*(LITERATURA CLANDESTINA REVOLUCIONÁRIA)*MICHEL FOUCAULT LIBERTE-ME.

VC LEU MICHEL FOUCAULT,NÃO?ENTÃO O QUE VC ESTÁ ESPERANDO FILHO DA PUTA?ELE É A CHAVE DA EVOLUÇÃO DOS HUMANOS.HISTORIA DA LOUCURA,NASCIMENTO DA CLINICA,AS PALAVRAS E AS COISAS,ARQUEOLOGIA DO SABER,A ORDEM DO DISCURSO,EU PIERRE RIVIÉRE,A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS,VIGIAR E PUNIR,HISTORIA DA SEXUALIDADE,EM DEFESA DA SOCIEDADE,OS ANORMAIS...EVOLUÇÃO OU MORTE!

Monday, December 31, 2007

Recrutar crianças: o preço da reforma no exército birmanês 31/12/07

A natureza do monstro
http://resistir.info/varios/bowles_30nov07.html
http://www.irrawaddy.org/article.php?art_id=9750
Quando San Lin Aung, de 15 anos de idade, estava à espera do comboio, na estação ferroviária de Pyinmana, para ir para casa, um sargento do exército abordou-o e pediu-lhe um documento de identificação. Como o rapaz não o tinha, o militar mandou-o para um centro de recrutamento do exército em Mingalardon, nos arredores de Rangum. O oficial encarregado do centro recusou-se a alistá-lo, mas outro centro em Mandalay aceitou-o sem fazer perguntas.Segundo os relatórios, no final de Abril, dois rapazes de 14 anos, Kyaw Min Thu de Dagon Sul, e um jovem de Okkalapa Norte, também foram recrutados à força para o exército. “As crianças foram ameaçadas por recrutadores do exército que lhes disseram que se não se alistassem seriam mandadas para a prisão” – disse um familiar de uma das crianças-soldados.Actualmente, segundo o funcionário da Organização Internacional do Trabalho em Rangum, Stephen Marshall, estão a ser investigadas por esta organização onze queixas de recrutamento forçado de crianças-soldados. “Quando a investigação termina, o Governo tem o dever de me informar sobre os resultados da sua investigação e a da decisão que tomou” – disse Marshall ao The Irrawaddy.Estima-se que cerca de 70 mil crianças-soldados estão a servir em 727 batalhões da infantaria do exército birmanês. Muitas delas são vítimas de uma prática que permite aos soldados veteranos “comprar” a sua dispensa recrutando sangue novo para o exército.Nyunt Hlaing (nome fictício) é um oficial de 48 anos que está no exército birmanês há 25 anos. Ele quer reformar-se, mas foi-lhe dito que tinha de recrutar pelo menos cinco jovens para o substituir, sem olhar à sua idade, ou pagar cerca de 600,000 kyat (460 dólares americanos) a um centro de recrutamento.Uma fonte próxima do Centro de Recrutamento N.º 1 de Danyingon, Mingalardon, confirmou que os militares que se querem reformar depois de servir mais de 20 anos no exército têm primeiro que alistar novos recrutas. Os recrutadores do exército procuram jovens candidatos em estacões ferroviárias e de autocarros, mercados e lugares públicos. Segundo uma fonte: “os recrutadores do exército forçam as crianças a assinar uma carta a confirmar que querem entrar para o exército de sua própria vontade e a prometer ficar no exército durante pelo menos 5 anos.”

Por que é difícil esquecer 68? 31/12/07 por Antonio Negri

A imagem atual das rebeliões de 30 anos atrás esconde ferida não cicatrizada:
http://br.youtube.com/watch?v=pcV42gFmi4w

Celebra-se neste ano o 30º aniversário do movimento de 68. O Estado italiano descobriu uma maneira totalmente paradoxal para comemorar a ocorrência: os dois líderes dos movimentos mais importantes daqueles anos (Sofri, de Lotta Continua, e este articulista, de Potere Operaio) passarão o ano todo no cárcere. E as condenações são salgadas: Sofri terá o seu "fim de pena" em 2010, eu em 2005. Claro, de algum modo seremos libertados antes disso — ao menos espero. Resta o fato desta estranha coincidência, evidente demonstração de que, ao menos no que concerne à Itália, aquela temporada não terminou.Todavia, se há um estribilho que ecoa incansável na mídia, não apenas nos outros países europeus, mas também na Itália, é que 68 terminou, é irreproduzível, antigo. Certamente há coisas do 68 que devem ser recordadas, como a mudança na maneira de se vestir (da minissaia aos jeans), a renova ção da música, uma certa renovação das estruturas de ensino, a liberação da mulher (amiúde reduzida à difusão da pílula), a difusão das drogas leves (que se podia fumar sem tragar, dizem Clinton e Blair) e um certo antiautoritarismo libertário, tão simpático... Mas, em suma, só isso.


Que 68 também foi a redescoberta da luta de classe por parte das gerações mais novas e que a década de 1965 a 1975 foi percorrida por uma onda de lutas anticolonialistas e antiimperialistas, que neste período — de Los Angeles a Praga — a revolta esteve na ordem do dia, bem, isto é tudo o que não deve ser lembrado. E as camisetas ou os bonés com o "X" de Malcomou com o retrato do Che até podem ser objetos meio banais, um tanto inconsequentemente impetuosos, mas inofensivos para as novas gerações, entregues ao esquecimento.A mim, o esquecimento não é permitido, devido à incômoda situação em que me encontro. Ainda assim, procurando não me deixar envolver por esta situação, pergunto-me se aquelas reevocações superficiais e essas reticências profundas, se aquela pressão para o esquecimento enquanto se finge a comemoração, não estariam escondendo (na atual historiografia filtrada pela mídia) algo de mais doloroso, como se 68 tivesse representado, para as classes dirigentes, um medo enorme, talvez uma ferida profunda que ainda não cicatrizou. E, prosseguindo neste questionamento, vou me convencendo aos poucos que a minha suspeita descobre uma verdade.O que dizer então para desvelar aquela falsa imagem de 68 e para desmascarar a pérfida rejeição a toda possível consequência atual? O que dizer, o mais friamente possível, "sine ira et studio", quase colocando-se no ponto de vista do poder? Que há alguns elementos irreversíveis determinados por 68, alguns sinais que marcaram definitivamente a história futura. Vamos recordar ao menos dois: um social, o outro político, aliás, estritamente interligados.

O evento social que marca 68 é o fim de um modelo de desenvolvimento e de acúmulo capitalista — isto é, daquele modelo que, organizado nos velhos Estados-nações da segunda metade do século 19, visava a concentração das forças sociais da produção (essencialmente o "big labor" e o "big business"), prometendo uma redistribuição progressiva dos frutos do desenvolvimento. Este modelo, que passou por guerras desastrosas, fora enfim codificado na hegemonia imperial americana, que se impusera a partir do New Deal e se difundira mundialmente após a Segunda Grande Guerra.
Ora, 68 impele ao limite a sustentabilidade deste modelo secular, por mais que este tivesse sido aperfeiçoado pelos "reformismos" convergentes do "big labor" e do "big business" e sustentado, de modo cada vez mais imponente, pelo Estado. Por quê? Porque o nível da demanda social dos trabalhadores, e sobretudo o de seus filhos, geralmente já aculturados, rompe os equilíbrios políticos da reprodução capitalista. Os estudantes que se revoltam, já não são os "filhinhos de papai" das velhas burguesias dominantes, já se tratava das camadas de um novo proletariado. Eles são a antecipação da nova força-trabalho imaterial, fortemente intelectualizada, que, nos 30 anos que se seguiram, observamos se impondo na produção.Se 68 foi um movimento dos filhos contra os pais, certamente não foi um movimento romântico; registrava socialmente e antecipava politicamente um novo regime da produção. E esses estudantes, fortalecidos por uma possível hegemonia, não tardam, nos países europeus, a arrastar consigo, no rompimento do sistema, o proletariado urbano das fábricas; nos países americanos, onde as linhas de classe e de cor se entrelaçam profundamente, a revolta instaura-se na dimensão cultural das metrópoles. Eis então um primeiro paradoxo político deste movimento, eis o motivo por que aindafere.
O movimento de 68 é um movimento precursor, cuja força de renovação não se esgotou, e que revela um novo protagonista do processo de liberação da exploração, um protagonista intelectual, porque é assim que o trabalho se tornou — ou seja, tira do empreendimento capitalista a possibilidade (que fora o fundamento da autoridade nos séculos passados) de opor o trabalho intelectual ao manual, de enobrecer o comando por meio do saber.Deriva daí um segundo paradoxo. Se, por um lado, de fato 68 contesta a organização capitalista da sociedade e do trabalho, por outro lado decreta o fim do "ocialismo real", destrói a centralidade político-social do movimento operário tradicional, denuncia no socialismo real o modernizador do capital. Isto não é quanto basta para provocar uma crise de nervos, nas certezas de ontem e na aleatoriedade do hoje, à casta dos poderosos, de direita ou de esquerda? É sim, porque 68 foi e é percebido como o indicador de uma verdadeira "revolução de época": marca o fim do moderno — das relações de força sociais e políticas, das ideologias, das esperanças e das ilusões, da riqueza e da miséria, que eram próprios do moderno. O que acontece depois, nós chamamos de pós-moderno. Claro, 68 não conseguiu indicar uma forma política, que não a da insurreição, para a organização do novo: mas quem poderia pedir isso? Marcou um ponto irreversível na história do desejo de liberação das multidões; e, se foi uma revolução política falhada, é uma revolução ontológica bem-sucedida. Inumeráveis são os eventos constituintes que seguiram 68, as névoas matinais estão rareando. Como não esperar a configuração de um novo poder constituinte? Como, ao contrário, pretender que, da mídia ao poder, não seja tão constrangedor lembrar, ou mesmo, hipocritamente comemorar o movimento de 68?


Tuesday, December 25, 2007

Como salvar a imprensa de qualidade? 25/12/07 por Jürgen Habermas

http://br.youtube.com/watch?v=pW65n-KdirE
Há três semanas o caderno de negóciosdojornal Die Zeit assustou os leitores com a seguinte manchete:"Irá o quarto poder a leilão?".O artigo foi inspirado pelas notícias alarmantes de que o Süddeutsche Zeitung vai por esse caminho, visto que a maioria de seus acionistas querem vender suas ações.Se viesse a ser vendido, um dos dois melhores jornais nacionais da República Federalpoderia cair nas mãos de investidores financeiros,empresas de marca registrada ou gigantes da mídia. Alguns vão dizer: é só mais um negócio, o que há de tão terrível em acionistas fazerem uso de seu direito de vender suas ações, por qualquer razão que seja?Como outros jornais, o Süddeutsche Zeitung tem superado a crise motivada pelo colapso do mercado publicitário, no começo de 2002. As famílias que agora desejam vender –e as que têm mais de 62.5%das ações –escolheram um momento propício.Lucros têm aumentado apesar da competição digital e da mudança de hábito dos leitores. Exceto pelo momento favorável da economia, isso pode ser principalmente atribuído a medidas racionalizadoras que afetam níveis de performance e a liberdade das editorias. As novas do setor norte-americano de jornais confirmam essa moda.OBoston Globe, por exemplo, um dos poucos jornais de esquerda do País, teve que abrir mãode todos os seus The Washington Post e The New York correspondentes estrangeiros. Os navios de guerrada imprensa nacional como temem o controlepor companhias ou fundos que procuram moldaras demandas da mídia comidéias insensatas TimesThe Los Angeles Times, odomínio já está em andamento.de lucro. E noEntão,na semana passada o Die Zeit publicou um segundo artigo sobre a “batalha dos gestores financeiros de Wall Street versos a imprensa americana." O que se esconde em tais manchetes? Claramente o medo de que o mercado no qual os jornais nacionais devem competir hojeirão falhar em fazer justiça às duas funções gêmeas que a imprensa de qualidade tem realizado até agora: satisfazer a demanda por informação e educaçãoenquanto asseguralucros adequados.

Mas não serão os altos lucros uma confirmação de que jornais moldados por negócios melhor satisfazem os desejos de seus leitores? Será que termos vagos como “profissional", "exigente" e "sério" simplesmente não camuflam uma atitude paternalista em direção aos consumidores que sabem perfeitamente bem o que querem? Sob a pretensão de"qualidade", deveria a imprensa ser permitida a circunscrever a liberdade de escolha de seus leitores? Deveria ela ser autorizada a impor a eles reportagens duras ao invés de informação e entretenimento, comentário factual e argumentos complexosao invés de histórias mais acessíveis sobre pessoas e eventos?No fundo da objeção implícita nessas questões está a controversa suposição de que fregueses escolhem de forma independente de acordo com suas preferências. Esse antiquadopedaço de sabedoria de livro escolar é certamente ilusório, considerandoo caráter especial da mercadoria"comunicação cultural e política." Porque essa mercadoria também testa e transforma as preferências de seus consumidores.Leitores, ouvintes e telespectadores são certamente direcionados por várias preferências ao usar a mídia. Eles querem ser entretidos ou distraídos, eles querem ser informados sobre certos tópicos e eventos ou participar de discussões públicas. Mas, assim que eles entram em contato com programas culturais ou políticos, por exemplo ao ler um jornal diário, “oração realista da manhã” de Hegel,eles se expõem ao que é numa maneira de dizer um processo auto paternalista de aprendizagem com um resultado indeterminado.Durante a leitura, novas preferências, convicções e orientações de valores podem ser formados. A meta-preferência que guia tal leitura é orientada sobreas vantagens expressas na auto-imagem profissional do jornalismo independente e que fundamenta a reputação da imprensa de qualidade.Um slogan bastante difundido no tempo da introdução da TVnos EUAcaracteriza a disputa acima do caráter especial das mercadorias de educação e informação: a TV, é o que disseram, é apenas "uma torradeiracom imagens".Isso
significavaque a produção e consumodos programas de televisãopoderiam confiavelmenteser deixados para o mercado. Desde então, empresas de mídia têm produzido programas e vendido a atenção de suas audiências aos publicitários.Este princípio organizacional tem causado estrago à safra política e culturalonde quer que tenha sido introduzido sistematicamente. O sistema germânico dual de televisão é uma tentativa de limitar esse estrago. As leis de mídia dos estados germânicos, as decisõesrelevantes da Corte Constitucional Federal eos guias de programação das emissoras públicasrefletem a idéia de que meios de comunicação de massa eletrônicosnão deveriam apenas satisfazer as necessidades mais comerciais dos clientes por entretenimento e distração.Audiências de rádio e televisão não são apenas consumidores, isto é,participantes do mercado, mas também cidadãos com direito a participar da cultura, observar eventos políticos e formar sua própria opinião. Na base desses direitos, programas que asseguram parte da “cesta básica" da população não podem ser dependentes da eficácia de seus anunciantes ou patrocinadores.Ao mesmo tempo, as verbas politicamente determinadas que financiamessa refeição básica também são independentes das situações orçamentárias dos estados, isto é,dosaltos e baixos da economia. Esse argumento está corretamentesendo usado pelas corporações de transmissão nos procedimentos entre elas e os governos de estado agora pendentesna Corte Constitucional Alemã.Agora estatutos públicos legais podem ser muito bons para a mídia eletrônica. Mas pode isso ser um exemplo de comoSüddeutsche Zeitung ou Frankfurter Allgemeine Zeitung, Die Zeit ou the Spiegel –talvez jornais e revistas sérios comoaté mesmo para as revistas mensais de qualidade–são organizados?
Estudos feitospor cientistas da comunicação são interessantes aqui. Ao menos na área de comunicação política–isto é para o leitor como cidadão–a imprensa de qualidade atua no papel de “mídia líder”.Em sua reportagem política e comentários, rádio, televisão e outros jornais são largamente subsidiados sobre tópicos e histórias adiantadas pelos jornais “argumentativos".Digamos que alguns desses jornais venham a sofrer pressão dos investidores financeiros que estão na expectativa de ganhar um dinheiro rápido e o planejam insensatamente em intervalos curtos de tempo. Quando reorganização e redução de despesas nessa área centralameaçam habituais padrões jornalísticos, atinge em cheio a esfera públicapolítica.Porque sem o fluxo de informação ganho por meio de extensa pesquisae sem o estímulo de argumentos baseados numa perícia que não custa barato, a comunicação pública perde a vitalidade de seu discurso. A mídia pública poderia então acabar de resistir às tendências populistas e poderia não mais realizar a função que deveria no contexto de um estado democrático constitucional.Nós vivemos em sociedades pluralistas. O processo de escolha democrática só pode superar profundas diferenças filosóficas enquanto se desenvolve um forte e legítimo vínculo. Isso deve ser convincente para todos os cidadãos e combinar inclusão, que é a participação igual de todos os cidadãos, com uma mais ou menos atmosfera discursiva de conflito de opinião.Nós chegamos a conclusão de que no final das contas, o procedimento democrático vai ter mais ou menos resultados razoáveis. Mas essa conclusão é fundamentada por sua vez por conflitos deliberativos. O formador de opinião democrático tem uma dimensão epistêmica porque ele é ao mesmo tempo envolvido com a crítica de falsas alegações e avaliações. E uma mídia discursivamentevital é uma participante ativa nisso.
Isso pode ser intuitivamente compreendido na diferença que existe entre “opiniões públicas” competitivas e publicações mostrando a divisão de opiniões coletadas por demoscopia(pesquisa de opinião pública). Por toda sua dissonância, opiniões públicas que foram produzidas por meio de discussão e polêmica já têm sido filtradas por informação relevante e argumentação. Demoscopia, por outro lado, reflete meramente opiniões latentes em seu estado cru e dormente.É claro, o tipo de discussão regrada ou consultada que qualquer um vê nas cortes ou comitês parlamentares está prevenido pelas trocas de comunicação selvagem de uma esfera pública controlada pelos meios de comunicação de massa. Mas na verdade ninguém esperaria discussão tão regulada na vida pública, porque comunicação política é só um elo na cadeia. Ela transitaentre discursos institucionalizados e negociações acontecendo em arenasde um lado, e a intermitente e diária conversa informal de eleitores em potencial de outro.A esfera pública faz a sua parte em legitimar democraticamente a ação do Estado ao selecionar objetos relevantes para decisões políticas, transformando-as em questões e agrupando-as em opiniões públicas competitivas com mais ou menos bem informadas e argumentos razoáveis.Dessa maneira, comunicação pública é uma força que estimula e orienta as opiniões dos cidadãos e desejos, enquanto ao mesmo tempo força o sistema político a adequar-se e tornar-se mais transparente. Sem o impulso de uma imprensa formadora de opinião, uma que informe confiavelmente e comente cuidadosamente, a esfera pública vai perder esse tipo especial de energia. Quando o gás, eletricidade ou água estão em falta, o Estado deve garantir o suprimento de energia para a população.Não deveria ele fazer a mesma coisa quando esse outro tipo de “energia” está em risco –a ausência da qual causará rupturas que prejudicam o Estado? Não é uma “falha do sistema” quando o Estado tenta proteger o bem público ou seja a imprensa de qualidade. A verdadeira questão é apenas a pragmáticade como aquilo pode ser feito da melhor maneira.Frankfurter Rundschau com um empréstimo – em vão. Subsídios isoladosNo passado, o governo Hessiano socorreu o são apenas uma possibilidade. Outros são fundações com participação pública ou redução de impostos para sociedades financeiras de famílianesse setor. Esses experimentos já existem em algum lugar e nenhum deles são livres de problemas. Mas o primeiro passo é se acostumar à idéia de subsidiar jornais e revistas.De um ponto de vista histórico, há alguma coisa contráriaà idéia de reinado na atuação do mercado no jornalismo e na imprensa. O mercado foi a força que propiciou o fórum para pensamentos subversivos se emanciparem de um estado de opressão em primeiro lugar. Ainda omercado pode realizar essa função conquanto princípios econômicos não violem o conteúdo político e cultural que o mercado se serve para expandir. Esta é ainda a parte mais importante no centro da crítica de Adorno à indústria cultural. Observação desconfiável é necessária porque nenhuma democracia pode permitir-se uma falhado mercado nesse setor.


Thursday, December 20, 2007

O retorno dos escritores malditos 20/12/07 entrevista Michel Houellebecq

INCLASSIFICÁVEL, IRREVERENTE E SURPREENDENTE.nas suas posições intelectuais e políticas,Michel Houellebecq é um serial killer da cultura,em luta contra os dogmas da narrativa literária do século XX, pautada pelo formalismo
vazio, e contra as utopias pseudolibertárias
que geraram o narcisismo deste final de século. Sempre disposto a combatero política, estética, intelectual e culturalmente correto, ousa preferir Auguste Comte a Karl Marx e o século XIX ao XX.Com ele, nunca se sabe onde termina a
provocação nem onde começa a desmitificação.
Defensor do amor contra o egocentrismo
e de valores contra a indiferença contemporânea,
vê nas utopias de maio de 68 o detonador de um efeito perverso: o neoliberalismo comportamental dominante.Em todo caso, Houellebecq não encontra a solução para isso nos clássicos projetos das esquerdas partidarizadas e
sempre sectárias. Escritor de idéias, não de mensagens, constrói cenários nos quais a humanidade aparece despida, cruamente tratada, exposta em todas as suas contradições e hipocrisias. Dono de um texto límpido,cortante, direto, ignora os floreios e os barroquismos, atendo-se ao choque frontal e impiedoso.Na entrevista que segue, Houellebecq abre o jogo e mostra as suas escolhas, dúvidas e mesmo o desconhecimento de certos temas, entre os quais o do imenso universo brasileiro, abordado de forma transversal e irônica em Partículas elementares, livro que o consagrou (lançado no Brasil pela Editora Sulina) no mundo inteiro. Para quem pensava que a grande linhagem dos escritores malditos franceses estava esgotada, Michel Houellebecq e o seu Partículas elementares representam o absolutamente inesperado.

— Afirma-se, com freqüência,
que a literatura francesa está em crise. O seu livro, Partículas elementares, com a polêmica que provocou e com o sucesso
de público, demonstra o contrário. O Senhor
considera-se como o “papa” de uma escola da lucidez e também como renovador da ficção do seu país?Michel Houellebecq — Ninguém pode autoproclamar-se papa ou líder de nada; são sempre os outros que decidem sobre isso. De fato, constato que muitos jovens escritores franceses de hoje se sentem próximos de mim, ou, até mesmo, declaram-se influenciados pelo que escrevo. Num certo sentido, isso me constrange um pouco, pois não tenho a mentalidade de um “líder”. Detesto estabelecer diretivas ou dar ordens.Por outro lado, evidentemente, fico orgulhoso.Já a impressão de declínio da literatura francesa no estrangeiro vem do fato que depois do “Novo Romance”, há já 40 anos, nada mais em literatura conseguiu ultrapassar as nossas fronteiras. Ora, o “Novo Romance” é chato, sem perspectiva de permanência,nascido morto. Mas não exerceu qualquer influência sobre os autores franceses
contemporâneos.
— O senhor defende que é preciso construir
romances também com idéias, pois considera que as reflexões teóricas constituem um material romanesco tão bom quanto outro qualquer. Trata-se de uma ruptura consciente e provocativa em relação aos que preferem uma literatura de intriga ou a literatura contemporânea parece-lhe vazia e dominada por um formalismo estéril?Houellebecq — Na vida real, é certo que as pessoas agem; mas elas também pensam e, por vezes, o pensamento tem relação com as ações praticadas. Não me situo de forma alguma em oposição à “literatura de intriga”.Nesta, inclusive numa grande parte
dos romances populares de aventura, os personagens expõem, às vezes longamente,as suas concepções de mundo e os motivos das suas ações. Sinto-me muito mais em oposição à literatura em que os personagens praticam ações indiferentes, vazias de sentido, num ambiente de total neutralidade.A neutralidade para mim não existe. E só pode ser experimentada no registro da
dor. O mundo, humano, em outras palavras,é sempre patético.
— Se a teoria pode entrar no romance, a poesia parece-lhe ser a única a resistir a tal integração. Por quê? Trata-se de um privilégio,oriundo da admiração pela poesia, ou da especificidade discursiva desta?Houellebecq — Não digo que seja impossível
integrar a poesia ao romance; confesso que senti enorme dificuldade ao tentar fazêlo.Contudo, a parte viva, parte ativa, de
um romance é sempre de ordem poética;mas se trata, na maior parte das vezes, de prosa poética, o que não é a mesma coisa. A
grande dificuldade, que exigiria considerável trabalho e até mesmo, provavelmente, a invenção de uma nova linguagem, seria a integração harmoniosa, passando pelas intermediações
necessárias, de fragmentos versificados e líricos numa narrativa em prosa.
— Partículas elementares é um livro extraordinário pela sua capacidade de derrubar mitos, especialmente os de maio de 68.
Como o senhor reage, em função disso,quando o acusam de ser reacionário?Houellebecq — No plano político, já me situei, explicitamente, várias vezes, na esteira de Auguste Comte. Não o Comte vulgarizado pelo positivismo primário, mas o
que sobressai de uma leitura profunda da sua obra. Sem entrar muito, por agora, nos
detalhes, a divisa comtiana “Ordem e Progresso”permite, já de início, entender por que rejeito, com energia, de posicionar-me com base na oposição progressistas/reacionários, ou esquerda/direita, à qual se resume o debate na França. Creio ser possível pensar fora dessa redução. Infelizmente Auguste Comte está esquecido em seu próprio país e foi, quase sempre, interpretado de forma inadequada. Ele é desconhecido do grande público, muito pouco estudado nas universidades e os seus principais livros tornaram-se quase impossíveis de encontrar.Não seria exagerado afirmar que sou o único escritor francês que o leu realmente.Em conseqüência, até agora, não fui
compreendido. Talvez no Brasil, em função da sua história, a situação seja diferente.Com efeito, o Brasil representa certamente a minha última chance de conseguir explicar as minhas posições filosóficas e políticas.
— Dado que o senhor não rejeita as idéias na obra romanesca, qual era o seu objetivo“ideológico” com a construção de um romance que investe contra os clichês utópicos?Houellebecq — Nunca acreditei nas “utopias”que denuncio. Sinto uma verdadeira antipatia pela valorização do egoísmo, pela depreciação da moral, pela exaltação exagerada da liberdade individual, derivados de
maio de 68. Mas o meu livro, além de ser uma crítica disso tudo, é também uma homenagem a certos valores que me parecem positivos: o amor, a piedade, a ternura, o prazer sexual e toda uma dimensão feminina da existência.— Crítico da deriva individualista de maio de 68, o senhor considera-se como um libertário, escritor maldito, ou simplesmente como um marginal que se tornou célebre graças ao sucesso de um livro?
Houellebecq — Sou um marginal que se tornou famoso, o que me parece totalmente surpreendente, pois as minhas características e as minhas aptidões predispunham-me muito mais ao destino de “poeta maldito”.Ainda tenho, porém, a possibilidade de desacreditar-me por conta própria, o que me abriria o caminho para uma nova forma de maldição, bastante “moderna”, quanto ao princípio, mas real.— Escritor em ruptura com as convenções literárias hegemônicas, o senhor admite ter sofrido influências decisivas ou o passado parece-lhe descartável?Houellebecq — Represento, certamente,uma ruptura em relação à literatura francesa do século XX; mas de forma alguma uma ruptura no que se refere à totalidade do
passado literário. A maioria das minhas referências,em realidade, dizem respeito ao século XIX, que me parece de uma energia criativa e de um talento excepcionais. Essa rejeição do século XX não me incomoda nenhum pouco; afinal de contas, estamos por deixá-lo para trás. Gostaria muito, ao contrário,de figurar como um precursor do século XXI.— Numa passagem de Partículas elementares,há uma sátira impiedosa do Brasil. O senhor conhece a literatura brasileira e que valor tem de fato o Brasil na sua vida?Houellebecq — Com razão ou não, os
brasileiros parecem aos franceses as criaturas mais eróticas do planeta. Por causa disso,
o Brasil goza na França de um extraordinário prestígio, sempre em voga. Enquanto isso, tudo o que, de resto, adivinha-se ou percebe-se, como a violência, a corrupção e a miséria, por serem desagradáveis, restam encobertos. Mais do que uma sátira do Brasil,a passagem citada cumpre o papel de sátira da condição do macho ocidental,sempre pronto a aceitar seja o que for para atiçar ligeiramente a sua fibra erótica languescente.Afora esses poucos clichês, partilhados pela maioria dos meus compatriotas,nada sei do Brasil nem da sua literatura.— Os seus personagens masculinos de Partículas elementares são duplos um do outro ou, de acordo com a linguagem atual,clones. Ambos desfavorecidos pela sorte. O livro representa uma crítica deste final de
século decadente em que as pessoas não têm mais identidade clara nem referenciais válidos?
Houellebecq — Com certeza. Sem religião,sem moral, a vida tornou-se impossível,insuportável para o homem. As mulheres,ao menos até agora, possuem o amor, o que as salva. Mas os homens, no estado atual da nossa civilização, não passam de condenados,de excomungados.— Até certo ponto sociológico, embora bastante envolvente do ponto de vista narrativo,Partículas elementares é um romance que explora uma “teoria do capital simbólico sexual”. O senhor é um discípulo de Pierre Bourdieu, cuja obra trata desse tipo de assunto? De resto, que lugar ocupa o sexo na época atual?Houellebecq — Não sou, de forma alguma,um discípulo de Pierre Bourdieu. Posso mesmo dizer que nos meus livros, quanto ao campo sexual, o “capital simbólico” desempenha cada vez mais um papel decrescente;enquanto a sedução física pura e simples
ocupa um espaço crescente. De fato, o Ocidente parece-me, atualmente, caracterizar-
se por uma grande nostalgia do reino animal. Nostalgia que deveria, de maneira ao mesmo tempo lógica e desejável, levá-lo à perdição.


entrevista Yve-Alain Bois 20/12/07

Yve-Alain Bois se propõe a realizar uma tarefa que,apesar de parecer justa e coerente, carrega o inconveniente fardo dos desentendimentos. Ele procura trabalhar com uma certa noção de
limite entre forma e sentido, buscando os significados dessa relação.Parece simples, mas tem gerado muitos mal-entendidos: alguns o
consideram um neo-formalista em busca da expiação do formalismo greenbergiano.Rebatendo essa crítica, ele afirma que seu formalismo associa o estruturalismo de Roland Barthes, com quem estudou em
Paris nos anos 1970,aos preceitos de Bertolt Brecht,para quem forma e conteúdo são inseparáveis.O currículo de Yve-Alain Bois soma trabalhos bibliográficos sobre artistas como Henri Matisse,Pablo Picasso,Piet Mondrian,Ellsworth Kelly, Roy Lichtenstein, Robert Rauschenberg, Ed Ruscha, Donald
Judd e Barnett Newman a trabalhos como curador em uma retrospectiva sobre Mondrian, em exposições sobre a relação entre Matisse e Picasso e na importante mostra L’informe:mode d’emplois, realizada com Rosalind Krauss no Centre Georges Pompidou (Paris), que trouxe
novos significados a vários conceitos da arte moderna.Além disso,foi professor de história da arte na Universidade Harvard por mais de 15 anos e agora é membro do Instituto de Estudos Avançados, uma instituição privada e independente ligada à Universidade Princeton que
já acolheu estrelas como Albert Einstein, John von Neumann, Kurt Gödel e Erwin Panofsky. Mais conhecido como The Institute, trata-se do próprio olimpo acadêmico, lugar onde se deve buscar “desinteressadamente”o saber,sem nenhuma obrigação,em princípio,de ensinar
ou mesmo de publicar.Para completar a soma curricular,é co-editor da revista October, talvez a mais influente publicação sobre artes e novas mídias dos nossos tempos.Yve-Alain Bois nasceu em Constantine, na Argélia. Depois de estudar em Paris, mudou-se para os Estados Unidos, nos anos 80, onde começou a lecionar e encontrou um universo teórico bem particular (e ao
mesmo tempo trivial), contra o qual resistiu energicamente: o dos dogmatismos acadêmicos. Em seu livro Painting as model (MIT Press),defende uma posição contrária a uma série de chantagens (blackmails)intelectuais, entre elas teorizar em excesso ou ser contrário à teoria; as
obrigações de ser antiformalista e de oferecer uma explicação sociopolítica;e uma espécie de sintoma que foi denominado por Barthes de“assimbolismo”,ou seja,a incapacidade de perceber as múltiplas possibilidades de significação de uma obra.Refere-se aqui à influência da iconologia
ao modo de Panofsky,que persegue uma interpretação com sentido unívoco da obra.Assim,partiu para a defesa do formalismo,mas não do formalismo de Clement Greenberg, e sim do formalismo russo de Iuri Tinianov e Roman Jakobson,lembrando que a forma é sempre ideológica.
Parte desses argumentos está publicada no artigo,traduzido para o português,“Viva o formalismo (bis)” — em Clement Greenberg e o debate crítico (Jorge Zahar) —,no qual também comenta a chantagem da psicocrítica,que faz Picasso mudar de estilo cada vez que muda de mulher.Seu livro mais recente, Art since 1900 (Thames & Hudson), escrito com Rosalind Krauss, Hal Foster e Benjamin Buchloh, todos da revista October, tem suscitado aclamações, mas também muitas reclamações.Elogiado pelo seu formato inovador, com minicapítulos que
evocam a dialogia intertextual,é também acusado de ser um manual de oficialização de uma arte “October”, o que traz de volta os fantasmas do modernismo oficializado por Greenberg.
Jane de Almeida—O senhor disse que em sua juventude, em Paris, interessava-se especialmente pelos artistas latino-americanos. Além do exotismo da situação e das longas conversas com Sérgio Camargo e Lygia
Clark, do que mais se recorda? O que ainda permanece como referência para o senhor, como historiador da arte?Yve-Alain Bois — Lygia Clark é quem realmente permanece.Conheci os artistas latino-americanos ainda muito jovem, quando tinha 14 anos,por meio de Jean Clay,na época um crítico de arte muito famoso em Paris. Ele era defensor da arte cinética e me apresentou a [Jesus-Raphael] Soto, a Carlos Cruz-Diez, a um grande número de pessoas.Muitos deles eram latino-americanos, mas em princípio não havia
brasileiros,porque Lygia ainda não estava em Paris.Eu assistia a todas as exposições e visitava muitos artistas. Alguns deles eram bons,
outros nem tanto.Quando conheci Lygia, dois ou três anos depois, eu já havia perdido o interesse por esse tipo de arte — e creio que Jean também. Ela deve ter desempenhado um papel significativo ao dizer a Jean que aqueles trabalhos eram meros gadgets.Isso deve ter sido importante em sua própria educação, embora ele fosse 15 ou 20 anos mais velho que eu.Lygia foi muito importante na minha educação artística.Jean Clay fundou o periódico Robho, e o primeiro número foi quase inteiramente dedicado à arte cinética. Na penúltima edição,em 1968,foi publicado um grande dossiê sobre Lygia Clark. Na última, publicada,acho,em 1969,havia também um pequeno artigo que eu mesmo escrevi sobre Lygia, além de um texto escrito por ela, que eu ajudei a verter para o francês. Essa edição realmente marcou a despedida definitiva
de Jean Clay do “cineticismo”.Ele também era muito mais politizado naquele tempo,e havia muitas coisas politicamente interessantes na época.Por isso,essa última edição foi completamente diferente.Depois disso, a publicação terminou.Lygia também deve ter representado para ele, de um certo modo,um meio de se livrar da arte cinética,que havia se tornado extraordinariamente comercial. Havia uma galeria em Paris, chamada Denise René,que funcionava como um tipo de centro para a arte cinética e que fez grande sucesso na segunda metade dos anos 60. A galeria forçava os artistas a se repetirem, fazendo objetos vendáveis, e deliberadamente ignorava suas propostas mais interessantes.Elas foram ficando piores, e é incrível como o movimento se esgotou rapidamente.Lygia chegou com uma atitude mental inteiramente diferente.Eu a conheci quando ela estava voltando de Veneza, depois de expor na
bienal daquela cidade. Ela acabara de chegar, e seu apartamento estava quase vazio(pouquíssima mobília, nada nas paredes), a não ser pelo monte de caixas, pois ela estava recebendo suas coisas de Veneza. Lygia estava muito deprimida, porque seu ex-marido havia
falecido naquela época. Acho que tinha ficado traumatizada com o comercialismo que havia visto em Veneza, e, além disso, o ano de 1968 foi um momento politicamente complicado. A edição da Robho dedicada a ela ainda não havia saído,mas eu tinha visto algumas fotos e lido alguns textos dela,que Jean havia me dado,e queria conhecê-la.Quando Jean disse a Lygia que eu iria telefonar e Camargo também ela deve ter ficado um pouco intrigada com a idéia de que um adolescente
francês queria conhecê-la. Eu tinha 16 anos na época e morava em Toulouse, onde fazia bicos, como lavar automóveis.Pegava o trem noturno para Paris toda vez que conseguia guardar
dinheiro suficiente para o bilhete.Quando fui visitá-la,pensei que não ficaria mais que meia hora por lá,porque ela tinha dito que estava um pouco doente.Então começou a abrir suas caixas, empurrando as coisas para mim. Recordo que a primeira era uma pedra com um airbag. Ela soprou o saco, o colocou em minhas mãos — lembro-me de ser quente e muito delicado — e equilibrou uma pedrinha no canto,de modo que a menor pressão de minhas mãos fazia a pedrinha subir e descer.Havia vários tipos de pedra,com elásticos,em cima da mesa.Então ela começou a desempacotar todos os Bichos, todas aquelas coisas como Respire Comigo — foi extraordinário para mim, porque pude vê-la mergulhando na coisa. Fiquei fascinado.Depois disso, passei a visitá-la toda vez que ia a Paris, até que fui passar um ano na América, para participar de um programa de intercâmbio estudantil.Começamos a nos corresponder, mesmo que seu francês ainda não fosse tão bom.O senhor ainda possui essas cartas?Sim. Não tantas quanto gostaria. Eu provavelmente joguei algumas fora,mas guardei muitas outras.Várias delas são bem interessantes.Então, quando voltei, após passar um ano miserável em Pau, para
onde meus pais haviam se mudado, iniciei o processo de admissão para estudar na Escola de Altos Estudos, com Roland Barthes. Foi então que fui para Paris e pude realmente conhecer Lygia melhor.Por estranho que pareça, isso está indiretamente relacionado a seu processo
de psicanálise.O senhor enxerga alguma influência lacaniana em Lygia Clark? Porque parte do trabalho dela se assemelha à topologia lacaniana do inconsciente.Não.Ela passou longos períodos de sua vida fazendo análise,sempre com analistas muito conhecidos,mas não gostava de Lacan.Ela tinha feito análise com Daniel Lagache, nêmesis de Lacan, durante sua estadia anterior em Paris. Seu analista naquela época era Pierre Fédida, então membro do grupo de Laplanche e Pontalis. Fédida morava em uma pequena rua,onde também vivia Miterrand e onde eu
possuía um quarto. Lygia costumava ver Fédida cinco vezes por semana e almoçar num pequeno café na place Maubert,por isso eu a via o tempo todo.Ela comia sempre o mesmo prato,com dois belos ovos fritos, o que não devia ser muito bom para sua saúde, por causa do colesterol. Nos finais de semana, seu apartamento estava sempre aberto para os amigos e, quando estava deprimida, me chamava para jogar baralho. Aos domingos, ela sempre dava uma pequena festa,
muitas vezes fazia uma feijoada. Às vezes me pedia para ajudar com algumas coisas, até mesmo comprar as coisas na feira. A televisão francesa, naquela época, tinha apenas dois ou três canais e, aos domingos à noite, passava filmes. A programação geralmente era extraordinária,brilhante mesmo.Vimos muita coisa ali.Recordo-me de A sala de música [1958],de Satyajit Ray,que era fantástico.Acho que é um dos filmes mais belos que já foram feitos. Quando o filme era
muito entediante, nós dizíamos: “O.k., vamos jogar baralho outra vez, ouvir música ou fazer qualquer outra coisa”.Mas ela nunca usava filmes em seus trabalhos.Não, mas ela sabia muito sobre filmes. Seu gosto era bastante estranho.Ela abriu meus horizontes, porque minha educação, em termos de cinema, era muito nouvelle vague. Eu era um pouco dogmático, mas


não tanto quanto os Cahiers. Os Cahiers du Cinéma naquela época haviam se tornado maoístas, completamente ridículos.Lygia me fazia assistir a filmes que provavelmente jamais teria
visto por conta própria, filmes antigos de Hollywood. Ela conhecia absolutamente tudo de cor.Gostava especialmente de A Condessa descalça[1954],de Joseph Mankiewicz,com Ava Gardner.Por isso,nós fomos ver muitos filmes.Lembro-me de arrastá-la para ver diversos filmes de que ela realmente não gostava. A cerimônia [1971],um dos primeiros filmes de Nagisa Oshima,por exemplo,ela detestou.
Nossos gostos eram por vezes diferentes, mas ela estava sempre lendo e discutindo as coisas. Ela me ajudou a fugir completamente de uma
interpretação muito rígida e fraudulenta da abstração, em especial de Mondrian,figura dominante na Europa de então.Foi ela quem me pôs na trilha de um Mondrian que nada tem a ver com aquele monge neoplatônico,mas que era mais algum tipo de destruidor antiformalista.Essa perspectiva foi importante para o senhor?
Sim, foi uma virada total, porque para mim Mondrian foi um dos primeiros artistas de quem gostei, quando tinha 14 anos, e foi ele quem me levou a descobrir a arte.Topei com um livro de Michel Seuphor,que foi em grande medida responsável por aquela idéia de Mondrian, o Monge, e foi o primeiro grande livro sobre o pintor, publicado na década de 1950. Custava muito caro para mim na época, então pedi a meus avós de presente quando fiz a crisma.Só então pude finalmente
lê-lo.Como foi o primeiro livro de arte que li,aceitei toda a retórica,até mesmo cheguei a falar com Seuphor.Mas Lygia mudou totalmente minha visão a respeito desse tipo de abordagem. Ela também achava [Joseph] Albers surrealista e não sabia,assim como eu,que algumas outras pessoas pensavam o mesmo(estou pensando, por exemplo, no crítico de arte americano Gene
Swenson). Eu nunca tinha pensado em Albers como surrealista,mas,quando ela explicou, fez sentido para mim. Ela também me fez compreender que a postura adotada na época (especialmente por Seuphor)entre o gesto e a geometria era simplesmente falida intelectualmente.Foi ela quem me apresentou ao trabalho de Martin Barré,sobre quem acabei escrevendo um livro. Ela era muito aberta em relação a coisas que não tinham nada a ver com seu próprio trabalho. Sabe,minha cultura artística era grande para um garoto daquela época,mas ainda assim era muito limitada,e ela me abriu a cabeça para muitas coisas.Além disso, tínhamos discussões intelectuais sobre muitos assuntos. Eu estava lendo sobre o estruturalismo, o pós-estruturalismo...Agora estou falando sobre uma época um pouco posterior,no início dos anos 1970, quando fui viver como estudante em Paris. Eu ainda me entusiasmava muito com aquilo,mas ela não estava interessada. Ela preferia Merleau-Ponty, sobre quem conversamos muito,mas me fez ler Winnicott e outras coisas do gênero.Como o senhor vê o trabalho de Lygia hoje?É complicado, porque há duas partes em seu trabalho, e não sei o que fazer com a parte mais recente.Sabe,esse filme que nós vimos,Memória do corpo, de Mário Carneiro, simplesmente não sei o que fazer com ele.Algo de que estou absolutamente certo é que ela não iria querer que fosse exibido em um contexto artístico, porque não seria a melhor maneira. Acho os trabalhos de sua primeira fase fantásticos. E existe uma lógica mesmo perto do fim. Percebe-se essa lógica pela maneira como o trabalho decorre da parte inicial, mas simplesmente não sei o
que fazer com o final dele.Vejo que há um desenvolvimento. Pode-se ver isso das coisas geométricas aos Bichos, aos Trepantes, ao Caminhando.Percebe-se uma evolução gradual fora do objeto e para dentro de algum tipo de prática e para algum tipo de trabalho coletivo que ela
fez em Paris, na Sorbonne. Isso era extraordinário na época, e ainda é impressionante que essas coisas tenham acontecido. É fácil entender por que o trabalho dela acabou,um pouco,se tornando uma espécie de mitologia.Porque, francamente, é fantástico. Chamo de “posterior” o trabalho que ela fez depois, que era terapia. Essa é a parte com a qual realmente não sei o que fazer.Mesmo antes disso,todas aquelas coisas que ela fez e que ainda não eram terapia, eu não sei do que elas tratam de fato.Não eram performances,porque não havia espectador.Ela chamava aquilo de “as aulas”, mas não eram aulas.O senhor acha que o exílio voluntário do mundo da arte foi também uma reação contra o mercado de arte? Foi uma maneira, para ela, de ser uma alteridade como artista?Bem, acho que o mercado de arte é algo muito corrupto e que ela nutria uma certa aversão à Bienal de Veneza. Mas não me parece que seja essa a causa principal. Acho que a causa principal é simplesmente uma espécie de lógica do argumento.Você passa do Plano para os Bichos, e o objeto torna-se interativo com o espectador — mas ela
não usava essa palavra, ela usava “participante” — e, num certo momento, o objeto deixa de ser necessário. O principal estava na interação entre o participante e o objeto, que vai se tornando mais um acessório de palco que qualquer outra coisa.Então,isso é lógico,muito coerente, creio eu.E todo mundo vem escrevendo sobre isso.Ela passa por um limiar quando decide fazer disso uma espécie de“cura” ou algo do gênero. E eu não sei, simplesmente não sei quero dizer,não faço idéia — se isso tem alguma validade como terapia.Reservo meu julgamento. Acho que seria preciso uma boa discussão com um psicanalista sobre isso, porque não sei o que pensar
a respeito. Parece-me um pouco como brincar com fogo. Você não sabe o que faz,mas os psicanalistas brincam com fogo o tempo todo,
embora às vezes a coisa termine mal.Vamos falar sobre formalismo. O senhor sempre foi identificado, tanto pelos amigos como pelos inimigos, justa e injustamente, de maneira positiva ou negativa, como formalista. O que significa seu formalismo?Minha formação é estruturalista, Barthes foi meu professor e, basicamente,a idéia por trás dessa forma de crítica e desse modo de análise é que não se podem separar forma e conteúdo,pois essa é uma separação equivocada, inexistente. A forma sempre carrega um significado, e o significado mais profundo, ou mais importante, está sempre no nível da forma, não no nível do referente ou do conteúdo iconológico.Digamos que a forma da Flagelação,de Piero della Francesca,a perspectiva monocular,seja mais importante que a representação da flagelação para a análise do que a arte queria dizer naquele tempo. Ou tomemos outro exemplo: a forma de uma Madona de El Greco e o mesmo tema,Madona e Filho, de Bellini. Apesar de a cena ser exatamente a mesma, as telas são completamente diferentes,e seus significados são totalmente diferentes. Quero dizer, os dois personagens são exatamente os mesmos,a Virgem Maria e o Filho.Porém,enquanto no caso de El Greco há essa pessoa atormentada,que está prestes a se dissolver em chamas,no
outro,a Madona vai se tornar um grande manto protetor do mundo.Barthes e Foucault foram fortes defensores do formalismo,ao contrário do que as pessoas pensam.Mas foi também por meio de Barthes que os formalistas russos foram traduzidos na França. Não diretamente
por ele, mas por seus alunos, como Todorov e, um pouco mais tarde, Kristeva. Ela também traduziu Bakhtin, que, por sua vez, inclui críticas ao formalismo,mas ainda assim integra o mesmo grupo epistemológico.E, para Barthes,havia também Brecht, como alguém profundamente interessado na função ideológica da forma.Mas eles fazem parte de um formalismo europeu, e então o senhor se mudou para os EUA e encontrou o formalismo greenberguiano…Sim,e o interessante sobre o formalismo de Greenberg,sob o ponto de vista francês, era o fato de ele ser bastante preciso naquilo que tinha a dizer sobre trabalhos de arte,muito embora eu hoje pense que isso não seja verdadeiro, quando olhamos para esse fato em detalhes.Enquanto na França daquele tempo a crítica de arte era pura asneira,escrita por poetas que simplesmente não sabiam sobre o que estavam falando. E ainda é exatamente a mesma coisa, por sinal. Muito de nossa atividade crítica na América hoje em dia também ocorre do mesmo modo. Mas Greenberg era quem se opunha, na América, à turma beletrista da Art News, a Thomas Hess e a pessoas como essas,que ainda são muito poderosas.Ainda hoje temos Dave Hickey,crítico e curador de arte, que escreve para Art in America e The Village Voice, e
Peter Schjeldahl, da revista New Yorker. É absolutamente sem consistência,não há nada lá. Quero dizer, nenhum rigor, nem na descrição nem na interpretação.Então, Greenberg costumava dizer: “O.k., eu vou descrever”. E ele era razoavelmente bom em certas coisas, mas lentamente compreendi que havia dois pontos que eram um perigo. Um deles era que ele não
estava interessado de modo algum no processo,no próprio material das obras de arte.Na verdade,ele freqüentemente cometia erros inacreditáveis no tocante à descrição do material.Quando ele descrevia uma pintura,poderia estar descrevendo uma fotografia: para ele a forma não incluía a matéria. Isso está relacionado à sua ideologia, que gradualmente cresceu e se consolidou no começo dos anos 50. Uma interpretação muito mais estreita do que a pintura deveria ser. E também está relacionado à sua idéia de “opticalidade”: um modo de ilusionismo
equilibrado, que desemboca em uma série de interpretações equivocadas de sua parte,mas também em uma tendência muito forte.Ele sempre agiu como se estivesse descrevendo, mas não estava.Sempre disse que não estava prescrevendo, mas estava. Mas, em comparação com a
mediocridade da crítica francesa daquele tempo, era atordoante ler Greenberg. Quando eu estava fazendo o jornal chamado Macula, nós publicamos todos os textos de Greenberg sobre Pollock. Seu cânon realmente só se solidificou em 1955 ou 1956, mas em seus primeiros
trabalhos ele não sabia o que fazer. É maravilhoso vê-lo lutando com Pollock, sem saber o que fazer.O all-over tornou-se esse tipo de grande marca do panteão de Greenberg.Bem,em princípio, ele não estava tão certo de que isso fosse uma boa idéia.Foi muito interessante para nós descobri-lo um pouco mais tarde. O mais divertido é que, quando publicamos esse material na França, no meio dos anos 70, muitos de nossos amigos americanos disseram:“Vocês estão loucos?!”.Naqueletempo, Greenberg havia se tornado politicamente muito reacionário,
havia sido acusado de corrupção,em conluio com o mercado.Falando sobre o que o senhor escreveu sobre os blackmails acadêmicos,seria o contextualismo uma forma de chantagem? Quando o senhor escreveu seu livro Painting as model, não considerou o contextualismo
exatamente uma chantagem, mas tem sido interpretado dessa forma.Quando vim para a América para ensinar,no início dos anos 80,havia uma moda realmente estranha na academia, uma fascinação pelo desenvolvimento intelectual francês do final dos anos 60 e dos 70,freqüentemente apelidado de La pensée 68’.O que me marcou profundamentefoi que os estudantes americanos (e não raro seus professores)devoravam muito rapidamente textos complexos de Lacan, Derrida,
Lyotard, Althusser, Kristeva, Barthes, Deleuze etc. e colocavam essas pessoas no mesmo saco, fazendo um tipo de caldo disso tudo. Mas,
conforme eu havia testemunhado na França durante meus anos de estudante, esses autores não estavam exatamente em concordância
uns com os outros. Bem, não apenas esses estudantes americanos citavam todos esses pensadores como um todo,como se eles possuíssem uma voz comum, mas também se sentiam na obrigação de citar essa enorme massa textual. Coisa que nenhum trabalho daria conta
sem zilhões de citações dessa vasta e complexa série de textos, que tinha sido lida demasiadamente rápido para uma digestão completa.
Isso era puro fetichismo, um tipo de invocação desnecessária.Isso realmente me faz pensar no que Barthes disse, em sua aula inaugural no Collège de France: a língua é fascista porque ela nos força a dizer coisas e a ela enviá-las de uma certa maneira. E um certo tipo de história da arte social tinha o mesmo tipo de estrutura castradora.Por que eu deveria ler uma centena de páginas sobre a história da lavanderia no século 19 para entender Degas se em cinco parágrafos eu poderia perceber que as lavadeiras eram exploradas, pobres e tomadas por escravas sexuais? Não precisamos aprender tudo sobre a sociologia e a história da lavanderia para dizermos algo relevante sobre as pinturas de lavadeiras feitas por Degas. Mas havia um período em que, se não fizéssemos isso, seríamos considerados estetas reacionários.Mas, às vezes, parece que o senhor tem solicitado cada vez mais o contexto.Certamente, porque sou um historiador. Estou interessado nas condições de possibilidade dessa ou daquela arte nesse ou naquele tempo.O que eu não concordo é com a noção de que haja uma relação imediata entre o contexto social e a arte que é produzida. Foucault também era contra a idéia de uma completa e imediata similitude.
Existe uma mediação, e devemos descobri-la. Não podemos fazer essa descoberta até que tenhamos uma forte análise estrutural do próprio trabalho,do modo como ele significa. E não é o referente que nos dará uma pista de sua significação. O significado não é o referente;ele é apenas o nível superficial. Ele é parte da estrutura do significado,mas a menos interessante de muitas maneiras, a menos reveladora. O que é a significação estrutural? Como ela funciona? O que fiz em trabalhos mais recentes parte de uma concepção mais bakhtiniana do trabalho de arte se dirigindo ao contexto mais diretamente,como em um diálogo. Penso que o livro sobre Matisse e
Picasso seja mais bakhtiniano nesse sentido.E o conceito de pós-modernismo? É chantagem?
Não,não creio que seja chantagem,mas sim que foi equivocadamente pensado. Trata-se de um conceito cozido às pressas, por pessoas que
não pensavam muito. Pegou. Porque era novo. Foi interessante o modo como ele veio à tona, em dois tempos e campos diferentes: primeiro seriamente, na arquitetura, área em que o conceito de modernismo não existia naquele tempo. Depois, na arte — quero dizer, na
América —, o conceito de modernismo foi roubado por Greenberg.Ou seja,o que as pessoas entenderam por modernismo era Greenberg.E o que Greenberg quis dizer com esse conceito acabou sendo, nos anos 60, basicamente uma soma de quatro ou cinco artistas que ele admirava, apenas isso.Conseqüentemente, tudo o mais foi denominado de pós-modernismo, por contraste ou em reação a Greenberg.Então esse é um conceito que se tornou muito vazio. E ficou ainda mais vazio com as pessoas que acreditavam estar pensando sobre ele,
porque elas fizeram uma incrível generalização.Quando lemos o volumoso livro de [Fredric] Jameson, que é uma
espécie de Bíblia sobre o assim chamado pós modernismo,sua descrição é tão extensa que não entendemos mais o que é moderno. Se Godard é pós-moderno, se Joyce é pós-moderno, então o que é moderno? Quero dizer, o conceito torna-se absurdo. Se você tem um elemento de reflexividade no trabalho artístico, se você não imagina a arte como uma linguagem transparente, sem nenhuma opacidade material,você está lidando com um trabalho modernista e,assim,não precisa do conceito de pós-modernismo.Penso que “pós” queira significar“isso se foi”.Mas isso não é verdade.Não quer dizer que estejamos agora na mesma era em que estávamos há 50 anos.Mas o conceito de reflexividade e a dúvida quanto ao imediatismo da linguagem ainda estão conosco, mesmo que estejam presentes nos trabalhos que detesto.Eu não gosto,você sabe,de David Salle,mas aquilo não é pósmoderno,até onde eu possa ver.Aquilo é retrógrado,mais como velho moderno do que como pós-moderno,no que me diz respeito.Não vejo o que seja “pós” naquilo e sempre me impressionei pela falta de rigor do conceito.Eu nunca o utilizei ou,se o fiz,foi sempre entre aspas e,se não houver aspas, é porque algum editor as removeu.O senhor escreveu que o fenômeno da “estrangeiridade” dá ao estranho a liberdade de olhar para um sistema cultural complexo e não ter a obrigação de seguir as regras do jogo, pois ele pode escolher aquilo que considera mais vibrante e controvertido de uma dada cultura. Considerando a globalização, em que medida isso ainda é possível?Essa é uma boa pergunta. Não sei exatamente como respondê-la. Há vários níveis de globalização, e há um, por exemplo, no universo da arte:aquele que é pesadamente fundado na esfera comercial da arte,na bienal e tudo mais. quero dizer, é a mesma bobagem no mundo todo. Nesse nível, temo que a globalização irá se tornar um instrumento de equiparação total,dada a história do capitalismo.Parece-me que é exatamente isso o que já está acontecendo e que, em um certo ponto, todas as culturas serão absolutamente idênticas.Se esse pesadelo continuar real,todas as culturas serão iguais.Não haverá “estrangeiridade”,mas isso é um pesadelo sinistro. Claro que há cenas locais que são provavelmente muito interessantes, mas não estou seguro de que elas possam resistir de fato à equiparação generalizada de tudo.Bem,as bienais já são as mesmas em todas as partes,são todas iguais.Por isso é tão deprimente para mim visitá-las.Elas são apenas mais uma armadilha para turistas, inventadas para o turismo, para trazer receitas para uma cidade.A primeira cidade que realmente entendeu isso foi Kassel[Alemanha].Ninguém quer ir a Kassel,que é uma das mais abomináveis cidades do mundo.Mas sua economia vive inteiramente da e para a Documenta.A Documenta faz a cidade.Kassel era muito bonita no século 18, com belos parques, e foi inteiramente destruída na Segunda Guerra Mundial — tendo sido reconstruída posteriormente.Isso é abominável.Imagine que decidam abrigar uma exposição de arte internacional na cidade mais feia da América. Isso seria muito estranho. E agora várias cidades ao redor do mundo estão fazendo a mesma coisa.Hoje o senhor faz parte do Instituto de Estudos Avançados, onde Einstein e Panofsky estiveram e onde é livre para fazer o que quiser , pois não
possui obrigação de ensinar. A partir de agora os artistas e teóricos deverão temer ainda mais suas críticas?Não,eu sou muito gentil.Não há razão para que eu seja mais agressivo do que antes.Nunca deixei de escrever uma crítica que julgasse necessária.Escrevo o que escrevo, sem mais considerações. Escrevi aquele artigo sobre o MoMA e recebi uma carta dizendo: “Oh, quanta coragem!”.Eu disse: “Que coragem?”. Mesmo na América de Bush ainda não estamos no fascismo; portanto, você pode declarar o que bem entender. Não vejo porque as pessoas deveriam ter medo de mim. É isso que você pensa, que vou lançar ataques camicase?
Mas às vezes eles o temem.Não acho que as pessoas tenham medo de mim...Mas os estudos culturais e os estudos da mulher, por exemplo, foram tendências que o senhor considerou como uma espécie de chantagem.Nunca ataquei os estudos da mulher. Quanto aos estudos culturais,
parece-me que eles são uma desculpa para não estudar o que matou o estudo dos filmes.Ao invés de olhar para o filme como um tipo de linguagem que possui toda uma estratificação diferenciada de significação,eles lidavam com as “lavadeiras”,por assim dizer.O estudo dos filmes era um campo muito bom e,embora estivesse apenas começando a se estabelecer na América, havia excelentes pessoas, como Annette Michelson e Noël Burch.Mas ele foi completamente suplantado pelos estudos culturais, que demandam muito menos energia intelectual. É
um tipo de “disciplina” vaga (que não tem nenhuma disciplina em absoluto),o tipo de coisa que engloba tudo,pois tudo pode ser posto no mesmo nível.Nesse enfoque,não existe diferença entre um grande trabalho de arte e uma bobagem.Tudo é tratado como documento,e nunca como monumento, para emprestarmos a oposição de Foucault em A arqueologia do saber. Tudo é exatamente nivelado, e penso que isso seja um desastre. Pois, se tudo está no mesmo nível, não há nada que seja mais importante e, portanto, nada é de fato importante.Para mim, criticar
significa distinguir, separar.Se colocamos tudo no mesmo caldo,acabamos com algo sem cor nem sabor,sem nenhuma diferenciação.O que o senhor tem visto que o agrada em termos de arte ultimamente?Não há uma grande quantidade de coisas que tenham me agradado ultimamente, mas eu raramente escrevo sobre coisas de que eu não gosto. Não gosto de despender muito tempo fazendo crítica de arte.Escrever contra alguém ou algo consome muita energia.Mas também porque é muito difícil ser um artista.Por isso,quando vejo algo de que
gosto, escrevo sobre ele.A última vez que vi algo que realmente me impressionou foi em Londres.Foi um show chamado Quartet,do videoartista e músico suíço Christian Marclay. Uma peça extraordinária. São quatro vídeos e quatro telas,em que ele utiliza pequenas partes de filmes como trilha para a peça, ou melhor,ele utiliza fragmentos de todos os tipos de filmes,como se esses fragmentos (imagem e sons) fossem as notas de uma peça para quarteto.Ou seja,ele usa filmes como instrumentos.Por exemplo,se uma determinada nota é dada pela voz de Marilyn Monroe em um tom bastante alto,nós a vemos cantando a mesma coisa cada vez que a nota aparece na composição musical de Marclay.Isso é absolutamente extraordinário...Realmente
brilhante, musical e estruturalmente... E eu fui com Rosalind Krauss, quando estávamos ambos em Londres para o lançamento do enorme livro sobre arte no século 20 que escrevemos com Benjamin Buchloh e Hal Foster [Art since 1900].Ela também estava completamente
fascinada.Talvez algum dia eu escreva sobre esse trabalho.Quais são seus planos futuros?
Como agora terei algum tempo, quero acabar meu volumoso livro sobre Barnett Newman e escrever um outro sobre Ellsworth Kelly.Preciso elaborar minha coleção de ensaios sobre não-composição e gostaria de reabrir meu livro a respeito da projeção axonométrica.Quem sabe faça algo sobre Matisse.Tenho tempo,você sabe...


entrevista Alain Badiou 20/12/07

Sua trajetória é peculiar, já que o sr. é um filósofo cujos primeiros livros são dois romances ("Almagestes", de 1964, e "Portulans", de 1967). Sua produção como dramaturgo conta com quase uma dezena de livros. Como a prática literária influenciou suas decisões filosóficas? No meu caso, a vocação de escritor foi originária. Escrevi meu primeiro romance quando comecei os estudos em filosofia. Na época, meu mestre era Sartre, que escrevia filosofia, mas também romances, peças de teatro, ensaios políticos. Isso me mostrou a inexistência de contradição entre a escritura literária e a escritura filosófica. Na verdade, acredito que, para compreender essa tradição francesa, é necessário retornar ao período clássico. Montaigne, Pascal, Rousseau, Diderot são escritores e filósofos. Hoje, Derrida, Deleuze ou Rancière trazem também um cuidado absoluto à escritura. E você sabe como Lacan é um escritor precioso. Claro que essa tradição literária tem conseqüências filosóficas. Trata-se da ligação entre filosofia e vida real, entre a filosofia e outras formas de pensamento e de criação. Nossa idéia de filosofia se opõe ao modelo alemão e, posteriormente, ao modelo norte-americano do filósofo como especialista isolado no mundo acadêmico. Para nós, o filósofo está no interior da cidade, ele é militante, amante, artista. Ele só se transforma em professor por razões de sobrevivência material. Mesmo Descartes era um solitário independente, estranho à filosofia oficial da Sorbonne. Na verdade, ele preferia discutir com as mulheres do que com os professores.


Em seu livro, o sr. pensa um novo regime de articulação entre filosofia e arte através do conceito de "ética", pois as grandes tendências do recurso filosófico à arte teriam se esgotado. Por que a filosofia teria fracassado na sua tentativa de pensar a arte? A filosofia tem dificuldade em reconhecer plenamente a independência da arte. A arte é por si mesma um pensamento, ela não necessita do filósofo, o inverso é mais correto. Mas não devemos levar esse reconhecimento até o desprezo estético pela filosofia, como Nietzsche. Nietzsche admira a potência vital da arte e trata o filósofo, identificado ao padre, como o "criminoso dos criminosos". Nós precisamos de novos conceitos capazes de evitar tanto o imperialismo conceitual (a arte é apenas um momento secundário na vida do espírito) quanto o imperialismo estético (a arte é o único pensamento sensível e vivo). No final do século 19, nós acreditávamos poder substituir o filósofo de Platão pelo artista-rei. É necessário um caminho entre essas duas imagens. É esse imperialismo estético que o faz criticar Heidegger e a hermenêutica? A hermenêutica de Heidegger sempre me surpreendeu por sua pouca atenção às operações artísticas do poema. Trata-se sempre de inserir a poesia em uma espécie de destino do pensamento, de mostrar como certos poemas (de Hölderlin, de Trakl, de Rilke) guardam o ser contra seu esquecimento metafísico. A singularidade dos poetas desaparece em uma profecia sobre o "tempo do afastamento" e sobre o retorno salvador. Ao contrário, meu propósito consiste em descobrir a singularidade das operações da poesia em sua irredutibilidade. Creio ter feito isso ao falar do isolamento em Mallarmé, da interrupção em Rimbaud, da encenação do século em Mandelstam. Nessa mesma linha, examinei a relação poética original entre Pessoa e o Platonismo. Um grande poema não é a voz do ser nem um encaminhamento em direção à palavra. Ele é uma experimentação local do pensamento no infinito da língua. Ele propõe uma solução a um problema preciso cujos dados ele próprio construiu por meio de imagens, cadências e estilo afirmativo . O sr. diz que a arte do século 20 foi animada pela "paixão do real". Mas vários críticos de arte avaliam a arte através de categorias como virtual, simulacro e mimetismo. Por que essa perspectiva seria inadequada para apreender a arte contemporânea? Essa paixão do real não diz respeito apenas à arte. Ela serve para explicar os empreendimentos políticos violentos que quiseram fundar uma nova ordem coletiva por meio de uma ciência do real (como o marxismo, por exemplo). Tais empreendimentos alcançaram a destruição, mas não a construção. Eles inventaram ações revolucionárias que fracassaram na construção de um novo Estado.Da mesma forma, a arte foi cada vez mais destrutiva: ela atacou a representação, a imitação, a própria obra. As considerações sobre o virtual, o simulacro, as atividades de instalações, a "body art" apenas continuaram essa tendência negativa. Para mim, uma boa parte da arte contemporânea está atrasada em relação ao movimento geral do pensamento e às novas questões filosóficas e políticas. Ela é ainda uma arte da primeira metade do século 20, uma arte que ressuscita artificialmente um conceito gasto de vanguarda.A única filosofia adequada às exigências da arte que virá é uma filosofia afirmativa, que privilegie a invenção construtiva e não a desconstrução. Em suma, uma filosofia que proponha um novo conceito de verdade. E o sr. identifica hoje algum projeto estético capaz de pensar essas novas questões filosóficas e políticas? Eu não gostaria de distribuir valores aos artistas. Isso seria manifestar novamente o imperialismo filosófico. Toda obra que procura dizer nosso mundo em sua extensão e variedade me interessa. Nesse sentido, continuo um realista, um clássico contemporâneo. Mas, se a vanguarda esgotou seus recursos, não devemos retornar aos sistemas antigos de representação, seja a figuração na pintura, a tonalidade na música, a narração objetiva na literatura ou a teatralidade simplificada no cinema. A visão pós-moderna de um ecletismo livre que mistura épocas e culturas também me é estranha. Procuro um novo conceito de verdade e não cederei às tentações do relativismo cultural. Para mim, trata-se de inventar um novo realismo, uma capacidade formal de dizer, universalmente, nossa situação no mundo. Foi o que tentei em meu romance "Calme Bloc Ici-bas" (1998). Não o cito por vaidade, mas para assumir uma responsabilidade. Sobre esse novo conceito de verdade, o sr. afirmou que a modernidade filosófica ainda não está à altura de Fernando Pessoa. Como sua poesia pode orientar a filosofia nessa procura?
Veja, a força de sua poesia não vem do reconhecimento de uma autoridade sacral ou de uma revelação do ser. A construção poética de Pessoa é essencialmente racionalista, e o poema está a serviço de uma meditação centrada na questão da metafísica. Pessoa coloca a seguinte questão: se a metafísica em seu sentido estritamente filosófico se tornou impossível, como a poesia pode falar em seu próprio nome dessa impossibilidade e dos meios de reconstruir uma estrutura geral para o pensamento. A partir dessa questão, Pessoa se entrega a operações poéticas complexas, cujo sistema de heterônimos é apenas uma recapitulação formal. Creio que a filosofia contemporânea se enfraquecerá consideravelmente se insistir em ignorar tais operações. É surpreendente que os heideggerianos não levem em consideração o pensamento do ser nos poemas de Caeiro. O sr. é o principal teórico da esquerda a defender uma política sem partido. Não haveria nenhuma política possível de esquerda no interior do sistema parlamentar de representação? Precisamos primeiro redefinir o que é uma política "de esquerda". A questão hoje não é exatamente a existência de orientações políticas, mas a existência da própria política. Depois do fracasso dos Estados pós-revolucionários, estamos diante da tarefa de desenvolver um projeto completo de emancipação coletiva. Nós estamos ainda no estágio experimental desse projeto. Mas uma coisa é certa: devemos romper com o sistema de representação parlamentar e com a ideologia "democrática" ocidental. Essa ruptura será facilitada por uma evidência: cada vez mais esse "democratismo" apenas serve para encobrir as intervenções militares e as ingerências, particularmente do Exército norte-americano, mas com a cumplicidade ou com a resignação covarde dos europeus e japoneses. É necessário experimentar outras vias e romper com o monopólio político exigido pela "democracia".



Wednesday, December 19, 2007

Einstein e Picasso: mera coincidência?19/12/07 entrevista Arthur I. Miller


Professor de história e filosofia da ciência em Londres, no ReinoUnido, Arthur I. Miller fala nesta entrevista sobre os paralelosexistentes entre as vidas e as obras de Albert Einstein e PabloPicasso, tema do livro Einstein & Picasso: Space, time, and thebeauty that causes havoc, de sua autoria. Ele conta como seinteressou pelo tema e relata as principais descobertas que fez aolongo da pesquisa para o livro. O fato de ambos teremproduzido seus trabalhos mais importantes no mesmo período –Einstein formulou a Teoria da Relatividade Especial em 1905 ePicasso pintou Les Demoiselles D’Avignon em 1907 – motivouMiller a estudar mais profundamente a relação entre eles. E suaprincipal descoberta foi a de que essa produção quase simultâneavai bastante além de uma mera coincidência.
A relação entre a ciência e a arte tem uma trajetória instável aolongo da história. A obra de Leonardo da Vinci, de um lado,pode ser considerada um dos momentos onde essa interação esteve forte. A instituição da ciência moderna, de outro, parece ter conduzido a um distanciamento crescente entre as duas manifestações.No início do século XX, todavia, tanto a ciência como a arte vivem momentos de grande ruptura. Enquanto na Suíça AlbertEinstein formula, em 1905, a Teoria da Relatividade, revolucionandoo mundo da física, Pablo Picasso pinta em Paris, em 1907, LesDemoiselles d’Avignon, causando uma ruptura no campo da arte.Intrigado pelo fato de o maior cientista do século XX e o artista mais famoso do mesmo período terem produzido seus trabalhos de maior impacto quase ao mesmo tempo, o físico norte-americano Arthur Miller, professor de história e filosofia da ciência do University College London (Reino Unido), decidiu estudar a fundovida e obra de Einstein e Picasso e o contexto histórico da época em que tiveram seus picos de criatividade.O resultado dessa pesquisa, que remete à década de 1970, está no livro Einstein & Picasso: space, time, and the beauty that causes havoc.Miller veio ao Brasil em julho de 2005 falar sobre esse trabalho. EmFortaleza, uma das três cidades em que proferiu palestra, o físico concedeu a seguinte entrevista a Carla Almeida, Luisa Massarani e José Claudio Reis, na qual mostra que os paralelos existentes entreEinstein e Picasso não são apenas coincidência. Segundo Miller,ambos respondiam, cada um à sua maneira, às idéias revolucionárias da avant garde, movimento intelectual que abrangia toda a europa no início do século XX e questionava as visões clássicas sobre espaço e tempo – o ponto principal dos trabalhos de Einstein e Picasso.Como você veio a se interessar pela interface entre ciência e arte?Durante toda a minha formação em física, eu estava interessado de fato em entender a natureza das perguntas. Decidi, assim, alguns anos depois de receber o título de PhD em física, aprofundarme na história e filosofia da física. Lendo os artigos científicos originais em alemão sobre a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica,fiquei perplexo com a importância da imagem visual, com o modo pelo qual ela é formada em nossa mente, como é usada e armazenada.E, claro, quando estudamos imagem visual, somos levados naturalmente à relação entre ciência e arte e às noções de estética ebeleza; o que são elas de fato?Por que Einstein e Picasso, especificamente?Quanto a Einstein e Picasso, sempre me deixou intrigado o fatode terem feito seus trabalhos mais importantes quase ao mesmo tempo: Einstein formulou a Teoria da Relatividade Especial em 1905 e Picasso produziu Les Demoiselles D’Avignon em 1907. Ambos os trabalhos tratavam do mesmo problema: a natureza do espaço e tempo e, particularmente, a natureza da simultaneidade. Isto seria obra do acaso? Pesquisando sobre o assunto descobri que não;ambos respondiam à avant garde, as ondas intelectuais que inundavama Europa. O principal interesse da avant garde era a naturezado espaço e do tempo, era o questionamento das maneiras intuitivas clássicas de se entender isso. Esse questionamento foi se difundindo por diversas áreas como arquitetura, arte, música e, é claro,física. Picasso e Einstein estavam respondendo, cada um à sua maneira, a esse movimento.Quais são os principais paralelos encontrados nas vidas pessoais e profissionaisde Einstein e Picasso?O principal paralelo, em se tratando de ciência, é que ambos estavam interessados na mesma questão, a natureza do espaço e do tempo e, particularmente, na natureza da simultaneidade. Em suas vidas pessoais, eles tinham problemas bastante similares; tinham,por exemplo, problemas com mulheres. Na época em que produziam seus trabalhos mais importantes, passavam por uma fase turbulentaem seus relacionamentos amorosos. Eles sugavam energia dessas pessoas, e acho que sugavam energia de todos aqueles que estavam às suas voltas, concentrando essa energia nas questões em que trabalhavam. Outro paralelo é que nem Einstein nem Picasso abandonaram seus fundamentos clássicos. Einstein continuou sendo um físico clássico e Picasso optou por figuras e formas clássicas, embora não no sentido pré-cubista. Einstein nunca aceitoua mais incrível previsão da Relatividade Geral – os buracos negros. Picasso nunca participou do expressionismo abstrato. Na verdade, em uma fase mais avançada do cubismo, em 1910-1911, ele conscientemente se distanciou da super-geometrização. Ele colava,por exemplo, pedaços de corda e papel de parede nas telas com o objetivo de mostrar que o observador continuava preso ao mundo em que vivemos.No seu livro Einstein, Picasso: space, time, and the beauty thatcauses havoc, você menciona também que Einstein e Picasso tinham seus grupos de discussão, onde trocavam idéias sobre quase tudo...O que me deixou perplexo em relação a Einstein e Picasso é que eles foram as primeiras pessoas a usar grupos interdisciplinares de discussão. Eles tinham amigos e colegas que organizavam círculos literários e os alimentavam com informações, as quais seriam reinterpretadas por eles de diversas maneiras criativas. Ambos tinham seus grupos de discussão. Einstein tinha a “AcademiaOlimpia” e Picasso tinha la bande à Picasso. Em relação aos lugares
em que produziram seus trabalhos mais criativos, é interessanteque Einstein tenha deixado o escritório de patentes em 1909 e Picasso tenha deixado Le Bateau-Lavoir em 1909. Além disso, seus trabalhos de ruptura não foram imediatamente reconhecidos pelo que eram.Eles eram apreciados, se eram, por razões completamente equivocadas.Prova disso é Einstein ainda ter ficado quatro anos no escritório de patentes. Sua Teoria da Relatividade foi interpretada inicialmente como um embelezamento da teoria do elétron, que era de outra pessoa. Les Demoiselles D’Avignon, de Picasso, não foi exibida publicamente até 1916 e só foi vendida em 1926.Einstein e Picasso debatiam os mesmos assuntos em seus grupos dediscussão?Na “Academia Olimpia” debatiam-se todos os campos do conhecimento.Seus integrantes discutiam desde a filosofia grega atéa filosofia do começo do século XX; falavam sobre literatura, ciência e tecnologia.O núcleo do grupo eram Einstein, Conrad Habichte Maurice Solovine. Outras pessoas, no entanto, eram convidadas a participar das sessões. Mileva, a esposa de Einstein, participavade tempos em tempos, mas nunca contribuiu muito. Desnecessário dizer que eles discutiam o que estava acontecendo no campo da física. Na “Academia Olimpia”, Einstein expôs suas idéias sobre uma teoria da relatividade – de espaço e tempo. Sabe-se que ele teve também conversas particularmente importantes com uma pessoa com quem manteve amizade durante toda a vida – Michele Besso,imortalizado por uma nota de agradecimento no artigo de Einstein sobre a relatividade, de 1905. O núcleo de la bande à Picasso não era composto por artistas, mas por escritores da nova geração – André Salmon, Guillaume Apollinaire e Max Jacob. Eles mantinham Picasso informado sobre novas descobertas nos campos da arte,literatura e ciência. Mas, no que se refere à ciência, a pessoa que mais ajudou Picasso foi Maurice Princet. Ele era um membro marginaldo grupo. Estatístico preciso, Princet também era matemático amador – interessado em tópicos avançados da geometria e em sua filosofia. Ele introduziu Picasso nesse tópico e também o apresentou aos escritos do polímata francês Henri Poincaré. Quando descobri essa conexão, tive uma grande surpresa – os escritos de Poincaré também tiveram grande importância para as idéias de Einstein que o levaram à descoberta da Teoria da Relatividade, em 1905.Qual a influência de Poincaré em cada um?Os escritos de Poincaré sobre espaço e tempo interessavam a ambos. A Einstein, interessavam suas idéias sobre como sincronizar relógios e sobre a importância da relatividade. A Picasso, interessavaseu trabalho sobre como geômetras podem visualizar a quarta dimensão. Poincaré chegou perto da teoria da relatividade. Ele tinha em mãos as mesmas informações que Einstein, mas foi Einstein que chegou lá. Como você avalia o ocorrido?O interessante nesse episódio é que tanto Einstein quanto Poincaré tinham a mesma informação experimental à disposição e eles representaram aquela informação experimental com as mesmas fórmulas matemáticas, mas Einstein interpretou aquela informação como uma teoria da relatividade e Poincaré como uma teoria do elétron. O que fez a diferença para Einstein foram suas considerações sobre simetria e o uso que fez de experimentos conceituais; foi isso que Poincaré não levou em consideração. Desta maneira, Einstein conseguiu dar um passo em direção à concepção acima da percepção. Poincaré não descobriu a relatividade,mesmo tendo toda a formulação matemática; ele não deu esse salto porque não levou em consideração a natureza do tempo, a natureza da simultaneidade. Einstein levou. Percepção acima da concepção era a maneira pela qual ciência e arte eram feitas até então.Einstein e Picasso viraram a mesa. Eles reverteram isto. Essa reversão se deu através do aumento da abstração. Maior abstração levou-os à descoberta de uma nova estética. Para Einstein, a estética era minimalista, e para Picasso a nova estética era a redução de formas geométricas.A quarta dimensão chegou à literatura antes dos trabalhos de Poincaré. Olivro The time machine, de H. G. Wells, foi publicado em 1895. A literaturateve alguma influência nos trabalhos de Einstein e Picasso?H. G. Wells foi a primeira pessoa a escrever sobre a quarta dimensão.Não encontrei provas da influência dele em Einstein. Eunão tenho certeza se, naquela época, H. G. Wells era lido em outra língua além do inglês. E certamente ele não teve nenhuma influência em Picasso. No entanto, a concepção de tempo como a quarta dimensão não foi discutida até 1907, dois anos após a Teoria daRelatividade. Foi de 1907 em diante que o tempo apareceu na literatura como a quarta dimensão. Embora Poincaré já tivesse escrito isso,a idéia não foi introduzida na física de forma que os físicos se tornassem interessados no assunto. Porque eles estavam se concentrando nas idéias da teoria de Einstein, e o que Poincaré esta vafazendo era muito matemático. De qualquer maneira, nunca soube de nenhuma menção a H. G. Wells feita por Minkowski ou MaxBorn, outro físico famoso. E eles liam amplamente, até mesmo em inglês. Até onde sei, não leram H. G. Wells.Quando começou a pesquisa para o livro?No que se refere a Einstein e Poincaré, há uma longa trajetória que nos leva de volta ao início dos anos 70. Em 1976, tive a grande sorte de descobrir em Paris todos os artigos e manuscritos de Poincaré. Estavam na casa de seu neto. Em relação a Picasso, fui achando material ao longo dos anos, mas passei o ano de 1999 fazendo um intenso trabalho de pesquisa no Museu Picasso, emParis, onde tudo relacionado a Picasso está em um único espaço,não muito grande. Espantoso!No seu livro, você cita a seguinte frase de Picasso: “Pinturas são nada mais que pesquisa e experimento. Nunca pinto um quadro como um trabalho de arte. Todos são pesquisa. Pesquiso constantemente e há uma seqüência lógica em toda esta pesquisa”. Como você mesmo diz, Picasso gostava de brincar com repórteres, sendo algumas vezes bastante irônico e exagerado...Você acredita que ele realmente queria dizer isto?Acho que ele queria dizer isso mesmo. No meu livro, discuto que era preciso ser muito cuidadoso com o que Picasso dizia em entrevistas,porque ele gostava de brincar com jornalistas. Mas acho que ele estava sendo sincero quando disse isso, principalmente no caso deLes Demoiselles d’Avignon. Há milhares de esboços feitos por ele. Ele trabalhou bastante nesse sentido durante os anos cubistas. Os anos foram então passando até ele fazer Guernica, em 1937, e ali ele voltou a esse estilo de trabalhar, o mesmo do Les Demoiselles d’Avignon, numerando e datando os esboços. Essa é uma ótima citação.Qual foi o impacto dos trabalhos de Einstein sobre simetria no campo das artes?Einstein introduziu a noção de simetria na física no século XX,com os três artigos que escreveu em 1905. Foi o trabalho de Picasso na redução das formas através da geometria que teve impacto nas artes. Na verdade, a parte da Teoria da Relatividade que os artistas achavam extremamente interessante era E=mc2. A massa, de um lado, algo substancial, como uma mesa e uma cadeira; a energia, de outro, amórfica, espalhada, em todo lugar. E=mc2 iguala estas duas entidades (através da velocidade da luz). Os artistas entenderam isso de uma forma excitante e imaginativa, o que levou ao“expressionismo abstrato”. Foi isto que influenciou Kandinsky, cujo quadro de 1910, Improvisation, foi o primeiro quadro abstrato expressionista.Os estudos sobre ciência e arte se concentram geralmente em momentos de crise na história. Como essa relação flui quando esse não é o caso?A história da ciência e da arte remete aos tempos de Leonardo da Vinci e Galileu Galilei, que eram artistas e cientistas. Com o início da ciência moderna, houve uma ruptura entre elas. A arte passou a ser considerada frívola, e a ciência, uma coisa real. Penso que agora elas estão se unindo novamente, pois vivemos em uma cultura extremamente visual, trabalhamos em frente ao computador...Acredito que, daqui a alguns milhares de anos, haverá uma nova linguagem para se fazer ciência, uma linguagem arte/ciência pela qual será possível de fato desenhar de forma criativa em uma tela de cristal líquido.Você acredita que as novas tecnologias aplicadas à arte – novas tintas,novos processos... – irão aproximar os artistas da ciência e da tecnologia?Certamente. Novas tecnologias em arte sempre cresceram junto com a ciência. Em meados do século XIX, a fotografia foi inventadae outras tecnologias emergiram, como a produção de tintas em tubos,que possibilitaram aos artistas usufruir de grande liberdade.É interessante mencionar aqui um episódio em que a arte influenciou a tecnologia – a invenção da fotografia colorida, por GabrielLippmann, resultou da observação das pinturas de Georges Seurat.Tem havido numerosas interações entre ciência e arte no séculoXX, mas, nos dias de hoje, em que vivemos em uma cultura altamente visual, elas estão se aproximando ainda mais.E Salvador Dalí? Como você analisa a relação do pintor com a ciência?Não li muito sobre ele, mas as pessoas sempre citam a relação deDalí com a física. Claramente ele sabia da relatividade do tempo em suas pinturas de relógios. Dalí lia um pouco sobre ciência, assim como Marcel Duchamp, e eles de fato usaram um pouco de física em seus quadros.Há uma tendência atual, na divulgação científica, de se usar a arte como ferramenta de popularização da ciência. Como você avalia isso?Considero uma boa idéia usar novas maneiras de se falar deciência, que não as usuais. A peça Copenhagen é um ótimo exemplo.Michael Frayn tem um pouco de formação científica. Ele diz que tirou a idéia para a peça de um livro de Thomas Powers sobre Heisenberg. Em uma parte do livro, Powers conta que em setembro de 1941 Heisenberg e Bohr se encontraram em Copenhagen e nunca ninguém soube ao certo sobre o que falaram, mas aquele encontro os deixou muito perturbados e os marcou para o resto da vida. Frayn disse: “Bem, isso é alimento para dramaturgos”. O interessanteé que mesmo as pessoas que nada sabiam sobre física atômica sentaram-se lá e aproveitaram. Perguntei a ele como conseguia fazer isso. Todas as peças que havia escrito até então tinham temas mais leves... Ele fez um trabalho genial. Desenho animado também é um bom exemplo. Às vezes, é a única maneira de passara mensagem, porque não há como fotografar alguém apontando para um buraco negro, por exemplo.Falando em buraco negro, conte-nos sobre seu novo livro.É uma história de aventura que aborda o postulado sobre buracos negros, apresentado na década de 1930 por um físico indiano chamado Subrahmanyan Chandrasekhar, Chandra, e a maneira como Eddington, um dos maiores astrofísico da época, rejeitou-o.Quatro anos antes de Chandra, Eddington havia sugerido a existência dos buracos negros. Mas quando apareceu um garoto indianode 19 anos mostrando que isso podia de fato ser verdade,Eddington o atacou visceralmente, tão visceralmente que acabou arruinando as vidas de ambos. Cabe lembrar que todo mundo achavao conceito de buraco negro um tanto ridículo, mesmo que seguisse logicamente a Teoria da Relatividade Geral de Einstein. Até Einstein achava. Mas, no final dos anos 60, cientistas estavam aptosa acreditar que tal coisa podia realmente existir. Meu livro conta a história fascinante de como isso aconteceu, como os cientistas começaram a acreditar nisso.Como você passou de Einstein e Picasso para buracos negros?Sempre me interessei pela controvérsia entre Chandra eEddington. Todos sabem que os dois tiveram uma enorme discussão que arruinou suas vidas, mas ninguém lembra direito o que aconteceu, assim como ocorreu com a história de Copenhagen.Decidi então sentar e escrever.Como seus colegas cientistas vêem seu trabalho como escritor?Eles gostaram muito de alguém ter estabelecido uma conexão entre Einstein e Picasso. Alguns dos meus argumentos são conjeturais,mas a força da segunda evidência histórica – o efeito da avant garde sobre eles – é tão poderoso que certamente leva as pessoas a fazerem essa conexão. Cientistas de fato acreditam que há uma relação entre arte e ciência e estão interessados em ver isso ser discutido em nível cultural, porque estudos interdisciplinares estão se tornando muito importantes nos Estados Unidos e no ReinoUnido, não sei ao certo no Brasil. As disciplinas básicas estão se quebrando. A física está se transformando em relatividade, astrofísica,cosmologia, física médica, física computacional e por aí vai.Todas essas áreas se alimentam umas das outras. Todos estão interessados na interdisciplinaridade e em discutir seus temas de um ponto de vista que possibilite que façam essa abertura.Você está pensando em trabalhar em alguma outra relação entre física e arte? Como na relação entre mecânica quântica e surrealismo?Certamente tenho outras idéias na cabeça, como por exemplo explorar mais a fundo as noções de intuição e estética, o que torna uma equação bonita, e o que realmente torna uma teoria bonita, o que uma pessoa pode dizer sobre a beleza como critério para a descoberta,para teorias futuras.