Riemann, me parece mais importante que a da microfísica.


texto de deleuze sobre os Mil platôs:Os anos passam, os livros envelhecem, ou, ao contrário, adquirem uma segunda
juventude. Ora eles se espessam e incham, ora eles modificam seus traços, acusam suas arestas,fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um determinado destino objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que um determinado livro adquiriu com o tempo no conjunto de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo o seu projeto no momento em que foi escrito.Mil platôs (1980) é a seqüência de O Anti-Édipo (1972). Mas eles têm tido, objetivamente,destinos muito diferentes. Sem dúvida, por razões de contexto: a época agitada de um, que faz ainda parte de 68, e a calma já monótona, a indiferença em que o outro surgiu. Mil platôs foi o mais mal recebido de nossos livros. Entretanto, se nós o preferimos, não é como uma mãe prefere seu filho pouco gracioso. O Anti-Édipo teve muito sucesso, mas esse sucesso se replicava em um fracasso mais profundo. Ele pretendia denunciar os estragos de Édipo, do “papai-mamãe”, na
psicanálise, na psiquiatria e mesmo na anti-psiquiatria, na crítica literária, e na imagem geral que se faz do pensamento. Nós sonhávamos em acabar com Édipo. Mas era uma tarefa demasiadamente grande para nós. A reação contra 68 deveria mostrar a que ponto o Édipo familial se portava bem e continuava a impor seu regime de lamúria pueril na psicanálise, na literatura e em todas as partes do pensamento. Ainda que o Anti-Édipo permanecesse nosso projétil. Ao passo que Mil platôs, malgrado seu fracasso aparente, nos fazia dar um passo adiante,ao menos para nós, e abordar terras desconhecidas, virgens de Édipo, que o Anti-Édipo tinha visto apenas de longe sem penetrá-las.Os três temas de O Anti-Édipo eram os seguintes:1) O inconsciente funciona como uma fábrica e não como um teatro (questão de produção e não de representação);2) O delírio, ou o romance, é histórico-mundial e não familial (deliramos as raças, as tribos,os continentes, as culturas, as posições sociais...);3) Há, precisamente, uma história universal, mas é a da contingência (como os fluxos, que
são o objeto da História, passam por códigos primitivos, por sobrecodificações despóticas e por
descodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos independentes).
O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana, era preciso tentar uma espécie de Crítica da
razão pura no nível do inconsciente. Daí a determinação de sínteses próprias ao inconsciente; o
desenrolamento da história como efetuação dessas sínteses; a denúncia do Édipo como “ilusão
inevitável”, falsificando toda produção histórica.Mil platôs reivindica, ao contrário, uma ambição pós-kantiana (ainda que decisivamente anti-hegeliana). O projeto é “construtivista”. É uma teoria das multiplicidades por si mesmas, ali onde o múltiplo passa ao estado de substantivo, enquanto que o Anti-Édipo o considerava ainda nas sínteses e sob as condições do inconsciente. Em Mil platôs, o comentário sobre o Homem dos Lobos (“um só ou vários lobos”) constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as multiplicidades extravasam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, entre o corpo e a alma. As multiplicidades são a realidade mesma, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade, assim como não remetem a nenhum sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que produzem e aparecem nas multiplicidades. As principais características das multiplicidades dizem respeito a seus elementos, que são singularidades: suas relações, que são devires, seus acontecimentos, que são hecceidades (isto é, individuações sem sujeito); seus espaços-tempos,que são espaços e tempos lisos; seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); seu plano de composição que constitui platôs (zonas de intensidade contínua);os vetores que os atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.A história universal da contingência ganha aí uma maior variedade. Em cada caso, a questão é: onde e como se faz esse reencontro? Em vez de seguir, como em O Anti-Édipo, a sucessão tradicional Selvagens-Bárbaros-Civilizados, nós nos encontramos agora diante de toda a espécies de formações coexistentes: os grupos primitivos, que operam por séries, e por avaliação do “último” termo, em um estranho marginalismo; as comunidades despóticas, que constituem, ao contrário, conjuntos submetidos a processos de centralização (aparelhos de Estado); as máquinas de guerra nômades, que não se apoderarão dos Estados sem que esses não se apropriem da máquina de guerra que eles não tinham inicialmente; os processos de subjetivação que se exercem nos aparelhos estatais e guerreiros; a efetuação da convergência entre esses processos,no capitalismo e através dos Estados correspondentes; as modalidades de uma ação revolucionária; os fatores comparados, em cada caso, do território, da terra e da desterritorialização.Os três fatores, pode-se vê-los aqui jogar livremente, isto é, esteticamente, no ritornelo. As pequenas canções territoriais, ou canto dos pássaros; o grande canto da terra, quando a terra urrou; a possante harmonia das esferas ou a voz do cosmo? É exatamente isso que este livro queria: agenciar ritornelos, lieder, correspondendo a cada platô. Porque a filosofia, também ela,não é outra coisa: da pequena canção ao mais possante dos cantos – uma espécie de sprechgesang [canção falada] cósmico. O pássaro de Minerva (para falar como Hegel) tem seus gritos e seus cantos; os princípios em filosofia são gritos, em tornos dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos.

Sunday, August 12, 2007

Daniel Innerarity 12/08/07 O horizonte conspirativo.

Muitos acontecimentos recentes parecem dar razão ao filósofo Fredric Jameson, que afirmava que sob as condições da globalização contemporânea a verdade do poder já não reside nos cenários em que ele é vivido de modo imediato (Postmodernism: The Cultural Logic of Late Capitalism, Londres, Verso, 1991). Pensemos em algumas coisas que aconteceram durante o ano que agora concluiu. A discussão mais metafísica que houve gravitava em torno da existência, ou não, de armas de destruição maciça que pudessem justificar a invasão do Iraque. Os argumentos não reconduziram as posições a nenhuma objectividade reconhecível, introduzindo-nos antes num terreno hipotético que mal fora explorado desde as discussões dos fins da Idade Média acerca do nominalismo. Quando os factos escasseavam, a discussão tornava-se barroca: do ser passava-se à possibilidade e esta era complicada com condições do terceiro grau e territórios conjuntivos. No final, a questão não era que houvesse armas, mas sim que pudesse haver armas; o facto de não serem achadas era a justificação mais forte para invadir o Iraque. É possível que as tivessem e que as destruíssem; é possível que as não tivessem mas que as tivessem tido ou desejassem tê-las. Nunca a linguagem política – habitualmente, tão simples – conjecturara de maneira tão profusa pelo espaço elucubrativo da probabilidade. Torna-se susceptível de ser invadido todo aquele que tiver armas de destruição maciça, mas também aquele cuja posse não possa ser provada, uma vez que essa prova nunca será absoluta, como acontece com todas as provas de inexistência, para cuja validade precisaríamos de uma investigação infinita. Provavelmente, o ano 2003 passará para a história como o ano da suspeita e da suposição, como a despedida absoluta de um mundo configurado por factos determinados pelos especialistas e cujas decisões são justificadas a partir de uma base objectiva.
Entramos numa cultura que é cada vez menos edificada a partir de realidades visíveis, onde a objectividade tem menos força que a suposição. Não faz muito sentido lamentar este facto, porque faz parte da complexidade social e das possibilidades configuradoras da nossa liberdade. A cultura incrementa o carácter construído das nossas instituições e abre horizontes que chegam mais além da esfera verificável do entorno imediato. A bolsa, a comunicação ou a política nem sequer podem ser compreendidas sem essa componente de simulação. O nosso contacto com as coisas acontece, quase sempre, através de simulações: é assim que a informática funciona, que um avião é pilotado ou os cálculos económicos são realizados. Os riscos, as ameaças e as possibilidades são mais reais que o imediato ou a objectividade. É este grande e inevitável artifício social que suscita uma inquietação social muito característica do nosso tempo: será tudo uma grande encenação beneficiada pela nossa dificuldade de verificar pessoalmente a veracidade daquilo que é dito ou o funcionamento daquilo que fazemos? O melhor exemplo de que essa suspeita é abrangente encontra-se na indústria do cinema, que aborda insistentemente essa fibra de desconfiança e paranóia. Pensemos na quantidade de filmes cujo tema essencial é a realidade, a questão do sonho ou do engano absoluto de que somos vítimas, a distinção entre a realidade e a ficção. O cinema tornou-se cartesiano e explora novas versões da figura do génio maligno que pretendia enganar-nos. A inquietação teórica que servia a Descartes para entreter escassas princesas transformou-se no fenómeno social de umas ameaças reconhecíveis para o grande público. Talvez seja Matrix o mais emblemático dos filmes que tentam reconduzir essa confusão no sentido do esquema elementar em que o bem é confrontado com o mal, oferecendo desta forma uma terapia de reconfortante simplificação. Um outro exemplo excelente encontra-se no filme Good Bye, Lenin. Neste caso, uma das maiores transformações sociais – o colapso do comunismo e a reunificação alemã – é apresentada como uma modificação dos cenários; se os regimes são apenas reconhecíveis a partir das imagens dos meios ou dos produtos do supermercado, como afastar a suspeita de que toda a realidade é fundamentalmente simulação e aparência?Se tivéssemos que seleccionar uma imagem para ilustrar isto, eu escolheria a retirada do Iraque por parte dos especialistas cuja missão atribuída fora a localização das armas (refiro-me à sua retirada pouco tempo antes do começo da guerra, e a sua definitiva retirada, ao que parece, que foi decidida agora mesmo). Este abandono exemplifica muito bem a substituição do especialista, isto é, daquele que administra objectividades e dados que provam, justificam, sentenciam e põem um ponto final às discussões, pelo espia e pelo simulador que, a partir deste momento, são encarregues de gerir a suspeita pondo-a em circulação para os interesses que for. Ora bem, um mundo mais ambíguo e simulador gera, também ele, as suas próprias imbecilidades. Quando a suspeição é manipulada sem habilidade acaba por produzir perplexidade e o enganador chega a enganar-se a si próprio, como acontece no referido filme alemão, onde uma pequena mentira torna-se cada vez mais complexa até produzir um jogo incontrolável. A suspeita do mal produz uns erros específicos. Grande parte daquilo que tem acontecido no Iraque parece a realização sinistra do que alguns escritores se limitaram a imaginar como uma ridícula confusão. No romance O Trabalhador, Ernst Jünger escreve que uma qualquer fábrica de perfumes pode servir para construir armas químicas. Graham Greene conta em O Nosso Agente em Havana como o serviço de inteligência britânico confunde o esquema técnico de um aspirador e o de umas armas especiais. No horizonte conspirativo um qualquer esquema pode ser entendido como uma ameaça, tal como todo o gesto é interpretado como uma ocultação face a quem está completamente dentro da suspeita. Nada significa o que parece, nada acontece casualmente. As coisas são signos crípticos que encobrem uma conspiração total. O mundo é assim duplicado numa notícia cifrada que é preciso ler a partir dos indícios da sua mera aparência. Para a mentalidade paranóica nenhuma informação é fiável, nada elimina completamente a suspeita, e isto não apenas pelo facto de se mentir ou manipular expressamente, mas porque nunca são totalmente claros os interesses que estão na base da transmissão de uma informação. O melhor relato que eu conheço encontra-se num romance de espionagem de Robert Littel, The Defection of A. J. Lewinter (Londres, Hodder and Stroughton, 1973), em que um agente soviético raciocina com a seguinte lógica: «tudo depende daquilo que os americanos quiserem que nós acreditemos. Se eles quiserem que acreditemos na sinceridade de Lewinter, então quer dizer que esta não é verdadeira. Se quiserem que nós acreditemos que ela não existe, então quererá dizer que é verdadeira. É aqui que o assunto se torna complicado. Tendo a pensar que os americanos nos dão a entender que Lewinter é sincero com a esperança de que nós interpretemos esse sinal e concluamos que o não é. Conclusão: querem que nós acreditemos que ele é um isco. Conclusão: tem de ser sincero. Está a perceber o raciocínio?» Existe alguma relação entre o facto de o nosso mundo ser cada vez mais complexo e intransparente e que as teorias da conspiração sejam cada vez mais populares, a sensação de que a realidade é uma encenação, onde nada é o que parece e tudo é manipulado por umas instâncias difíceis de identificar? O escritor Thomas Pynchon definiu a paranóia como sendo a consciência de que está tudo ligado, o que curiosamente tem uma semelhança aguda com o modo como costuma ser definida a globalização. A interpretação do capitalismo feita por Deleuze e Guattari a partir da paranóia ganha agora uma nova actualidade. O conceito de guerra preventiva, por exemplo, corresponde plenamente a este contexto de complexidade e ambiguidade. Atribuindo direitos a quem meramente se sente ameaçado, consagra-se uma absoluta subjectivização da segurança. O medo deixa de ser governado num espaço público razoável e é emancipado de qualquer objectividade. As ameaças à nossa liberdade não são irreais, mas o modo de as afrontarmos pode ser inteligente ou pouco hábil, pode suscitar interpretações mais ricas da realidade social ou servir para aumentar interessadamente a cerimónia da confusão.








A tradução da obra de Daniel Innerarity A Transformação da Política, sob a chancela da Teorema, revela-nos um pensador do fenómeno político actual com uma profundidade capaz de enfrentar e repensar temas como a globalização, as identidades, o território, o contrato social, o consenso, o enfraquecimento do Estado, entre outros segundo o que chama «uma concepção trágica do pluralismo». Que nos diz este autor sobre a natureza do político?Uma das contribuições mais importantes de Innerarity é a forma como pensamos o antagonismo nas sociedades actuais e como integramos a diferença de perspectivas morais, os particularismos e os valores compartilhados nas democracias, visto que «A política organiza a coexistência humana em condições que são sempre conflituais.» (p. 122) Das duas uma: ou aceitamos essas diferenças irredutíveis numa plataforma possível que inclua o desacordo fundamental e o compromisso provisório, ou tentamos anulá-las num plano consensual e neutro à maneira de Habermas ou Rawls.Segundo Innerarity, o que caracteriza o fenómeno político não é o consenso, os valores compartilhados, a unidade e a ausência de conflito, mas o desacordo e o pluralismo irredutível das diferenças. Isto faz com que o princípio a eleger seja o da negociação e não o da universalidade. É preciso conviver com a vulnerabilidade, aconselha. A democracia deve, assim, preconizar o fim dos absolutismos – ter a maioria não é ter razão; quem ganha agora poderá perder a seguir e deverá estar preparado para isso Com o fim dos absolutismos doutrinários, a política tanto pode servir a oportunidade como o embuste: que novas tarefas destinar afinal ao milenar exercício dos governantes da Pólis? A política é a arte da racionalidade limitada, da decisão circunstancial. «Uma teoria política deveria incluir um elogio do aperto, da necessidade feita virtude. […] Como se pode demonstrar historicamente, o acerto político deve muito à impossibilidade de fazer outra coisa.» (p. 37) Porém o primado da acção não significa rendição às leis do mercado; nesta arte de fazer o que se pode, as omissões e indecisões são tão importantes como os actos. A política já não é a objectividade tecnocrática. Como já não há um único modelo a impor, a tarefa a realizar consiste em instituir o princípio da negociação: negociar o desacordo, configurá-lo entre o insólito e a incerteza. E nesta «acção sob condições de incerteza» não podemos esperar uma previsibilidade infalível. A política é a arte do possível, eis o que convém dizer aos senhores enfatuados com posturas de profetas definitivos do porvir. O compromisso político é, pois, uma questão de interpretação não de factos (como nos disse Nietzsche), e a discussão deve integrar o conflito e a decepção. Nesse caso, optar pelo desacordo não é seguir a via da guerra mas da liberdade - «No terreno político, por exemplo, não devemos ceder à obsessão da busca de consenso, mas arranjar maneira de viver sem ele ou, pelo menos, com um consenso que costuma ser parcial, frágil e que deve poder ser revisto.» (p. 133) Todo o consenso absoluto é imposto e forçado, é totalitário. Prescindindo das hierarquias encontramo-nos numa época pós-Estado, uma sociedade complexa e policêntrica, onde uma nova cultura política se impõe a partir do conceito de deslimitação, isto é, libertar os limites do Estado territorial e cultural procurando «formas de governo mais além do Estado nacional» (p. 175). Neste aspecto, sugiro que não estejamos no fim da História mas no fim do Estado.Numa altura em que assistimos por cá a tentativas governamentais de controlo dos media e na Rússia ao desbaratamento pela força das manifestações da oposição, o livro de Daniel Innerarity revela-nos como tudo isso está na contra-corrente do que deve ser a política contemporânea. As estratégias de poder incompatíveis com a liberdade são, no fundo, maus exemplos de como encarar hoje a política.
http://www.unizar.es/innerarity/editores4.htm
"A política é um âmbito de inovação, e não só de gestão. E a capacidade criadora tem estreitas relações com a invenção de uma linguagem apropriada para tratar o novo. Poderíamos encontrar aqui um novo eixo para delimitar a esquerda da direita, um indicativo para distinguir o progresso da tradição. O que é inovador é a capacidade de descobrir, nomear e enfrentar problemas; conservadora seria a segurança indiscutível, que oculta a dificuldade e dissimula as perple-xidades. E avançada a política que acolhe as interrogações incómodas que a preguiça mental evita com receio de ter de questionar os seus cómodos esquemas, as suas práticas habituais e a sua falta de atenção às coisas que se movem. A verdadeira demarcação política é a que distingue os que só encontram motivos para confirmar o que já sabiam daqueles que são capazes de incerteza. As novas situações lembram à política que, perante cada reforma, terá de formular uma interrogação: está na presença de problemas que pode, simplesmente, resolver ou de transformações históricas que exigem uma nova maneira de pensar? A inovação procede sempre de alguém ter querido saber se o que até então era dado por válido se ajustava às novas realidades. Quem for capaz de conceber a mudança como oportunidade verá como a erosão de alguns conceitos tradicionais, da sua rigidez e estreiteza, torna de novo possível a política.A política consiste, fundamentalmente, em formar uma ideia do conjunto e compatibilizar na medida do possível os elementos que estão em jogo. Para isso, é necessário dispor de uma visão geral (ou imaginá-la, actuando um pouco às cegas, por tentativas, e assumindo riscos, como habitualmente acontece). "Daniel Innerarityem "A Transformação da Política".
Sumário : Pensar a ordem e a desordem: uma poética da excepção, de Daniel Innerarity; Da consciência quântica aos mundos paralelos tecnoxamânicos, entrevista a Roy Ascott por João Urbano e Gonçalo Furtado; Nova tecnologias, velhas ideias: Notas para uma genealogia da arte computacional, de André Favillao; Livro Porético, de Silva Carvalho; Desaparecimento, Falha e Êxodo, entrevista a João Tabarra por João Maria Gusmão e João Urbano; A Biotecnologia como Medialidade - Estratégias da Media Art Orgânica, de Jens Hauser; Da Programação do Inconsciente às Tecnologias Estéticas, entrevista a Hugo Liu por Paulo Urbano; Decon: Desconstrução, Descontaminação, Decomposição, de Marta de Menezes; Três Filmes Cerebrais para Gilles Deleuze, de Susana Viegas; A Tempestade, de João Urbano; Our machines/ our selfs. Corpos fragmentados e domesticados na reprodução assistida, de Martha Ramirêz-Gálvez





Wednesday, August 08, 2007

Da Realidade Virtual à Virtualização da Realidade texto de Slavoj Zizek 08/08/07

http://www.youtube.com/watch?v=VjalleKyGps
http://www.youtube.com/watch?v=7vGKD7Ftyts
Como podemos abordar “realidade virtual” sob a perspectiva psicanalítica? Tomemos como nosso ponto de partida o sonho mais famoso de Freud, aquele da injeção de Irma; a primeira parte do sonho, o diálogo de Freud com Irma, esse exemplar caso de dualidade, relacionamento especulativo, culmina em um olhar para dentro de sua boca aberta: Há uma descoberta horrenda aqui, aquela da carne que nunca se vê, a fundação das coisas, o outro lado da cabeça, da face, as glândulas secretórias por excelência, a carne pela qual todas as coisas exalam, no grande centro do mistério, a carne em que muitos estão sofrendo, estã o sem forma, na qual muito dessa forma, nela mesma, é algo que provoca ansiedade. Espectro de ansiedade, identificação de ansiedade, a sua revelação final é isso - Você é isso, o que é muito distante de você, isso que é a falta de forma fundamental.De repente, esse horror muda milagrosamente em um “tipo de ataraxia” definido precisamente por Lacan como “a entrada em uma operação de função simbólica”exemplificado pela produção da fórmula da trimetilamina, o tema flutua livremente em uma felicidade simbólica. A armadilha a ser evitada aqui, é claro, é contrastar essa felicidade simbólica com “realidade dura”. A tese fundamental da psicanálise lacaniana é, ao contrário, aquela na qual dizemos que “realidade” constitui-se ela mesma contrária a um segundo plano de semelhante felicidade; isto é, de semelhante exclusão de algum Real traumático (exemplificada aqui por uma garganta de mulher). Isto é precisamente o que Lacan tem em mente quando fala que a fantasia é o suporte fundamental da realidade: a “realidade” estabiliza-se ela mesma quando algum quadro da fantasia de uma “felicidade simbólica” exclui o ponto de vista para dentro do abismo do Real. Longe de ser uma espécie de fragmento de nossos sonhos que nos previne de "ver a realidade como ela efetivamente é”, a fantasia é constituída daquilo que chamamos realidade: a “realidade” física mais comum é constituída via um desvio através do labirinto da imaginação. Em outras palavras, o preço que pagamos pelo nosso acesso à “realidade” é que certas coisas - a realidade do trauma - precisam ser "reprimidas”.O que atinge você aqui é o paralelo entre o sonho da injeção de Irma e outro famoso sonho freudiano, aquele do filho morto que aparece para seu pai e se dirige a ele repreendendo-o, "Pai, você não pode ver que estou pegando fogo?" Em sua interpretação do sonho da injeção de Irma, Lacan chama nossa atenção para a observação adequada de Eric Ericson que depois de olhar para dentro da garganta de Irma, depois de seu encontro com o Real, Freud deveria ter acordado como o sonhador do sonho em que o filho pega fogo que acorda quando encontra essa aparição horrorizante: quando confrontado com o Real em todo esse horror insuportável, o sonhador acorda; isto é, escapa para a "realidade". Pode-se tirar uma conclusão radical desse paralelo entre os dois sonhos: aquilo que chamamos “realidade” é constituído exatamente sobre o modelo de “felicidade simbólica” desprovida de inteligência que permite Freud a continuar a dormir depois do olhar horrorizante dentro da garganta de Irma. O sonhador anônimo que acorda para a realidade para evitar o Real traumático do filho pegando fogo que o repreende procede no mesmo caminho de Freud que, depois de olhar para a garganta de Irma, “troca o registro”, isto é, escapa para dentro da fantasia que esconde o Real. O que isso tem a ver com o computador? No início de 1954 Lacan indicou que no mundo de hoje, o mundo próprio da máquina, o caso paradigmático para a “felicidade simbólica” é o computador,como se pode apurar quando se decreta uma espécie de investigação fenomenológica, deixando de lado questões (tecnológicas) de como o computador trabalha, e limitando-se a esse impacto simbólico, para o qual o computador inscreve-se ele mesmo dentro do nosso universo simbólico.Em outras palavras, deve-se conceber o computador como uma machine à penser (uma máquina pensante) no mesmo sentido em que Levi-Strauss fala sobre comida como um objet à penser (para pensar sobre) e não apenas um objet à manger (para comer); por causa dessa “incompreensibilidade”, sua natureza quase estranha, o computador é um "objeto provocador”,um objeto que, além de sua função instrumental, cria toda uma série de questões básicas sobre a especificidade do pensamento humano, sobre as diferenças entre o animado e o inanimado, etc. - não espanta que a metáfora do computador seja reproduzida em campos variados e realizada em âmbito universal (nós “programamos” nossas atividades; nos livramos dos impasses via “debugging”, etc.). O computador é o terceiro, novo estágio no esquema de desenvolvimento de Marx, que vai da ferramenta (uma extensão do corpo humano) à máquina (que trabalha automaticamente e impõe seu ritmo ao homem). Por um lado, ele é como uma ferramenta porque não trabalha automaticamente, o homem provê o ritmo, etc.; por outro lado, ele é mais independentemente ativo do que uma máquina, visto que trabalha como um parceiro em um diálogo no qual gera questões por si próprio, etc. Em contraste com uma máquina mecânica, suas ações internas são “não transparentes”, stricto sensu irrepresentável (nós podemos “ilustrar" seu trabalho, como com uma embreagem ou uma caixa de câmbio), e ele opera com base em um diálogo com o usuário; por essa razão, ele desencadeia no usuário-objeto uma divisão do tipo “Eu sei, mas no entanto”... É claro, nós sabemos que ele é “inanimado”, é apenas uma máquina; no entanto, na prática nós agimos para com ele como se ele estivesse vivendo e pensando...Como, então, se pode “pensar um computador” além de seu uso instrumental? Um computador não é inequívoco em seu efeito sócio-simbólico mas opera como uma espécie de “teste projetivo”, uma tela de fantasia na qual é projetado o campo das variadas relações sociais. Duas das principais reações são a "Orwelliana" (o computador como encarnação do Grande Irmão, um exemplo do controle centralizado do totalitarismo) e a "anarquista”, na qual, em contraste, vê-se no computador a possibilidade para uma nova sociedade autogerenciada, “uma cooperativa do conhecimento” a qual vai permitir qualquer pessoa controlar "de baixo”, e, deste modo, fazer a vida social transparente e controlável. O eixo comum desse contraste é o computador como um significado de controle e domínio, exceto que em um caso ele é controlado “de cima” e no outro “de baixo”; no nível do impacto individual, essa experiência do computador com um meio de domínio e controle (o universo do computador como um universo transparente, organizado e controlado em contraste com a vida social “irracional”) é oposta pela surpresa e pela mágica: quando produzimos com sucesso um efeito complicado com programas de significados simples, isso cria no observador - quem, é claro, na análise final é idêntico ao usuário - a impressão de que o efeito realizado é fora da proporção para os significados modestos, a impressão de um hiato entre significados e efeito. É de particular interesse como no nível da autoprogramação essa oposição repete a diferença homem/mulher na forma da diferença entre programação "dura" (obsessiva) e "suave" (histérica) - o primeiro visa o controle e domínio completo, transparência, desmembramento analítico do todo em partes; o segundo procede intuitivamente: ele improvisa, trabalha com provas e deste modo descobre o novo, o que leva o resultado por si só a “impressionar”, suas relações para com o objeto são mais do que de “diálogo”. O computador trabalha mais efetivamente, é claro, como um "objeto provocador" na questão da “inteligência artificial” - aqui, uma inversão já tomou o lugar que é destino de qualquer metáfora bem-sucedida: uma primeira tentativa de simular o pensamento humano mais remotamente possível com o computador, trazendo o modelo o mais perto possível ao humano “original”, até certo ponto significa o contrário e isso cria as questões: e se esse “modelo” já é um modelo do “original” ele mesmo, e se a inteligência humana ela mesma opera como um computador, é “programado”, etc? O computador cria, na forma pura, a questão da aparência, um discurso que não pode ser um simulacro: é claro que o computador em alguns sentidos apenas “simula” o pensamento; como a simulação total do pensamento se difere do pensamento "real" ? Não é de estranhar, então, que o espectro da inteligência artificial convoca o paradoxo da proibição do incesto - a "inteligência artificial” aparece como uma entidade que é simultaneamente proibida e considerada impossível: afirma-se que não é possível uma máquina pensar, ao mesmo tempo ocupa-se de proibir pesquisas nessa direção, com o pretexto de que é perigoso, eticamente dúbio e assim por diante.
A objeção usual contra a “inteligência artificial” é aquela que em uma análise final, o computador é apenas “programado”, que ele não pode em sentido real “entender”, enquanto atividades humanas são espontâneas e criativas. A primeira resposta dos advogados da “inteligência artificial”: não são criatividade humana, “espontaneidade”, “imprevisibilidade”, etc., uma aparência que é criada pelas atividades simultâneas de um número de programas? Então, o caminho para a “inteligência artificial" leva à construção de um sistema com múltiplos processadores... Mas a resposta principal dos advogados da "inteligência artificial" é acima de tudo que o computador está longe de obedecer a uma simples lógica linear-mecânica: essa lógica segue a lógica da auto-referência de Gödel, funções recursivas, paradoxos, onde o todo é sua própria parte, auto-aplicável. A idéia do computador como uma máquina fechada, consistente e linear é um conceito mecânico, da era pré-computador: o computador é uma máquina inconsistente a qual, pega em uma cilada de auto-referência, nunca pode ser totalizada. Aqui os proponentes da cultura do computador procuram o elo entre ciência e arte: na essência, não apenas empírica, não totalidade e inconsistência do computador - não é dessa maneira a atividade auto-reflexiva do computador homóloga à composição de Bach que constantemente toma o mesmo tema?Essas idéias formam a base da subcultura hacker. Os hackers operam um círculo de iniciações que exclui eles mesmos da "normalidade” do dia-a-dia para dedicarem-se à programação como um final nela mesma. Seus inimigos são o uso "normal”, burocrático, instrumental, consistente, totalizador do computador, o qual não leva em conta sua “dimensão aestética”. Suas "significações-mestre”, seus manás, o objetivo, truque do hacker é quando se consegue quebrar o sistema (por exemplo, quando se entra em um circuito de informações protegido, fechado). O hacker, conseqüentemente, ataca o sistema em seu ponto de inconsistência - hackear significa saber como explorar a falha, o sintoma do sistema. O alcance metafórico universalizado do hacker corresponde exatamente a essa dimensão: então, por exemplo, na subcultura hacker, o teorema de Gödel é entendido como o “Gödel's hack”, que subverteu a lógica totalitária do sistema Russell-Whitehead...
Ainda em contraste a essa busca pelo ponto de inconsistência do sistema, a aestética hacker é a aestética de um “universo regulado”. É um universo que exclui a intersubjetividade, uma relação com o outro como tema: apesar de todo o perigo, tensão, espanto que sentimos quando imergimos em um vídeo game, há uma diferença básica entre essa tensão e a tensão em nossa relação com o "mundo real" - uma diferença que não é a que o mundo gerado pelo vídeo é “somente um jogo”, uma simulação; o ponto é mais precisamente que em tais jogos, mesmo se o computador trapaceia, ele trapaceia de forma constante - o problema é apenas uma maneira de quebrar as regras que governam essas atividades. Então, para os hackers, o trabalho com o computador é "simples": o ataque é claro, as regras são colocadas em condição inferior, embora seja necessário descobri-las, nada inconsistente pode interferir neles como na “vida real”.
Nisso consiste o elo do mundo do computador com o universo da ficção científica: concebemos um mundo no qual tudo é possível, podemos arranjar as regras arbitrariamente, a única coisa predeterminada é que aquelas regras devem então ser aplicadas; isto é, aquele mundo precisa ser consistente nele mesmo. Ou, como Sherry Turkly colocou: tudo é possível, ainda que nada é contingente - o que é em conseqüência excluído, é precisamente o real. Essa realidade, a realidade do outro que é excluída aqui é, evidentemente, a mulher: o outro inconsistente por excelência. O computador como um parceiro é o significado pelo qual deixamos escapar a impossibilidade da relação sexual: uma relação com o computador é possível. Das Unheimliche (a lugubridade) do computador é exatamente a que ele é uma máquina, um outro consistente, caminhando na posição estrutural de um parceiro intersubjetivo, o computador é um "parceiro não-humano" (como Lacan fala da senhora em amor elegante). Pode-se inclusive explicar a partir disso o sentimento de algo não-natural, obsceno, quase terrível quando vemos crianças falando com um computador e obcecadas com um jogo, esquecidas de tudo à sua volta: com o computador, a infância perde sua aparência de inocência.Como então resolver a discrepância entre o universo do computador como um “universo regulado” consistente e o fato de que o hacker tenta pegar o sistema precisamente no ponto de sua inconsistência? A solução é elementar, quase evidente. Nós simplesmente temos que fazer distinção entre dois níveis, dois modos de inconsistência ou auto-referência: a descoberta hacker do ponto de não consistência, o ponto onde o sistema é pego em uma armadilha de sua própria auto-referencialidade e começa a entrar em um círculo, sempre deixa intocadas algumas consistências básicas do “universo regulado” - a auto-referência a que o hacker chega é, se podemos colocar desse modo, uma auto-referência consistente. A diferença entre os dois níveis de auto-referência com os quais estamos preocupados está contida na distinção de Hegel entre infinidade “ruim” e “correta” - a auto-referencialidade do computador fica no nível da infinidade “ruim”. Podemos esclarecer essa distinção com dois paradoxos diferentes de auto-referência que são ambos desenvolvidos ao longo do mesmo objeto, um mapa da Inglaterra.Primeiro havia um mapa preciso da Inglaterra, no qual estavam marcados todos os objetos na Inglaterra, incluindo o próprio mapa, em escala diminuída, no qual precisava-se marcar novamente o mapa, etc., na infinidade ruim. Esse tipo de auto-referência (a qual é especialmente familiar hoje na forma das imagens da televisão que são refletidas pela televisão) é um exemplo da infinidade ruim de Hegel; a vertigem causada por esse círculo vicioso é de longe removida da infinidade “adequada” a qual é somente aproximada pela outra versão do paradoxo, que encontramos - onde mais - em Lewis Carroll : os ingleses decidiram fazer um mapa exato de seu país, mas eles nunca foram completamente bem sucedidos nessa tentativa. O mapa ficaria cada vez maior e mais complicado, inclusive alguém propôs que a Inglaterra em si pode ser usada como seu próprio mapa - e essa proposta ainda funciona bem hoje... Essa é a “infinidade correta” de Hegel: a terra é seu próprio mapa, seu próprio outro - o vôo para dentro da infinidade ruim não pode trazer para um fim quando alcançamos o elo final intangível na corrente mas nós podemos reconhecer ao invés, que o primeiro elo é seu próprio outro. De lá podemos inclusive derivar a posição do objeto (no sentido do objeto do significado): se a terra é seu próprio mapa, se o original é seu próprio modelo, se a coisa é seu próprio signo, então não há positivo, verdadeira diferença entre eles, embora deva haver alguns espaços em branco que distinguem a coisa dela mesmo como seu próprio signo, alguma nulidade, que produz da coisa seu signo - aquela "nulidade”, aquela diferença “correta”, é o objeto... Aqui temos a diferença entre a ordem do signo e a ordem do significado: do signo podemos obter o significado incluindo na corrente dos signos “ao menos um” signo que não é simplesmente removido da coisa designada, mas marca o ponto onde a coisa designada começa seu próprio signo. A auto-referencialidade do computador fica no nível da infinidade “ruim” na qual não pode alcançar nenhuma posição de retorno quando começa a mudar em seu próprio outro. E talvez poderíamos procurar nisso - além de qualquer tipo de obscuridade - o argumento para a reivindicação de que “o computador não pensa”.A razão pela qual o computador “não pensa” deste modo sustenta a lógica mencionada acima da metáfora reversa onde, em vez de ter o computador como um modelo para o cérebro humano, nós concebemos o cérebro em si mesmo como “um computador feito de carne e sangue”; onde, em vez de definir o robô como um homem artificial, concebemos o homem adequado como um “robô natural”, uma reversão que poderia ser mais distantemente exemplificada em um caso crucial a partir do domínio da sexualidade. Considera-se usualmente a masturbação como um ato sexual imaginário, isto é, um ato onde o contato corporal com um parceiro é apenas imaginado; não seria possível reverter os termos e pensar no próprio ato sexual, o ato com um parceiro real, como uma forma de “masturbação com um parceiro real (ao invés de apenas imaginado)”? O ponto integral da insistência de Lacan na “impossibilidade de uma relação sexual” é essa, precisamente, é o que o ato sexual “real” é (deixe-nos apenas lembrar sua definição de prazer fálico como essencialmente masturbatório)! E, como já vimos, essa referência à sexualidade está longe de ser uma simples analogia: o Real cuja exclusão é constitutiva do que chamamos “realidade”, virtual ou não, é fundamentalmente aquele da mulher. Nosso ponto é, dessa maneira, muito elementar: é verdade que a “realidade virtual” gerada pelo computador é um simulacro; ela se aproxima do Real precisamente da mesma forma que, no sonho da injeção de Irma, o Real é excluído pela entrada do sonhador dentro da felicidade simbólica - ainda que experenciemos como a “verdade, dureza, realidade externa” são baseadas exatamente sobre a mesma exclusão. A lição básica da realidade virtual é a virtualização da verdadeira realidade. Através da miragem da "realidade virtual”, a realidade "verdadeira" ela mesma é posicionada como um simulacro dela mesma, como uma simples construção simbólica. O fato de que "o computador não pode pensar" significa que o preço para nosso acesso à "realidade" é também que algumas coisas devem permanecer impensadas.