*(LITERATURA CLANDESTINA REVOLUCIONÁRIA)*MICHEL FOUCAULT LIBERTE-ME.

VC LEU MICHEL FOUCAULT,NÃO?ENTÃO O QUE VC ESTÁ ESPERANDO FILHO DA PUTA?ELE É A CHAVE DA EVOLUÇÃO DOS HUMANOS.HISTORIA DA LOUCURA,NASCIMENTO DA CLINICA,AS PALAVRAS E AS COISAS,ARQUEOLOGIA DO SABER,A ORDEM DO DISCURSO,EU PIERRE RIVIÉRE,A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS,VIGIAR E PUNIR,HISTORIA DA SEXUALIDADE,EM DEFESA DA SOCIEDADE,OS ANORMAIS...EVOLUÇÃO OU MORTE!

Sunday, September 30, 2007

A pintura inflama a escrita.Gilles Deleuze 30/09/07

http://br.youtube.com/watch?v=XI_oWrseTKk&mode=related&search=

– Antes de o texto ter sido produzido que forma assumia sua admiração por Bacon?Gilles Deleuze – Na maior parte das pessoas, Bacon provoca um choque. Ele próprio diz que seu
trabalho consiste em produzir imagens, e se trata de imagens-choque. O sentido desse choque não remete a algo de “sensacional” (o que é representado), mas depende da sensação, isto é, de linhas e de cores.Confrontamo-nos com a presença intensa de figuras, às vezes solitárias, às vezes com vários corpos, suspensos horizontalmente, em uma eternidade de cores. Perguntamo-nos, então,como esse mistério é possível. Vemo-nos a imaginar a imaginar o lugar de um pintor desses na
pintura contemporânea, e mais geralmente na história da arte (por exemplo, a arte egípcia).Parece-me que a pintura atual ofereceria três grandes direções, que seria preciso definir não
formalmente, mas material e geneticamente: a abstração, o expressionismo, e aquilo que Lyotard chama de Figural, que é diferente do figurativo, exatamente uma produção de Figuras. Bacon vai mais longe nessa última direção.– Em um certo momento, você estabelece um vínculo entre os personagens de Bacon e os de Kafka: escrever sobre Bacon depois de ter escrito sobre Sacher-Masoch, Proust, depois Kafka, há também aí um vínculo?G. D. – O vínculo é múltiplo. Trata-se de autores de Figuras. Seria preciso distinguir vários níveis.Inicialmente, eles nos apresentam sofrimentos insondáveis, angústias profundas. Depois, tomamos consciência de uma espécie de “maneirismo”, no sentido artístico da palavra, à la Miguel Ângelo,pleno de força e de humor. E nos apercebemos que, longe de ser uma sobrecarga de complicação,trata-se do fato de uma pura simplicidade. Aquilo que acreditávamos ser tortura ou contorsão remete a posturas muito naturais. Bacon parece produzir personagens torturados, diz-se a mesma coisa de Kafka, poderíamos acrescentar Beckett, mais basta olhar alguém que é obrigado a ficar sentado durante um longo tempo, por exemplo uma criança na escola, para ver que seu corpo assume apenas as posturas mais “econômicas” em função de todas as forças que se exercem sobre ele. Kafka tem a obsessão de um teto que pesa sobre a cabeça de alguém: ou então o queixo se enfia horrivelmente no peito, ou ainda a extremidade do crânio vai furar o teto... Em suma, há duas coisas muito diferentes: a violência das situações, que é figurativa, mas também a incrível violência das posturas, que é “figural” e muito mais difícil de apreender.


– Como se escreve um livro sobre a pintura, apelando-se a coisas ou a seres da literatura, aqui Kafka, Proust, Beckett?G. D. – Aquilo que se chama em literatura de estilo existe em pintura: trata-se de um conjunto de linhas e de cores. E se reconhece um escritor por sua maneira de envolver, de desenrolar ou de quebrar uma linha em “sua” frase. O segredo da grande literatura está em ir em direção a uma sobriedade cada vez maior. Para citar um autor que eu adoro, uma frase de Kerouac termina por uma linha de desenho japonês, ela mal se apóia sobre o papel. Um poema de Ginsberg é como uma linha expressionista quebrada. Pode-se, assim, imaginar um mundo comum ou comparável entre pintores e escritores. É essa precisamente a jogada da caligrafia. – Escrever sobre a pintura lhe proporcionou um prazer particular?






G. D. – Deu-me medo, parecia-me verdadeiramente difícil. Há dois perigos: ou se descreve o quadro, e nesse momento um quadro real não é necessário (com seu gênio, Robbe-Grillet e Claude Simon conseguiram descrever quadros que não precisavam existir), ou então se cai na indeterminação, a efusão sentimental da metafísica aplicada. O problema próprio da pintura está nas linhas e nas cores. É difícil extrair conceitos científicos que não sejam do tipo matemático ou físico, que não sejam tampouco da literatura projetada sobre a pintura, mas que sejam como que talhados pela e na pintura.
– Não seria isso também uma maneira de subverter o vocabulário crítico, de reanimá-lo?
G. D. – A escrita tem seu próprio calor, mas é ao pensar na pintura que apreendemos melhor a
linha e a cor de uma frase, como se o quadro comunicasse algo às frases... Raramente fiz um livro com tal prazer. Quando se trata de um colorista como Bacon, a confrontação com a cor é
transtornante.– Quando você fala do clichê ambiente que preexiste à tela, você não aborda também o problema do escritor?G. D. – A tela não é uma superfície branca. Ela já está toda carregada de clichês, ainda que não os vejamos. O trabalho do pintor consiste em destruí-los: o pintor deve passar por um momento em que ele não vê mais nada, por um desmoronamento das coordenadas visuais. É por isso que eu digo que a pintura incorpora uma catástrofe, ela é mesmo a matriz do quadro. Isso já é evidente em Cézanne, Van Gogh. No caso das outras artes, a luta contra os clichês é muito importante, mas ela permanece exterior à obra, ainda que ela seja interior ao autor. Exceto em casos como o de Artaud, no qual o desmoronamento das coordenadas lingüísticas ordinárias pertence à obra. Em pintura, ao contrário, trata-se de uma regra: o quadro provém de uma catástrofe ótica, que permanece presente sobre o próprio quadro.


– Você escreveu com as pinturas à sua frente?
G. D. – Escrevi com as reproduções à minha frente, e aí tomei de Bacon o seu método: quando ele pensa em um quadro, ele não vai vê-lo, ele tem fotos coloridas dele ou mesmo fotos em preto em branco. Volto para ver os quadros apenas no meio do trabalho de escrita ou depois.
– Você tem, às vezes, necessidade de se desligar da obra, de esquecê-la?G. D. – Não tenho necessidade de esquecê-la. Havia um momento em que a reprodução não servia mais para nada porque ela já tinha me remetido a uma outra reprodução. Um exemplo: eu olho os trípticos e tenho o sentimento de que há uma espécie de lei interior. Isso me força a saltar de uma reprodução a outra para compará-las. Segundo momento: tenho a impressão de que se
essa lei existe, ela deve estar ali de uma maneira oculta, mesmo nos quadros simples. Era uma
idéia que estava no ar e que me veio entre os trípticos.Terceiro momento, ao folhear as reproduções dos quadros simples, caio num quadro intitulado O Homem e a Criança, no qual a construção em tríptico me parece evidente. Ele representa uma jovem estranha, com pés enormes, e que tem um ar sério, os braços cruzados, e que olha para um homem, como faz Bacon, sentado sobre um banquinho regulável, do qual não se sabe se ele está descendo ou subindo. É evidente que esse quadro, por sua organização, é um tríptico envolvido em vez de ser um tríptico desenvolvido. Assim, as reproduções me remetiam umas às outras, mas é geralmente entre duas delas que se tem uma idéia que remete a gente a uma terceira reprodução...– De que maneira as entrevistas de David Sylvester com Bacon foram uma base de trabalho,diferente dos quadros?
G. D. – É uma base necessária. Primeiramente, as entrevistas são bonitas, e Bacon diz muitas
coisas. Em geral, quando os artistas falam daquilo que fazem, eles têm uma modéstia
extraordinária, uma severidade com eles próprios, e uma grande força. Eles são os primeiros a sugerir muito fortemente a natureza dos conceitos e dos afectos que se despreendem de sua obra.Os textos de um pintor agem, portanto, de uma maneira inteiramente diferente da de seus quadros. Quando se lêem as entrevistas, tem-se sempre a vontade de fazer perguntas suplementares, e como a gente sabe que não se poderá fazê-las, é preciso se virar inteiramente sozinho.– Você não encontrou Bacon? G. D. – Sim, mais tarde, depois desse livro. Sente-se nele potência e violência, mas também um
charme muito grande. Se ele fica sentado durante uma hora, ele se torce em todos os sentidos,
dir-se-ia que é, verdadeiramente, um Bacon. Mas sua postura é sempre simples, por causa de uma sensação que ele aprova, talvez. Bacon distingue a violência do espetáculo, que não lhe interessa,e a violência da sensação como objeto da pintura. Ele diz: “Começo por pintar o horror, as touradas ou as crucificações, mas isso é ainda demasiadamente dramático. O que conta é pintar o grito”. O horror é ainda demasiadamente figurativo, e ao passar do horror ao grito, obtém-se um ganho formidável na sobriedade, toda a facilidade da figuração cai. Os Bacon mais belos são personagens que dormem, ou um homem visto de costas, barbeando-se.– Seu livro tem, de qualquer maneira, a aspiração, por detrás de sua dimensão de homenagem, de
fazer com que se vejam melhor as pinturas de Bacon?G. D. – Se ele fosse bem sucedido, teria necessariamente esse efeito. Mas acredito que ele tem uma aspiração mais alta, com a qual todo mundo sonha: aproximar-se de algo que seja como que um fundo comum das palavras, das linhas e das cores, e mesmo dos sons. Escrever sobre pintura,escrever sobre música implica sempre essa aspiração.– O segundo volume do livro (as reproduções das pinturas), que não segue a ordem cronológica da obra de Bacon, deveria sê-lo da história de sua ligação com Bacon, isto é, reconstituir uma ordem de visão?D. G. – Com efeito, na margem do texto, há números que remetem à reprodução dos quadros.Essa ordem de surgimento é um pouco perturbada por razões técnicas (o lugar dos trípticos). Mas,em sua sucessão, ele não remete a uma cronologia de Bacon. Ele vai, antes, logicamente, de aspectos relativamente simples a aspectos relativamente complexos. Um mesmo quadro pode,pois, ressurgir quando se descobre nele um aspecto mais complexo.Quanto à cronologia, Sylvester distingue nas entrevistas três períodos de Bacon e os define muito bem. Mas, após um certo tempo, Bacon se lança em um novo período: a potência que tem um pintor de se renovar. Ao que eu saiba, não há mais que três quadros: um jato d’água, um jato de erva e um jato de areia. É inteiramente novo, toda “figura” desapareceu. Quando encontrei Bacon, ele dizia que sonhava em pintar uma onda, mas que ele não ousava acreditar no sucesso de um tal empreendimento. Trata-se de uma grande lição de pintura, um grande pintor que chega a dizer: “Seria muito bom se eu pudesse apreender uma pequena onda...”. É muito proustiano; ou então Cézanne: “Ah, se eu pudesse chegar a pintar uma pequena maçã!”.– Você descreve a obra, você tenta definir seus sistemas, mas em nenhum momento você diz“eu”.G. D. – A emoção não diz “eu”. Você mesmo o diz, a gente está fora de si. A emoção não é da ordem do mim, mas do acontecimento. É muito difícil apreender um acontecimento, mas não acredito que essa apreensão implique a primeira pessoa. Seria preciso, antes, recorrer, como Maurice Blanchot, à terceira pessoa, quando ele diz que há mais intensidade na proposição “ele sofre” que em “eu sofro”.







Saturday, September 29, 2007

Entrevista PETER SINGER 29/09/07



BOB ABERNETHY: Comecemos por algumas das suas ideias básicas. Diz que um ser humano, uma pessoa, não tem necessariamente valor devido a uma qualidade intrínseca ao facto de ser pessoa, mas que o que é importante são certas qualidades. Que qualidades são essas?
PETER SINGER: Primeiro, é importante dizer que do meu ponto de vista é um ser humano que não tem valor simplesmente por pertencer à espécie Homo Sapiens e não uma pessoa. O mero facto de pertencer a uma espécie não é suficiente. As qualidades que penso serem importantes são, primeiro, a capacidade de ter experiência de algo ― isto é, a capacidade de sentir dor, ou de ter qualquer espécie de sentimentos. Isso é realmente básico. Mas isso é algo que partilhamos com um grande número de animais não-humanos. Além disso, quando se trata de tirar a vida, ou permitir o fim da vida, diria que é relevante se um ser é o género de ser que pode ver que ele ou ela têm de facto uma vida ― isto é, pode ver que ele ou ela é o mesmo ser que existe agora, que existiu no passado e existirá no futuro.Uso o termo "pessoa" para referir um ser com esse género de autoconsciência ― nas palavras do filósofo James Rachels, um ser que pode viver uma vida biográfica e não apenas uma vida biológica. Uma pessoa tem muito mais a perder quando a sua vida acaba do que um ser que tem consciência e pode sentir dor, mas apesar disso tem consciência da sua existência apenas momento a momento, tendo apenas um momento de consciência e depois outro, sem compreender a ligação que existe entre eles.BA: Alguns dos seus críticos acusaram-no ― precisamente nesse ponto ― de abandonar completamente a tradição Judaico-Cristã no que respeita ao valor da vida humana. O que responde a isso?PS: Aceito a acusação. Penso que a tradição Judaico-Cristã tem uma tendência unjusticável a favor dos seres humanos enquanto seres humanos; nesse ponto precisa de ser grandemente revista. Se olhar para o livro do Génesis, vê que os seres humanos são especiais, que Deus criou os seres humanos à sua própria imagem e deu-lhes domínio sobre os outros animais. Pelo menos desde Darwin que sabemos que isso é factualmente falso e agora temos de tirar as implicações morais que daí resultam.
BA: Muito bem, a ideia com que muitos de nós fomos criados e a que estamos apegados é a de que cada ser humano é uma criatura de Deus, que devido a isso tem valor intrínseco, e que, portanto, há uma santidade da vida humana. Como é que lida com isto?PS: Não acredito na existência de Deus, pelo que rejeito também a ideia de que cada ser humano é uma criatura de Deus. É tão simples como isso. Ora, se você tem um ponto de vista diferente, baseado numa crença religiosa, é óbvio que tem o direito de viver a sua própria vida de acordo com os seus pontos de vista religiosos, desde que não interfira com outros que não partilham os seus pontos de vista. O que gostaria de ver era uma sociedade que, nas suas leis e ética pública, não fosse dominada por quaisquer doutrinas religiosas. É claro que nem toda a gente nesta sociedade ou qualquer outra em que tenha vivido acredita em Deus.BA: Sendo assim, como é que chega ao que é moral? Qual é o seu princípio básico, fundamental?PS: Temos de usar o nosso próprio pensamento e reflexão para tentar ver de que é que não gostaríamos se nos fosse feito. Nessa medida, poderia dizer que pertenço a uma tradição religiosa porque isto é muito semelhante à regra de oiro. Mas, como é óbvio, a regra de oiro não é exclusiva da tradição Judaico-Cristã. Encontra-se também noutras tradições. Penso que é algo a que os seres humanos que reflectem podem chegar independentemente da religião ― esta ideia de não querer fazer a outros o que não gostaríamos que nos fizessem. Talvez, como R. M. Hare, o meu professor na Universidade de Oxford, defendeu, seja algo que pode ser derivado do próprio conceito de moralidade. Seja como for, vejo-o como uma base a partir da qual é possível desenvolver uma perspectiva moral, e foi isso que tentei fazer.BA: Mas você também diz que são as consequências que permitem determinar se um acto é moral.PS: Penso que a ideia de determinar o que é correcto e o que é errado considerando as suas consequências é pode fluir da ideia da regra de oiro, embora certamente nem todos os pensadores tenham visto as coisas assim. Mas se diz "Se eu estivesse naquela posição, não quereria que me fizessem aquilo", está, de facto, a considerar as consequências do acto. Não está a examinar se isto se conforma ou não com uma regra.
BA: Apenas para que isto fique claro, a sua posição é essencialmente uma posição utilitarista, segundo a qual se algo é moral depende da consequência provável. Certo?
PS: Certo. Não penso que possa decidir se uma acção é correcta ou errada sem ter em conta os efeitos, o que ocasionará, que impacto tem nas pessoas, nos animais, ou no planeta.
BA: Ora, onde é que tudo isto leva? Preocupa-se bastante e escreveu muito sobre aliviar o sofrimento. Fale um pouco sobre isso. Não apenas do sofrimento individual, mas em termos de todo o globo.PS: Penso que se seguirmos essa ideia de "fazer aos outros", embora as pessoas tenham tipos de preferências e necessidades diferentes, uma coisa é razoavelmente geral: as pessoas não querem sofrer. Não desejam a dor física extrema; não desejam a privação e o sofrimento emocional. Isso é algo que partilhamos em larga medida com os animais não-humanos. E é também algo que nós, nos países prósperos como os Estados Unidos, partilhamos com o mundo em desenvolvimento. Ora, poderíamos facilmente reduzir a quantidade de sofrimento que há no universo de muitas formas. Uma é relativa aos animais. Poderíamos deixar de fazer aos animais uma série de coisas que lhes causam sofrimento e que não precisamos fazer. Isso reduziria o seu sofrimento. Outra é relativa às pessoas dos países mais pobres do mundo. Poderíamos dar alguma da riqueza supérflua que nós, pessoas afortunadas vivendo em nações opulentas, temos, e usá-la para aliviar o sofrimento terrível das pessoas que são tão pobres que vivem no limiar da subnutrição e morrem de doenças facilmente evitáveis. Uma terceira forma de reduzir o sofrimento seria ajudar as pessoas que estão a morrer de doenças como o cancro, que estão a sofrer e angustiadas, e dizem "Olhe, já sofri o suficiente. Não quero continuar." Poderíamos autorizá-las a agir de acordo com a sua decisão sobre quando já tiveram o suficiente. Os meus pontos de vista que foram mais controversos provêem todos desta ideia de que, se o podemos fazer, deveríamos reduzir a quantidade de sofrimento no mundo.BA: Fale um pouco mais sobre como seria apropriado ajudar os idosos e doentes. Quando e porque seria correcto matar uma pessoa idosa ― uma pessoa idosa e doente? PS: Seria correcto matar uma pessoa idosa e doente se essa pessoa tivesse pedido para ser morta, se esse pedido tivesse sido feito de forma clara e persistente; e se estivermos convencidos de que a pessoa está numa condição mental capaz e racional, e está a tomar essa decisão por uma boa razão ― como o facto de que ele ou ela tem um cancro terminal.
BA: Suponho que a ideia que provocou mais controvérsia é a sua crença de que é correcto em algumas circunstâncias tirar a vida a recém-nascidos. Pode explicar qual a sua posição a esse respeito da forma clara e precisa que consiga?PS: Há algumas crianças inválidas que nasceram com limitações tão graves que os médicos não tentam realmente mantê-las vivos. Permitem que morram essencialmente por intermédio de negligência benigna. Mas esse processo pode ser muito lento. Do meu ponto de vista, se essa decisão é justificada ― e penso que pode ser ― então não deveríamos meramente deixar a criança morrer por negligência. Com o consentimento e apoio dos pais, aconselhados pelos seus médicos ― e apenas então ― penso que seria justificável ajudar essa criança a morrer. Seria justificável diligenciar para acabar com a vida dessa criança rapidamente e de forma mais humana do que permitindo que a morte ocorra por desidratação, fome, ou uma infecção não tratada.BA: Você disse numa citação que apareceu em muitos lugares: "Matar uma criança anormal não é moralmente equivalente a matar uma pessoa. Às vezes não é de todo errado." Quer falar sobre isso?PS: Como disse antes, uso o termo "pessoa" para referir um ser que é capaz de antecipar o futuro, de ter necessidades e desejos para o futuro. Se essa pessoa é morta contra a sua vontade, esses desejos são interrompidos, frustrados. Por esta razão, entre outras, penso que é geralmente um mal maior matar uma pessoa do que matar um ser que não tem nenhuma consciência de existir no tempo. Talvez, por exemplo, uma galinha não tenha nenhuma consciência de existir no tempo. E isso, penso, é uma razão pela qual é normalmente pior matar um ser humano do que uma galinha. Mas os bebés humanos recém-nascidos não têm nenhuma consciência da sua existência no tempo. Assim, matar um bebé recém-nascido ― saudável ou não ― nunca é equivalente a matar uma pessoa, isto é, um ser que quer continuar a viver. É diferente. Isso não significa que fazer isso não seja quase sempre uma coisa terrível. É, mas isso é porque a maior parte das crianças são amadas e estimadas pelos seus pais, e matar uma criança é normalmente fazer um grande mal aos seus pais.BA: Não o preocupa a possibilidade de existir aqui um declive ardiloso ― que se for permitido matar recém-nascidos inválidos, isto possa ser de algum modo estendido a outros?
PS: Temos de ter consciência do problema do declive ardiloso, e temos de pensar cuidadosamente nele. Mas não é como se estivéssemos em terreno seguro, e que aceitar o meu ponto de vista fosse o primeiro passo no declive ardiloso. Já estamos nesse declive. Por exemplo, permitindo a interrupção da gravidez, demos um passo que viola o ponto de vista tradicional da santidade da vida humana. Muitas pessoas dirão, "Bem, é por isso que o aborto é errado." Mas então e a reclassificação das pessoas como mortas quando o cérebro deixou irreversivelmente de funcionar? Isso foi aceite neste país durante mais de vinte anos sem qualquer oposição séria, mas é também um passo no declive ardiloso. Uma vez que seja possível reclassificar uma pessoa como morta porque o cérebro deixou de funcionar, embora o corpo esteja quente e o coração a bater, é possível ir mais longe. Com as modernas técnicas médicas, não há forma de podermos dizer simplesmente que "Não se deve nunca acabar com a vida de outro ser humano." Já o fazemos a toda a hora, seja por intermédio do aborto, seja retirando ou negando tratamento de suporte à vida, seja classificando um ser como cerebralmente morto. Assim, a questão não é "Podemos manter-nos fora do declive ardiloso?" mas antes "Como é que podemos negociar melhor o declive ardiloso de modo a não escorregarmos para onde não queremos ir?"
NELL BOYCE: O seu avô e outros membros da sua família morreram no Holocausto. Quando as pessoas lhe chamam nazi, ignora-o, ou preocupa-o que algumas das suas ideias possam ter consequências não previstas?PS: Considero a acusação de "nazi" ofensiva. Banaliza de forma triste a enormidade dos crimes nazis. E é completamente absurda, porque venho de uma direcção política totalmente diferente. Sou um social-democrata, oponho-me absolutamente a políticas racistas e a um estado totalitário. Mas será que reflicto na ideia de que algumas das coisas que disse poderiam levar numa direcção que não seria uma força para o bem? Sim, certamente que penso acerca, digamos, do risco de que os meus pontos de vista possam fazer com que a sociedade apoie menos as pessoas com deficiências. Mas não penso que a resposta correcta seja dizer: "Bem, não devemos desafiar a ética tradicional da santidade da vida humana", embora possamos ver que se funda em ficções ou visões do mundo ultrapassadas. Penso que se tentarmos esconder as dificuldades da ética, corremos o risco de termos maiores dificuldades a longo prazo.


NB: Que género de dificuldades?
PS: A ética tradicional da santidade da vida está a ser corroída em todo o lado por práticas ligadas à tecnologia médica, como sistemas avançados de suporte à vida. No futuro, podemos acabar por adular a ética. Pode até acontecer que as pessoas pura e simplesmente a abandonem, apesar de não terem nada para pôr no seu lugar. O resultado poderá ser a completa confusão acerca do que pode fazer com que seja errado matar seja em que circunstâncias for. A ética tradicional não é sustentável. Há outras formas de olhar para o erro de matar, que mostra porque é mau matar, por exemplo, no caso de um ser autoconsciente que quer continuar a viver. Um princípio como esse, amplamente compreendido, tem mais probabilidades de sucesso na prevenção de coisas como o Holocausto do que a adesão a uma ética que apenas faz sentido dentro do contexto de uma mundovisão Judaico-Cristã.NB: Sente que algumas das suas ideias foram deturpadas?PS: Sim, particularmente os meus pontos de vista sobre a eutanásia para crianças inválidas. A deturpação é de vários géneros, mas normalmente consiste em pegar numa frase ou duas da Ética Prática, que foi escrita como um manual para uso universitário, e sugerir que esse é o meu ponto de vista ou que penso que deve imediatamente ser posto em prática como política pública. Com muita frequência o que estou a fazer é a seguir as implicações de vários pontos de vista éticos e a levar os estudantes a reflectir sobre se aceitam estas implicações.NB: Mas não defendeu que os pais devem poder matar uma criança inválida ou mesmo com uma doença que pode ser tratada, como a hemofilia, se isso lhes permitir ter uma criança com mais possibilidades de ser feliz?PS: A hemofilia é um dos exemplos deturpados a que me referia. A citação que todos usam é tirada de uma secção da Ética Prática em que estava a mostrar as implicações de um determinado ponto de vista utilitarista para fazer as pessoas pensar sobre as diferenças entre esse ponto de vista e um ponto de vista alternativo. Não sugeria como política pública que os pais devessem poder matar os filhos com hemofilia. Isso seria actualmente errado na nossa sociedade. A hemofilia já não é a situação desastrosa que foi em tempos, e é difícil imaginar que os pais desejem de facto matar uma criança que a tenha. Mas se, por alguma estranha razão, pensam que não podem enfrentar o seu filho, não é difícil encontrar um casal sem filhos que fique encantado por adoptar uma criança dessas. Matá-la não é opção.BA: Outro grupo de pessoas preocupada por algumas das suas ideias são as pessoas com deficiências que, talvez completamente enganadas, vêem nalgumas coisas que escreveu uma possível ameaça a pessoas como elas.PS: Isso é uma interpretação incorrecta dos meus pontos de vista, e é muito infeliz, porque causa angústia a algumas pessoas com deficiências. Escrevi que todas as pessoas com deficiências devem ser apoiadas na sua tentativa de viverem o melhor que podem, desde que o queiram ― como todos nós. E lamento realmente que as instalações para pessoas inválidas não sejam melhor do que são, que não as apoiemos mais. Não é certamente algo contra as pessoas com deficiências que motiva a minha posição. É, antes, um desejo de evitar o sofrimento desnecessário, que pode ser evitado, logo no começo da vida, no estádio de criança recém-nascida. Isso não é obviamente uma ameaça a qualquer pessoa com uma deficiência que é capaz de compreender algo sobre a minha posição.NB: A experiência com a sua mãe, que está profundamente incapacitada com a doença de Alzheimer, influenciou os seus pontos de vista acerca de criaturas com uma capacidade limitada de autoconsciência?
PS: Não poderia dizer que não tem qualquer relação, mas não penso que tenha tido impacto. A situação em que a minha mãe se encontra não lhe causa sofrimento, porque não tem autoconsciência que a leve a sofrer com isso. Portanto, não é como os casos de eutanásia acerca dos quais escrevi.NB: Há alguns anos, nasceu uma criança em Bloomington, Indiana, com o síndroma de Down e com um aparelho digestivo deficiente, que os pais decidiram não corrigir por intermédio de cirurgia, de modo que a criança morreu. Estão a ser tomadas agora decisões semelhantes para matar crianças por negligência?PS: Provavelmente a ideia de que as pessoas com o síndroma de Down podem ter uma boa vida e de que os pais devem ser encorajados a permitir a operação mesmo se vão doar a criança para adopção tem agora maior aceitação. Mas certamente que se continuará a tomar decisões que neguem tratamento médico que prolongue a vida nos casos em que a cirurgia seja complicada e o resultado incerto, ou em que as condições subjacentes sejam mais seriamente incapacitadoras. Nos Estados Unidos há, de maneira geral, um tratamento muito mais agressivo destes casos do que na Grã-Bretanha, na Austrália, ou em muitos outros países.NB: Está satisfeito com a situação?PS: Não, não estou satisfeito. Não penso que esta seja uma boa situação porque não esclarece realmente o que os médicos estão autorizados a fazer. Acontecem certas coisas que são legalmente duvidosas mas que podem estar correctas. O facto os médicos terem de fazer o que é correcto dissimuladamente não é bom, porque significa que os médicos e os pais não podem ser totalmente abertos uns com os outros.BA: Estendamos isto agora aos animais. Se conseguir, esboce o caso moral a favor do que chamou a "libertação animal."PS: O caso a favor da libertação animal é muito simples. É que os animais sentem e têm interesses. Não há nenhuma razão para que seja dada menos importância aos seus interesses do que damos a interesses análogos de membros da nossa própria espécie. O facto dos animais não serem membros da nossa espécie não é, em si mesmo mais relevante do que o facto de um ser humano não ser membro da minha raça ou do meu sexo.BA: E, uma vez mais, de volta às qualidades de que falou antes?PS: A qualidade-chave que os animais partilham connosco é a capacidade de sentir dor e a capacidade de sofrer. E, portanto, têm um interesse em não sofrer. Alguns podem partilhar outras qualidades. Os chimpanzés e os orangotangos podem ser "pessoas" no sentido que mencionei. Podem ser capazes de se verem a si mesmos como existindo no tempo. Muitos animais ― incluindo alguns que comemos, como galinhas e peixes ― podem ser pessoas. Não tenho a certeza de que as vacas e os porcos possam ser considerados pessoas ― preferia dar-lhes o benefício da dúvida. Mas é claro que podem todos sofrer. E quando os criamos como comida, ignoramos a sua capacidade de sofrerem. Usamo-los meramente como coisas, e frustramos as suas necessidades mais importantes a fim de satisfazer algumas necessidades muito menores nossas.BA: E isto é aquilo a que chamou "especismo?" Fale-me acerca do "especismo."PS: Especismo é um termo que usei para fazer um paralelo entre, por um lado, o racismo e o sexismo, e, por outro, a nossa atitude para com os animais. A atitude dos racistas brancos para com os africanos era: "Não és membro da minha raça. Portanto, é correcto capturar-te, escravizar-te e usar-te como um instrumento vivo para trabalhar nas minhas plantações." Quando pensamos no que fazemos aos animais, é muito parecido. Dizemos, "Não és membro da minha espécie. Portanto, é correcto capturar-te, criar-te, fazer de ti uma coisa, usar-te como um instrumento para produzir comida, ovos ou leite ― ou usar-te como um instrumento experimental no laboratório." O facto de um ser não ser membro da minha espécie, em si mesmo, não justifica que se faça qualquer destas coisas.
BA: Referiu-se a experiências médicas, mas isso é uma parte particularmente importante dessas experiências, não é?PS: Não, de facto não. Penso que o uso de animais na alimentação é um mal moral maior do que o uso dos nossos animais em experiências, porque é claramente menos necessário e envolve um número muito maior de animais.BA: Mas na questão da experimentação médica em particular, quando considera as consequências, uma delas pode ser a cura para uma doença que aliviaria o sofrimento de um grande número de pessoas. Certo?
PS: É possível. Nunca disse que penso que toda a experimentação animal deve parar imediatamente. Se se conseguir mostrar que essa é a única forma de atingir um objectivo como curar uma doença importante, então diria que deveríamos procurar caminhos alternativos para atingir o mesmo objectivo, mas até lá, não faria campanha para acabar com essas experiências em particular. Mas o que digo é que, em geral, os animais foram usados apenas como coisas, apenas como instrumentos. Eram baratos. Ninguém se preocupava com os seus interesses. Era apenas uma questão de "Encomendemos outros 200 ratos ou porcos-da-índia para a próxima segunda-feira de manhã e tentemos isto neles." Por conseguinte, é aqui que o especismo entra ― o facto de estarmos preparados para fazer isto aos animais. Condenamos que se faça isto aos seres humanos, seja qual for o seu nível mental.NB: Disse que o uso de chimpanzés só é justificado quando a experiência é tão importante que o uso de seres humanos com danos cerebrais também é justificável. Seria, então, correcto usar seres humanos com danos cerebrais? PS: Teria de ver as coisas caso a caso. Não o poria completamente fora de questão. O que quero realçar é que protegemos muitíssimo mais os seres humanos do que os animais não-humanos. Levar as pessoas a fazer essa comparação fá-las pensar em que género de caso a experimentação seria suficientemente forte para que digamos "Sim, estamos realmente preparados para fazer essa experiência num ser humano com danos cerebrais." Se o caso não é suficientemente forte para justificar essa conclusão, então como pode ser suficientemente forte para justificar que se faça a investigação num chimpanzé que está num nível mental mais elevado do que o ser humano em que acabámos de dizer que não pode ser feita a experiência?
NB: Como pioneiro do movimento moderno dos direitos dos animais, o que pensa dos activistas que mandam a cientistas lâminas de barba por correio?PS: Penso que é deplorável que se faça uma coisa dessas. Isso arrisca-se a prejudicar seriamente o movimento porque o poder do movimento está no facto de assumir uma posição moral forte e de ter um caso moral realmente bom. Ao usar estas tácticas, há o risco de que o movimento seja visto simplesmente como extremistas loucos que tentam forçar os outros a aceitar os seus pontos de vista.BA: Chamaram-lhe muitas coisas com que certamente aprendeu a lidar, mas que devem ainda feri-lo. Li algures que alguém lhe chamou o homem mais perigoso da actualidade, e que outra pessoa usou a frase "Professor Morte." Porque acha que aquilo que diz provocou uma tal paixão?
PS: O que digo é controverso. Como temos estado a ver, vai contra uma ética que andou por aí por muito tempo. Essa ética está a sofrer mudanças, mas talvez eu tenha mostrado com um pouco mais de clareza e franqueza do que a maior parte a direcção em que essa ética precisa de mudar. E recusei-me a tentar e disfarçar o que digo por detrás de um véu que diz, por exemplo, "Não estamos a matar; estamos apenas a deixar morrer", ou "Não estamos a retirar corações ainda a bater de seres humanos que estão vivos, porque os cérebros destes seres humanos deixaram de trabalhar e por isso eles estão mortos." A minha recusa em lançar este delicado véu eufemístico sobre as coisas para torná-las mais aceitáveis é uma boa parte da razão pela qual recebi toda esta oposição enquanto outros, cujas conclusões estão em grande parte de acordo com as minhas, não.BA: Como é que isso o faz sentir?PS: Não gosto mesmo de algumas coisas que me chamaram. Considero-as injustas e provocatórias. São basicamente ruídos. Mas na medida em que me ajudam a divulgar as minhas ideias a uma audiência maior ― e é certo que o fazem ― vejo que têm também um lado bom.NB: Em que projectos está actualmente a trabalhar?PS: Estou a acabar algo que é completamente diferente, um livro sobre o meu avô, que viveu em Viena desde o final do século dezanove até ao Holocausto. Acho fascinante retroceder a esse período e reconstruir a vida de um homem que nunca conheci. Estou quase a acabá-lo agora. Isso, e a mudança para Princeton, fez com que fosse uma boa altura para parar e decidir em que quero realmente trabalhar a seguir. Provavelmente irei fazer algo relacionado com a genética. Também estou interessado em algumas dos problemas globais, como a justiça e a fome no mundo, a mudança climática, e a ética de um mercado livre global.



Friday, September 28, 2007

entrevista Alain Finkielkraut 28/09/07

Label France: Quais são, a seu ver, os valores mais importantes a salvaguardar e transmitir?
Alain Finkielkraut: Antes mesmo de nos perguntarmos sobre os valores, seria essencial, para mim, que pudéssemos transmitir uma certa idéia de transmissão. Devo confessar que estou bastante inquieto diante do fascínio que essa mudança de milésimo provoca um pouco por toda parte, porque eu vejo nisso uma estranha impaciência e a idéia de que o importante, antes de mais nada, é adaptar-se a transformações. É sem dúvida necessário preparar-se para isso, mas se nos entregarmos completamente a esse entusiasmo corremos o risco de chegar a um paradoxo segundo o qual a única coisa a ser transmitida seria o futuro!Ora, justamente a idéia de transmissão baseia-se no fato de que o presente não conhece todas as respostas. Se ele se entregar a si mesmo ou se for concebido apenas como aberto para o futuro, o presente será uma prisão. Devemos saber distanciar-nos de nós mesmos, e as obras do passado podem nos ajudar nesse empreendimento. É por isso que devemos preocupar-nos com as obras, antes de nos preocuparmos com os valores, sobre os quais estamos todos de acordo: igualdade, liberdade, fraternidade ou tolerância. Porque existe um valor particularmente frágil, o da compreensão do mundo humano, que passa pela leitura das obras. Assim, eu diria que é preciso legar uma exigência de transmissão e um valor essencial, que é a paixão de compreender.
Essa fidelidade à herança, no cerne de sua última obra, que estigmatiza a "ingratidão" de nosso tempo para com o passado, não seria uma forma de nostalgia que corre o risco de nos impedir de seguir adiante?Não se trata de uma nostalgia do passado como tal. Todavia, eu acho que a nostalgia assim mesmo tem o seu lugar. Impressiona-me o ódio que se pode ter por este sentimento. Wnquanto que, como mostrou magnificamente Jankélévitch, esse sentimento tem algo de humano. A nostalgia prende-nos a pequenos nadas porque estes lembram momentos que não voltarão mais. Como o tempo é irreversível, o passado como tal é motivo de nostalgia. Demos direito de cidadania à nostalgia, cessemos de viver exclusivamente na expectativa de um futuro melhor. O tecnicismo reinante gostaria de nos convencer de que a nostalgia de nada serve. Sem dúvida, mas ela faz parte da humanidade do Homem. Porém, quando falo de transmissão, quero dizer que existem obras do passado que são arrancadas do passado ao qual elas pertencem. Nós desenvolvemos no Ocidente uma certa idéia do clássico que consiste em pensar que estamos realmente inscritos em um tempo histórico, mas que existe entre os homens uma possibilidade de comunicação em torno de significações que podem ser vistas além da História. Não é o passado como tal que se trata de cultivar, mas uma relação entre os homens que esteja completamente subordinada à História.Em que a escrita e a cultura distinguem-se radicalmente das novas tecnologias da informação e da comunicação?
Eu não pretendo «diabolizar» essas novas tecnologias, nem idolatrar a escrita. Mas creio simplesmente que, apesar da transformação que se anuncia, é preciso defender o livro. Exalta-se a interatividade que reina na Internet. Ora, eu não preciso disso passa refletir ou para pensar quando estou lendo um autor. Estamos hoje assimilando comunicação e interação. E é essa assimilação que o livro refuta. Não existe qualquer interatividade com um livro. É uma forma de comunicação totalmente estranha, uma conversação bizarra com alguém que, de uma certa maneira, não está falando a você, que deu o melhor de si, e que sobrevive em suas obras.
Além disso, o texto que você lê num livro tem uma ordem, uma autoridade. Você pode rasgar as suas páginas, mas não pode «maquinar» como gostaria selecionando apenas o que lhe interessa, tal ou tal tema dos quais gostaria de obter todas as ocorrências, como permite a multimídia. O livro tem um peso, uma heteronomia, um hieratismo que se impõe a você. O livro não é flexível nem interativo. A interação não deve ser o todo da comunicação. Porque, se ela assim se tornasse, nós nos comunicaríamos apenas com os vivos. O que seria uma barbaridade.O telefone celular e a Internet, por exemplo, prestam-nos muitos serviços, permitem-nos ter um melhor desempenho, mas nada substitui o silêncio da reflexão solitária. Se o nosso valor, essencial a nós ocidentais, é a autonomia, como você quer ser autônomo estando em estado de interatividade permanente? Você será um bom cara cooperativo, mas não será necessariamente um espírito livre.Para completar, a conversa ao vivo, que se tem em torno de uma refeição com amigos, tem um charme e uma singularidade que não podem ser substituídas por essas máquinas. Não percamos de vista essa grande herança da amizade em benefício dessa comunicação generalizada. Por fim, a técnica produz a não-distância. Esta é uma realização extraordinária, mas nesse «tête-à-tête» do indivíduo com a globalidade, existe um senso do mundo que corre o risco de se perder. O mundo não é necessariamente o que essa forma de globalização nos diz, não é apenas redes. É também territórios, nações, paisagens.Aliás, tem-se a impressão de que, desde o início da guerra na ex-Iugoslávia em 1991 até a conferência da OMC em Seattle hoje, todos os acontecimentos políticos estiveram lá para nos lembrar o peso das coisas, a nós que o estamos esquecendo sem cessar. Sim, existem territórios, sim, existem grupos, sim, a questão das fronteiras permanece uma questão capital, sim, existem também agricultores e paisagens. Foi-se a época em que era necessário enxergar além dessas fronteiras, desses distritos. O cosmopolitismo do pensamento das Luzes no século XVIII encarnava essa aspiração, essa necessidade para o indivíduo de fugir aos preconceitos da tradição, ao particular para atingir valores universais. Agora, trata-se de fugir a outras evidências. Não mais as do local, mas as do global. Porque, se existe aldeia, Mac Luhan tem razão, essa é realmente uma «aldeia global». E existem preconceitos quanto ao global hoje que nos impedem de ver a realidade, ou que nos levam a desprezar todos os agrupamentos particulares, como formas bárbaras de humanidade.Contra o humanismo abstrato, o senhor reabilita em seu último livro o enraizamento do ser humano no concreto e no particular...
A filósofa Simone Weil já denunciava o que há de bárbaro no fato de desenraizar os homens. Acho que esse movimento de desenraizamento, que é próprio à civilização moderna, deve ser aplicado hoje ao fetichismo da técnica. Na época moderna, a técnica permitiu que fôssemos arrancados da terra, e hoje, eu acho que é preciso arrancar-nos da técnica para preservar um certo contato com a terra.
Está sendo germinada uma reconciliação do particular com o universal nesse reconhecimento do fato de todos os homens pertencerem a uma terra...Acho que a nossa civilização ocidental baseava-se em uma articulação extremamente sutil do particular e do universal. A Europa era ao mesmo tempo essa exigência universal marcada pelos direitos do homem e do cidadão, que fundamenta a democracia moderna, e ao mesmo tempo o enraizamento dessa exigência em nações particulares, que permitiram a essas aspirações universais virem ao mundo. A nação era então um ator político que tinha a preocupação com o mundo.Um dos riscos da época na qual estamos entrando é precisamente o de uma disjunção entre o particular e o universal, onde o universal encontra-se reduzido a uma espécie de globalização dominada pela técnica e a economia, e onde a preocupação com o mundo dá lugar à cultura através de suas identidades particulares no horizonte do multiculturalismo. Acho que é preciso resistir de todas as maneiras a uma disjunção como essa. Não digo que a nação seja um ator que não se pode suplantar2, mas que, se estamos criando a Europa é precisamente para impedir que essa disjunção ocorra.A nação não é portanto um âmbito ultrapassado, a seu ver?Não, de fato. É necessário compreender sobretudo que os povos não se encontram todos no mesmo estágio, porque não tiveram todos a mesma história. Nós, europeus do oeste, pretendemos superar o Estado-Nação para constituir a Europa. Ora, existem povos, principalmente no leste europeu, que mal estão saindo de impérios para se constituir em nações. É preciso reconhecer a legitimidade de sua reivindicação. Entretanto, é preciso permanecer exigente quanto aos princípios democráticos que devem fundamentar esses Estados-Nações.Será que o modelo cívico de nação, promovido pela França, baseado em um contrato é uma filiação política, mais do que no fato de se fazer parte de um grupo étnico ou cultural, é um modelo de futuro para os Estados-Nações?Convém reconsiderar com um pouco de humildade a origem de nosso sentimento nacional na França. Se nós desenvolvemos um modelo cívico, não foi porque possuíamos um senso inato da universalidade, mas simplesmente porque a monarquia havia realizado um enorme trabalho em favor da constituição da nação. A nação existia antes da Revolução de 1789, mas eram o rei e a aristocracia que dominavam. A Revolução consistiu em transferir a fonte e a legitimidade da soberania nacional do rei ao povo. Era um problema político.Em outros países da Europa, a questão era apresentada de forma diferente. Ali onde reinava o Império (austro-húngaro) e não nas grandes monarquias territoriais como a França e a Inglaterra, as nações deviam constituir-se e fazer valer sua originalidade cultural. Ou seja sua língua, sua memória e suas lembranças comuns. Assim, se houve um modelo mais cívico do que étnico, como na Alemanha, é porque a história nacional da Europa não se fez da mesma maneira para todos. Além disso, na França também essa dimensão de se pertencer a um grupo existe. A França não é simplesmente uma "ágora", ela é todo um patrimônio natural e cultural que possui um valor singular.Na realidade, o que me parece desejável para os Estados-Nações, seja qual for a origem do sentimento nacional, é que se construam com base em um modelo democrático. É verdade que, em nome do modelo étnico de nação, pode-se negar a democracia. Porque é difícil pensar a pluralidade de opiniões quando se postula a existência de uma única identidade comum. Mas essa dificuldade deve ser superada em favor da democracia.
O que, a seu ver, deverá fundamentar no futuro a nacionalidade francesa?A França soube ser uma pátria adotiva e é preciso que assim permaneça. É preciso também para isso que ela tenha uma concepção substancial de si mesma. É necessário transpor essa oposição étnico/cívico. A França é uma história, uma língua, são obras, monumentos e igrejas. E, é claro, é possível pensar que essa herança possa ser partilhada por outros, porque ela pode se fazer amada por eles. A França tem algo a dar. Ela me deu muito, a mim que sou filho de imigrantes poloneses!Assiste-se hoje, o que me parece grave, ao desenvolvimento de uma nova noção de hospitalidade. Antigamente, a hospitalidade consistia em dar algo a alguém. Hoje, é como se quanto menos se dá, mais se é generoso, já que se trata mais de respeitar a identidade do que chega do que integrá-lo na ideologia multiculturalista, que vem ganhando terreno na França. Ao pregar o "a cada um a sua identidade", ela combate o próprio princípio da integração, que é apresentada como uma ideologia colonial. Eu acho essa afirmação perigosa, mentirosa e mesmo abjeta. Ela leva a que se furte à criação de um espaço comum, sob o manto da tolerância e da generosidade, a que se renuncie a oferecer, a ensinar seja o que for àquele que chega, sob o pretexto de não querer impor-lhe uma história que não é a sua, porque isso seria uma forma de imperialismo e constituiria uma violência simbólica. Esse raciocínio deveria nos levaria a rejeitar o estudo do latim, sob o pretexto de que nossos ancestrais eram gauleses e não romanos! Ora, se estudamos o latim desde tempos imemoriais é porque ela é "a" língua original e, através dela, é uma civilização que se nos impõe.Depois de séculos de dominação, às vezes violenta e sangrenta, que o Ocidente exerceu no mundo, o senhor contesta o fato de que a consciência pesada do Ocidente o impeça de desempenhar um papel no mundo.Essa consciência pesada tem um sentido. Aliás, a consciência pesada é a própria consciência. Não defendo portanto a volta à inocência. O Ocidente tem sem dúvida coisas a se fazer perdoar e continuará tendo: o aumento da desigualdade entre os países do Norte e do Sul, por exemplo. Longe de mim então a idéia de converter a consciência pesada do Ocidente em não sei que alegre soberania. Quando poderíamos ser tentados hoje a isso, já que o liberalismo venceu todos os seus rivais demostrando ser um sistema mais confiável do que os outros. O comunismo desfigurou o anti-capitalismo: sair do comunismo é portanto elaborar uma crítica do capitalismo que nada fique a dever a essa ideologia.Porém, ao mesmo tempo, é claro, a consciência pesada pode ter efeitos perversos quando alimenta a boa consciência do campo da frente ou quando faz com que os europeus abdiquem da ambição de estender aos outros os valores universais dos direitos humanos, por exemplo.Acredito que toda política deve ser concebida hoje com base em um horizonte cosmopolita. Esta é uma das contribuições da modernidade. O sentido da política é a responsabilidade em relação ao mundo. Nós devemos portanto agir no mundo e para o mundo. Nós, ocidentais, em particular, já que isso faz parte de nossa cultura e porque possuímos, além disso, os meios para fazê-lo.
No que diz respeito à França, teria ela um papel particular a desempenhar?De Gaulle achava que a nação era a comunidade política por excelência e defendia portanto a autodeterminação dos povos. Eu acredito ser essa uma das mensagens que devemos, nós franceses, continuar a transmitir ao mundo. Infelizmente nós a esquecemos, enquanto que ela podia ter tido um importante papel no momento em que desmoronavam os últimos impérios. Na própria medida em que procuramos hoje ultrapassar a nação, a nossa tendência foi a de considerar perigosa toda reivindicação nacional, e abordar de maneira negativa a «fragmentação» dos impérios e o surgimento dessas «pequenas nações». Acho que a França perdeu uma ótima oportunidade de ser ela mesma.Além disso, a França também deve manter o seu resplendor no mundo através da sua língua. A língua francesa não é apenas um simples meio de comunicação. O que faz a sua singularidade é que ela tem algo de artificial, que não é o artifício do Estado ou da administração, como dizem hoje os regionalistas, mas o da literatura. Existe uma prodigiosa ligação entre a língua francesa e a literatura francesa. Aliás, os estrangeiros que amam a nossa língua amam-na por causa disso. Eis aí uma herança que devemos preservar.Que conhecimentos, que aptidões a escola de amanhã deverá inculcar?A escola tem a função de fazer a grande mediação de nossas sociedades entre os vivos e os mortos. Isto é uma evidência, que foi formulada no início do humanismo, mas que tende hoje a desaparecer do discurso oficial. Como dizia Charles Péguy no início do século, o professor não é o representante nem do Estado, nem da sociedade, mas o da humanidade através de suas obras, o representante dos poetas e dos artistas. E deve permanecer como tal, com mais razão na época da escrita generalizada.
A escola tem o papel de ensinar a cultura geral às crianças, o que não é exclusividade de um determinado tipo de preparação profissional. Mas esse papel é central. Ele deve até ser reforçado hoje, quando se prepara a redução do tempo de trabalho para que todo mundo possa trabalhar3 . Isso significa que a escola deve voltar a sua função original; «scholé» significa lazer, a aprendizagem do lazer, a capacidade de se dedicar à reflexão, à conversação e à contemplação. É uma tarefa urgente, já que o lazer vai se expandir. Vai-se permitir que a indústria do lazer governe o lazer? Vai-se deixar instalar essa hegemonia televisiva e consumista sobre o lazer? Será que o lazer vai ser de fato termos cada vez mais programas de televisão ou podermos fazer as compras no domingo? se considerarmos que a civilização tem algo de melhor a oferecer, então é preciso devolver à escola a sua vocação, porque o lazer, que era privilégio dos mestres nas sociedades antigas, está se tornando hoje o problema de todo mundo.O que o senhor pensa da tendência de se reduzir cada vez mais o espaço dos professores em benefício dos computadores?
Os computadores são-nos exaltados como instrumentos pedagógicos por serem interativos. Trata-se de fato de substituir a verticalidade pela horizontalidade. Existe uma verticalidade – uma relação hierárquica – da relação entre o professor e o aluno que o sentimento democrático contemporâneo não suporta. Tudo o que é horizontal é melhor do que tudo o que é vertical. Eu acho que essa idéia é absurda, porque a verticalidade é indispensável à escola, é preciso transcender a escola. Transcendência da admiração pelas obras, transcendência também, ou seja dissimetria de toda relação pedagógica entre o que sabe e o que não sabe.Acreditamos hoje, com efeito, que tudo passa pela atividade do aluno. O aprendizado da língua é vítima desse culto à interatividade generalizada. Queremos dar a palavra aos alunos antes de lhes dar a língua. A língua é aprendida ouvindo e lendo, e não falando, contrariamente ao que se diz. Mas tudo o que diz respeito à receptividade foi banido. Isto é uma aberração.Como o senhor vê o lugar dos intelectuais no mundo de hoje e de amanhã?Nas democracias modernas, onde a idéia de humanidade encontra-se na própria base da cidadania, onde se governa em nome de princípios universais, existe uma categoria de pessoas que tem como função lembrar aos governantes e ao povo a existência, a legitimidade e a força desses princípios: os intelectuais. Nos dias de hoje, nossas sociedades apelam cada vez mais para eles, o que atesta bem a sua necessidade de ver a universalidade representada. Eu não acredito portanto no desaparecimento dos intelectuais, acredito simplesmente na necessidade que têm de defender seus princípios, o que os leva a intervir nas situações de exceção, mas desenvolver também a sua reflexão filosófica sobre o curso normal das coisas, para evitar deixar o debate entregue apenas aos políticos e especialistas. Porque a política é uma questão do mundo comum, e esse mundo não deveria ser dividido em fatias pelos especialistas. O intelectual também deve zelar pela integridade do mundo comum.
De que maneira o senhor interpreta o surgimento de movimentos cidadãos internacionais como o que vimos por ocasião da conferência de Seattle em dezembro de 19994?Achei que as Organizações Não-Governamentais (ONGs) que se manifestaram em Seattle [Estados Unidos] estiveram formidáveis. Porque elas fizeram a distinção entre a globalização e a preocupação com o mundo. Porque fugimos a essa oposição um pouco fácil demais entre os cosmopolitas que transcendem as fronteiras e os revoltosos ouriçados em seus territórios. Ora, esses homens e mulheres que chegaram a protestar contra a uniformização do mundo com seus queijos, seus produtos e sua terra estavam lá para defender todas as terras, para defender a terra.
Foram duas idéias que se confrontaram, provando que a globalização não tem o monopólio da idéia de mundo. Foi o que houve de maravilhoso em Seattle, esse desmentido extraordinário tanto ao marxismo quanto ao liberalismo, com o slogan «agricultores de todos os países, unam-se!». Os agricultores deram a essa elite lobotomizada o que é realmente uma das raras boas novidades da época presente!

entrevista com Pierre Fédida 28/09/07

Ceccarelli: Há algum tempo o Sr. tem utilizado a expressão Psicopatologia Fundamental. Gostaria que o Sr. falasse um pouco do por quê da escolha deste termo e também de sua história.Fédida: A criação da expressão "Psicopatologia Fundamental" ocorreu-me, após muitas considerações, há mais ou menos 15 anos. Inicialmente devido ao lugar que tinha, no passado, a Psicopatologia Geral, com a publicação por Jaspers, em 1913, de sua "Psicopatologia Geral". Naquela época falava-se também, inclusive na França, de "Psicopatologia Patológica". Ocorreu-me então, por várias razões, a idéia de propor o termo de "Psicopatologia Fundamental". Já nos anos 80 observa-se um enfraquecimento da psiquiatria devido ao desenvolvimento das neurociências, tal como elas se apresentam hoje, mas sobretudo ao extraordinário impulso da farmacologia. E se a psiquiatria se enfraquece, paradoxalmente a psicanálise também se enfraquece. Preocupei-me então em incentivar a Psicopatologia Fundamental criando, inicialmente, um Laboratório e, em seguida, uma formação de doutorado em Psicopatologia Fundamental. Gostaria ainda de tecer algumas considerações sobre o enfraquecimento da psiquiatria. Inicialmente um tal enfraquecimento se deve ao desaparecimento da psicopatologia na psiquiatria. A partir daí, a psiquiatria deixa de ser uma abordagem, uma disciplina clínica, como havia sido até então, para se torna uma pragmática da prescrição: prescrição social, medicamentosa.
Ceccarelli: "É aí que entram os DSMs?"Fédida: Sim. O DSM é um manual que visa uma nova classificação das doenças mentais. Sua maior preocupação é a epidemologia e a categorização dos problemas mentais; não é uma psicopatologia.Ceccarelli: É nesse sentido que o Sr. vê o risco do enfraquecimento da psiquiatria?Fédida: Justamente. Exemplos não faltam: pode-se tratar a depressão, que é polivalente, por meio de medicamento, por meio das moléculas que são cada vez mais inteligentes, sem que seja necessário conhecer os conflitos interiores e a experiências psíquicas do indivíduo. Nesta perspectiva, nem a psicopatologia nem a clínica são necessárias: basta conhecer o uso das moléculas químicas. A evolução da psicopatologia seguia duas direções principais: ela continuava em contato com a prestigiosa tradição da psicopatologia antes mesmo da criação deste termo; ou seja, a experiência que o terapeuta adquire a partir do sofrimento do doente. Por isso, sempre dei muito valor à noção (esquiliana) de patei mathos: aquilo que o sofrimento ensina. Muitos tratados de filosofia e de medicina insistem sobre a importância da experiência da doença mental do outro como fator central da observação e da compreensão do clínico. Neste sentido a psicopatologia fundamental é próxima da psicopatologia freudiana. Freud segue as proposições da psiquiatria de seu tempo - ele utiliza as mesmas noções da psiquiatria da época: melancolia, parafrenia, paranóia, etc - mas ele vai trabalhar estas noções a partir de uma metapsicologia e, naturalmente, a partir também das descobertas que a prática clínica lhe proporciona. Assim, a noção de "Psicopatologia Fundamental" não é muito distante da idéia de que, em psicanálise, a psicopatologia é psicopatologia fundamental e não psicopatologia geral. Este ponto de vista é extremamente importante para diferenciar algo que ocorre na Alemanha e nos países de língua germânica por volta dos anos 20: de um lado um desenvolvimento filosófico - tal como Binswanger e outros tantos, na França Minkowisky - que propõe que a psicologia acadêmica seja repensada a partir da fenomenologia. Esta mesma posição filosófica vai levar à Psicopatologia Fenomenológica, corrente bastante importante seguidas por diversos autores, que terá grande influência na análise existencial. Por outro lado, também nos anos 20, Freud mantém as referências à psicopatologia mas cria a metapsicologia. Como isso, não é necessário recriar a psiquiatria. Para Freud, o importante era compreender a fundo a expressão dos sintomas. Sobre este ponto ocorreu uma divisão curiosa entre aquilo que nos EE.UU é chamado de "psicopatologia filosófica", hoje representada pela "Teoria da Mente" - Theory of Mind" - onde privilegia-se o fenômeno e não o sintoma; e, por outro lado, a "psicopatologia analítica" - para Freud a "psicopatologia da vida cotidiana".A expressão "Psicopatologia Fundamental", e este é o segundo ponto que quero evocar, deve-se igualmente ao fato de que, em 1985, pareceu-me de suma importância manter uma formação em psicopatologia para todos aqueles que trabalham na saúde mental: psiquiatras, psicólogos... Sem esta formação, o risco do desaparecimento da psicopatologia seria grande. Ao mesmo tempo, pareceu-me igualmente importante de se pensar no futuro, ou seja, de discutir os modelos, os paradigmas que nos afetam, que é nosso objeto de referência, nas teorias e práticas bastante diferentes, como é o caso, por exemplo, da ciência cognitiva e da psicanálise. "Fundamental", neste ponto, separa-se da psicanálise para marcar que trata-se de um psicopatologia que propõe uma reflexão crítica dos modelos existentes.
Ceccarelli: Quais seriam, então, as bases para um diálogo entre a Psicopatologia Fundamental e a Psiquiatria?Fédida: Bem, acho que já falei sobre alguns aspectos desta questão. Mas gostaria de retomar a história da psiquiatria, particularmente com Kraepelin, mas também com Bleuler, e com todos aqueles que, na França, participaram no desenvolvimento da psiquiatria. Aqui é importante lembrar que por muito tempo, praticamente até os anos 50 e 60, muitos psiquiatras tinham a preocupação de definir a vocação antropológica da psiquiatria. Ademais, a psiquiatria não fazia parte da medicina, embora seja necessário ser médico para ser psiquiatra. A psiquiatria solicitava a participação das Ciências Humanas, da mesma forma que das Ciências da Vida, marcando sua vocação antropológica. O lugar que a psiquiatria ocupava era bastante singular. Esta perspectiva - de dar fundamentos antropológicos à psiquiatria - foi em parte abandonada diante da recente evolução das disciplinas científicas. Além disso, em psiquiatria, é cada vez menos necessário - e não se tem mais tempo! - escutar os pacientes como outrora e ouvir suas histórias para compreender o desenvolvimento da doença. O uso dos meios prescritivos tendem, cada vez mais, a fazer do psiquiatra um clínico rápido, um "clínico express". Ele não segue mais aevolução da doença até que o delírio cesse ou até que os sintomas desapareçam e o paciente pode ser considerado psiquiatricamente curado. Então, para responder a sua pergunta sobre o lugar da psicopatologia fundamental na psiquiatria, acho que seu lugar é essencial: trata-se não mais de retomar a psicopatologia geral mas, antes, de saber qual é o nosso modelo de trabalho quando tratamos de um paciente. Na psicopatologia fundamental, dou grande importância à evolução dos sintomas sob a influência de medicamentos. Por exemplo, um paciente que não está mais deprimido, porque toma um antidepressivo, tem uma nova patologia. Ele não está curado; ele está curado psiquiatricamente, mas tem uma nova patologia. Então, eu repito, o uso de moléculas químicas hoje em dia é cada vez mais difícil pois as moléculas são cada vez mais poderosas; eu diria mesmo inteligentes: os psicotrópicos são extremamente inteligentes. É neste ponto que se impõe a necessidade para a psicopatologia fundamental de um diálogo com a psicofarmacologia. Este diálogo, na França, aconteceu com um neurofarmacólogo que se chama Claudewsky (?) no Collège de France, e sobretudo com as equipes de psiquiatria de Widlöcher e, mais recentemente, com a equipe de Guilledat (?) em Lion.Ceccarelli: Como o Sr. definiria o adoecer na contemporaneidade? Como as mudanças da atualidade, como a nova referência de tempo trazida pela internet, como tudo isso modificou não só o adoecer como também a procura de ajuda terapêutica?Fédida: Bem, esta é uma questão difícil por sua generalidade. Tornou-se muito difícil manter as grandes referências tal como nós dispomos em psicopatologia - por exemplo, a diferença entre neurose obsessiva, funcionamento obsessivo, histeria, fobia... Além disso, tenho algumas restrições quanto à noção de modernidade. Mas, tentarei responder mais diretamente à sua pergunta. É verdade que assistimos uma mudança de civilização, e uma tal mudança leva a outros meios de expressão, de comunicação, de adaptação. Voltando, por exemplo, à questão da depressão que é muito interessante. Uma pessoa deprimida é alguém arrasado que deve ser ajudado o mais rapidamente possível para que possa reagir. Ora, não se pode esperar que ele siga um tratamento psicanalítico para curar a depressão, pois se um tal tratamento der resultado, não será imediatamente. Assim, a maioria das pessoas que sofrem de depressão, e que necessitam de uma recuperação rápida, tende a privilegiar um tratamento curto, seja psiquiátrico ou psicoterapeutico. Sem dúvida, estamos em presença de novos dados, ou seja, na cultura, na civilização, a situação não é mais a mesma do começo do século vinte quando se procurava um psicanalista para compreender as origens dos conflitos e tratar a neurose. Hoje procuram-se soluções rápidas para o sofrimento. A questão colocada, para ser amplamente respondida, levaria à uma outra questão que não tratarei aqui: o futuro da psicanálise nesta mudança de civilização. A mudança de civilização é sentida quando é possível comunicar, em tempo real, com alguém a 10 mil, a 15 mil km de distância daqui. Esta mudança também se faz notar quando a leitura de uma obra, de um livro, é substituída por uma informação que está imediatamente disponível, enfim, quando o modo de comunicação entre humanos passar a ser influenciado pelo conjunto dos elementos presentes no novo contexto da civilização. Ao mesmo tempo, uma observação mais atenta revela um fenômeno interessante que me foi relatado por um grupo de psiquiatras que trabalha em meio rural. Veja bem, em meio rural e não nas grandes aglomerações. Nas estruturas montadas para oferecer um atendimento rápido, os pacientes têm sentido a necessidade de falar; a necessidade de um profissional que possa dar-lhes atenção e escutar suas demandas. Isso significa a necessidade de criar-se um espaço onde exista tempo para falar. Seria interessante uma pesquisa para se saber qual a influência da psicanálise nas transformações dos sujeitos que se submeteram à um análise. Existe, com efeito, na atualidade uma aceitação de um novo modo de pensamento mas, ao mesmo tempo, uma demanda pela compreensão de relações singulares.
Ceccarelli : Para terminar, gostaria que o Sr. falasse um pouco sobre a relação entre psicanálise e neurociênciasFédida: Antes de responder a esta questão, gostaria ainda de dizer algo sobre a relação entre o enfraquecimento da psiquiatria e o declínio da psicanálise. A psiquiatria, no sentido clínico e na sua melhor tradição, nunca se opôs à psicanálise ainda que os parâmetros de referência não sejam os mesmos. Freud sempre reivindicou o fato de continuar psiquiatra. A relação neurociência e psicanálise é uma questão que merece várias observações. Nos meus contatos com os neurobiologistas "duros", ou seja, os que trabalham de maneira extremamente científica em seus laboratórios (hard-science), pude inteirar-me do conhecimento que eles desenvolvem sobretudo no campo da neurociência molecular. Estes neurobiologistas, mesmo quando favoráveis à psicanálise, não tentam estabelecer pontes entre neurobiologia e psicanálise. E quando o fazem é para discutir certos aspectos de ordem epistemológica pois a neurobiologia não necessita diretamente da psicanálise. Por outro lado, alguns geneticistas trabalham com alguns conceitos da psicanálise. Uma outra observação, que reforça a primeira, é sobre a questão do método. Eu sou pela heterogeneidade: campos que são diferentes, com métodos, objetivos e procedimentos diferentes não se comunicam facilmente. Por exemplo, uma pesquisa no domínio da neurobiologia sobre a doença de Parkinson, ou Alzheimer, e aquilo que a psicanálise tem a dizer sobre o envelhecer, não entram diretamente em comunicação. O fato de que os neurobiólogos que trabalham com a questão do dormir e do sonhar parecem, às vezes, falar as mesmas coisas que os psicanalistas, não significam que estejam, de fato, falando das mesmas coisas. Devemos deixar de lado as ilusões de interdisciplinaridade. Minha experiência do que tem sido feito em Paris, sobretudo no Centre du Vivant (Centro do Vivente) do qual sou o diretor, mostra que a fecundidade dos seminários que temos tido implica que aqueles que dele participam tenham um interesse no trabalho uns dos outros; que fossem o mais inteligentemente informados daquilo que o lado oposto faz. Mas não podemos esperar, visto o estado atual de conhecimento científico e psicanalítico, estabelecer facilmente pontes entre campos tão distintos como a neurociência e a psicanálise.Uma terceira observação: quando se fala hoje em dia de neurociência, está-se freqüentemente referindo-se à integração das ciências cognitivas na neurociências, daí a expressão "neurociência cognitiva". Como se as ciências cognitivas pudessem fazer a ponte entre a neurociência dura e a psicanálise. Uma vez mais devemos refletir com cuidado entre o que pode ser a realidade de um diálogo e a ilusão de um diálogo. Por exemplo, o "eu" dossemiologistas não é o mesmo "eu" os psicanalistas. Quarta observação: muitos neurocientistas da atualidade tendem a considerar que a obra pré-psicanalítica de Freud - "As Afasias", "O Projeto...", e seu trabalho de pesquisador, que tudo isto formavam a base daquilo que, em seguida, tornou-se a neuropsicologia. Aqui também devemos ter cuidado. Detenhamo-nos em dois aspectos: primeiro que, incontestavelmente, Freud tinha uma escuta extremamente dinâmica do funcionamento psíquico. Em seu trabalho sobre as afasias, no Projeto... ele desenvolveu hipóteses fecundas, embora ele não tivesse, naquela época, o conhecimento científico que dispomos hoje. Consequentemente, as contribuição do Freud "pré-Freud" são sem dúvida muito interessantes, principalmente para os psicanalistas que têm interesse em compreender como uma obra, um pensamento, é formado, ou ainda, comparar as idéias do Freud do começo com algumas de suas idéias tardias. Mas, daí a dizer que Freud abriu a via à neuropsicanálise é uma afirmação da qual desconfio muito. Freqüentemente ouve-se dizer que se a psicanálise edificou-se a partir de modelos científicos atualmente ultrapassados, porque a psicanálise não deveria reatualizar-se a partir dos modelos científicos de nosso época? Acho que aqui temos uma nova concepção da psicanálise; mas é importante saber que não se trata mais da psicanálise freudiana. A psicanálise freudiana separou-se dos modelos biológicos e sobretudo dos neurológicos e neuropsicológicos: a metapsicologia freudiana é prova disso.Ou seja, cada vez mais as proposições, as hipóteses, os conceitos, que têm valor ficcional para trabalhar com os pacientes mas resistem à uma comprovação científica, distanciaram-se destes modelos - biológicos, neurológicos, neuropsicológicos. Devemos prestar muita atenção a isto. Pode-se até falar, como se faz atualmente, de "neuropsicanálise" como uma disciplina. Mas, para mim, uma tal disciplina é incompreensível em termos da psicanálise freudiana. Se alguém disser "a psicanálise freudiana está completamente superada; deve-se ir mais além de Freud; a psicanálise é uma neuropsicanálise", então, tudo muda. Será que o futuro nos reserva uma nova disciplina armada de novos métodos e, provavelmente, de uma nova concepção da prática analítica? Bem aí é uma outra coisa. A Associação Internacional de Psicanálise desenvolve pesquisas neste sentido. Mas aqui estamos muito distantes do velho Freud: estamos abandonando-o. Não se deixa facilmente a psicanálise, o freudismo, o kleinismo, o bionismo. De fato, não se procura fazer pontes; trata-se de uma outra coisa.
Ceccarelli: Bem, Prof. Fédida, muitíssimo obrigado pela entrevista. Há ainda algo que o Sr. gostaria de acrescentar?
Fédida: Certamente eu teria ainda muita coisa a dizer. Porém direi apenas que acho que se deve estar extremamente interessado por tudo que acontece, pelos novos desenvolvimentos da psicanálise. Deve-se interessar também, é claro, pela questão bastante atual das psicoterapias. Além disso, acredito que deve-se estar sempre muito aberto a toda evolução da civilização. Há muita coisa interessante acontecendo hoje que devem ser acolhidas, pensadas e trabalhadas. Mas, ao mesmo tempo, não podemos nos esquecer das bases que permitem que a psicanálise exista.


Tuesday, September 25, 2007

O UNIVERSAL SEM TOTALIDADE, ESSÊNCIA DA CYBERCULTURA 25/09/07 texto de Pierre Lévy,o deus hacker.

http://www.youtube.com/watch?v=VKc-EDHwGN8
A cada minuto que passa, novas pessoas assinam a Internet, novos computadores se interconectam, novas informações são injetadas na rede. Quanto mais o ciberespaço se estende, mais universal se torna, menos totalizável o mundo informacional se torna. O universal da cybercultura está tão desprovido de centro como de linha diretriz. Está vazio, sem conteúdo. Ou melhor, aceita todos, pois contenta-se com pôr em contato um ponto qualquer com qualquer outro, qualquer que seja a carga semântica das entidades postas em relação. Eu não quero dizer com isso que a universalidade do ciberespaço seja «neutra» ou sem conseqüências, pois o fato-mor do processo de interconexão geral já tem e terá ainda mais, no futuro, imensas repercussões na vida econômica, política e cultural. Esse evento está efetivamente transformando as condições da vida em sociedade. Trata-se, no entanto, de um universal indeterminado e que tende até a manter sua indeterminação, pois cada novo nó da rede de redes em constante extensão pode tornar-se produtor ou emissor de informações novas, imprevisíveis, e reorganizar por conta própria parte da conectividade global.
O ciberespaço possui o caráter de sistema dos sistemas mas, por isso mesmo, também é o sistema do caos. Máxima encarnação da transparência técnica, acolhe, no entanto, devido à sua irreprimível profusão, todas as opacidades do sentido. Desenha e redesenha a figura de um labirinto móvel, em extensão, sem plano possível, universal, um labirinto com o qual o próprio Dédalo não poderia ter sonhado. Essa universalidade desprovida de significado central, esse sistema da desordem, essa transparência labiríntica, eu a chamo o «universal sem totalidade». Constitui a essência paradoxal da cybercultura.
A escrita e o universal totalizante:Para entender bem a mutação da civilização contemporânea, é preciso fazer um retorno reflexivo sobre a primeira grande transformação na ecologia das mídias: a passagem das culturas orais para as culturas da escrita. A emergência do ciberespaço terá provavelmente – já tem hoje até – um efeito tão radical sobre a pragmática das comunicações como o teve em seu tempo a invenção da escrita.Nas sociedades orais, as mensagens lingüísticas sempre eram recebidas no momento e no local de sua emissão. Emissores e receptores partilhavam uma situação idêntica e, na maioria das vezes, um universo semelhante de significado. Os atores da comunicação mergulhavam no mesmo banho semântico, no mesmo contexto, no mesmo fluxo vivo de interação.A escrita abriu um espaço de comunicação desconhecido pelas sociedades orais, no qual tornava-se possível tomar conhecimento de mensagens geradas por pessoas situadas a milhares de quilômetros ou mortas desde séculos, ou expressando-se desde enormes distâncias culturais ou sociais. Assim sendo, os atores da comunicação não partilhavam necessariamente a mesma situação, não estavam mais em interação direta.Subsistindo fora de seus condições de emissão e recepção, as mensagens escritas mantêm-se "fora de contexto". Esse "fora de contexto" — que inicialmente se insere apenas na ecologia das mídias e na pragmática da comunicação — foi legitimado, sublimado, interiorizado pela cultura. Tornar-se-á o núcleo de uma certa racionalidade e acabará levando à noção de universalidade.


É difícil entender uma mensagem quando separada de seu contexto vivo de produção. É por isso que, ao lado da recepção, inventaram-se as artes da interpretação, da tradução, toda uma tecnologia lingüística (gramáticas, dicionários…). Do lado da emissão, houve um esforço para compor mensagens que fossem capazes de circular por toda a parte, independentemente de suas condições de produção, as quais contêm em si, na medida do possível, suas chaves de interpretação ou sua "razão". A esse esforço prático corresponde a Idéia do Universal. Em princípio, não há a necessidade de recorrer a um testemunho vivo, a uma autoridade externa, a hábitos ou a elementos de um determinado ambiente cultural, para compreender e admitir as proposições enunciadas nos Elementos de Euclides. Esse texto inclui em si as definições e os axiomas a partir dos quais decorrem necessariamente os teoremas. Os Elementos são um dos melhores exemplos do tipo de mensagem auto-suficiente, auto-explicativa, englobando suas próprias razões, que não teria pertinência alguma numa sociedade oral.
Cada uma à sua maneira, a filosofia e a ciência clássicas almejam a universalidade. Eu formulo a hipótese de que é porque elas não podem ser separadas do dispositivo de comunicação instaurado pela escrita. As religiões "universais" (não estou falando apenas dos monoteísmos: pensemos no Budismo) são todas elas apoiadas em textos. Se eu quiser converter-me ao Islamismo, posso fazê-lo em Paris, em Nova Iorque ou na Meca. Mas se eu quiser praticar a religião bororo (supondo-se que esse projeto tenha um sentido), não tenho outra solução que não ir viver com os bororos. Os rituais, os mitos, as crenças e os modos de vida bororo não são "universais", mas sim contextuais ou locais. De maneira alguma apóiam-se numa relação com os textos escritos. Evidentemente, essa constatação não implica nenhum julgamento de valor etnocêntrico: um mito bororo pertence ao patrimônio da humanidade e pode virtualmente comover qualquer ser pensante. Por outro lado, religiões particularistas também têm seus textos – a escrita não determina automaticamente o universal, ela o condiciona (não há universalidade sem escrita). http://www.youtube.com/watch?v=5jJvvGqdPVk