*(LITERATURA CLANDESTINA REVOLUCIONÁRIA)*MICHEL FOUCAULT LIBERTE-ME.

VC LEU MICHEL FOUCAULT,NÃO?ENTÃO O QUE VC ESTÁ ESPERANDO FILHO DA PUTA?ELE É A CHAVE DA EVOLUÇÃO DOS HUMANOS.HISTORIA DA LOUCURA,NASCIMENTO DA CLINICA,AS PALAVRAS E AS COISAS,ARQUEOLOGIA DO SABER,A ORDEM DO DISCURSO,EU PIERRE RIVIÉRE,A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS,VIGIAR E PUNIR,HISTORIA DA SEXUALIDADE,EM DEFESA DA SOCIEDADE,OS ANORMAIS...EVOLUÇÃO OU MORTE!

Monday, April 30, 2007

BEM VINDO AO DESERTO DO REAL texto de Slavoj Zizek

Queda do World Trade Center ruiu percepção de que EUA poderiam viver em um mundo de especulações desconectadas da esfera da produção material e força país a atravessar tela fantasmática que o separa do exterior A fantasia paranóica americana máxima é a de um indivíduo vivendo em uma pequena e idílica cidade californiana, um paraíso consumista, indivíduo que de repente começa a suspeitar que o mundo no qual vive seja falso, um espetáculo encenado para convencê-lo de que ele vive em um mundo real, enquanto todas as pessoas à sua volta são efetivamente atores e figurantes em um programa gigante. O exemplo mais recente disso é "The Truman Show" (1998), de Peter Weir, com Jim Carrey no papel de um vendedor de seguros da cidadezinha que gradualmente descobre ser o protagonista de um programa de TV permanente e transmitido 24 horas por dia: sua cidade natal é construída dentro de um gigantesco set de filmagem, com câmeras que o seguem permanentemente. Entre seus predecessores, vale a pena mencionar o livro "Time Out of Joint" (Tempo Fora dos Eixos), de Philip K. Dick, no qual o protagonista, vivendo uma vida cotidiana modesta na mesma idílica cidade californiana no final dos anos 50, gradualmente descobre que a cidade inteira é um embuste encenado de forma a mantê-lo satisfeito... A experiência subjacente de "Time Out of Joint" e "The Truman Show" é que o paraíso consumista californiano do capitalismo tardio é, em sua própria hiper-realidade, de certa forma irreal, insubstancial, privado de inércia material. Então não é apenas Hollywood que encena uma aparência de vida real privada do peso e da inércia da materialidade -na sociedade consumista do capitalismo tardio, a própria "vida social real" de algum modo adquire características de uma sociedade encenada, com nossos vizinhos na vida "real" agindo como atores e figurantes... Novamente a verdade máxima do universo capitalista, utilitário e desespiritualizado, é a desmaterialização da própria "vida real", a inversão desta em um show espectral. Entre outros, Christopher Isherwood deu expressão a essa irrealidade da vida cotidiana norte-americana, exemplificada no quarto de motel: "Motéis norte-americanos são irreais! (...) Eles são deliberadamente projetados para serem irreais. (...) Os europeus nos odeiam porque nós nos retiramos para viver dentro de nossas propagandas, como ermitões entrando em cavernas para se dedicar à contemplação". O conceito de Peter Sloterdijk de "esfera" é aqui literalmente realizado, como a gigantesca esfera de metal que envolve e isola a cidade inteira. Anos atrás, uma série de filmes de ficção científica como "Zardoz" (1974) e "Logan's Run" (1976) prognosticou a condição pós-moderna atual ao estender essa fantasia à própria comunidade: o grupo isolado vivendo uma vida asséptica em uma área isolada ambiciona a experiência de um mundo real de decadência material. "Matrix" (1999), o hit dos irmãos Wachowski, trouxe essa lógica ao seu ápice: a realidade material que todos nós experimentamos e vemos à nossa volta é uma realidade virtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador ao qual estamos todos conectados; quando o herói (papel desempenhado por Keanu Reeves) desperta na "realidade real", ele vê uma paisagem arrasada plena de ruínas queimadas -o que restou de Chicago após uma guerra mundial. O líder da resistência Morpheus pronuncia a saudação irônica: "Bem-vindo ao deserto do real". Não foi algo da mesma ordem que ocorreu em Nova York no dia 11 de setembro? Seus cidadãos foram apresentados ao "deserto do real" - para nós, corrompidos por Hollywood, a paisagem e as cenas que vimos das torres arruinadas não puderam deixar de nos lembrar das sequências mais impressionantes dos grandes filmes de catástrofe. Ao ouvir como os ataques foram um choque totalmente imprevisto, como o inimaginável impossível aconteceu, deve ser lembrada outra catástrofe definidora, do começo do século 20: aquela do Titanic. Também foi um choque, mas o espaço para ele já havia sido preparado em fantasias ideológicas, já que o Titanic era o símbolo do poder da civilização industrial do século 19. O mesmo não é verdade para esses ataques? Não apenas a mídia nos bombardeava o tempo todo falando da ameaça terrorista; essa ameaça era também obviamente libidinalmente investida -basta lembrar a série de filmes, de "Fuga de Nova York" a "Independence Day". O impensável que aconteceu era portanto o objeto de fantasia: de certo modo, os EUA receberam aquilo que era o objeto de suas fantasias, e isso foi a surpresa maior. É precisamente agora, quando estamos lidando com o real cru da catástrofe, que devemos ter em mente as coordenadas ideológicas e fantasmáticas que determinam a percepção dela. Se há algum simbolismo no colapso das torres do World Trade Center, ele não é tanto a antiga noção de "centro do capitalismo financeiro", mas, ao contrário, a noção de que as duas torres representavam o centro do capitalismo virtual, de especulações financeiras desconectadas da esfera da produção material. O impacto estilhaçador dos ataques só pode ser medido contra a fronteira que hoje separa o Primeiro Mundo digitalizado do Terceiro Mundo "deserto do real". É a consciência de que nós vivemos em um universo artificialmente isolado que gera a noção de que um agente ominoso nos ameaça todo o tempo com a destruição total.


Foi, consequentemente, Osama bin Laden a mente criminosa que surgiu como a principal suspeita dos ataques, e não a contraparte na vida real de Ernst Stavro Blofeld, o mestre criminoso na maioria dos filmes de James Bond, envolvido em atos de destruição global. O que deve ser lembrado aqui é que o único lugar em filmes hollywoodianos em que nós vemos o processo de produção em toda a sua intensidade aparece quando James Bond penetra o domínio secreto do mestre criminoso e localiza ali o lugar de trabalho intenso (destilação e embalagem das drogas, construção do míssil que destruirá Nova York...). Quando o mestre criminoso, após capturar Bond, o leva em um passeio por suas instalações ilegais -não é isso o mais próximo que Hollywood chega de uma orgulhosa apresentação socialista-realista da produção em uma fábrica? E a função da intervenção de Bond, é claro, é explodir em fogos de artifício o local de produção, permitindo a nós o retorno ao aspecto diário de nossa existência em um mundo com a "classe trabalhadora em desaparecimento". Não foi isso que aconteceu na explosão das torres do World Trade Center, essa violência, comumente dirigida ao ameaçador Exterior, voltada contra nós? A esfera segura em que os americanos vivem é experimentada como sob uma ameaça constante do Exterior de ataques terroristas, que são impiedosamente auto-sacrificantes e também covardes, que são afiadamente inteligentes e também bárbaros primitivos. Sempre que encontramos um mal tão puro no Exterior, nós devemos reunir a coragem para apoiar a lição hegeliana: nesse Exterior puro, nós devemos reconhecer a versão destilada de nossa própria essência. Pois nos últimos cinco séculos a prosperidade e paz (relativas) do Ocidente "civilizado" foram compradas pela exportação de impiedosa violência e destruição ao Exterior "bárbaro": a longa história desde a conquista da América ao massacre no Congo. Por mais que soe cruel e indiferente, nós também deveríamos, agora mais do que nunca, ter em mente que o efeito desses ataques é de fato muito mais simbólico do que real. Os EUA apenas provaram o que acontece no resto do mundo diariamente, de Sarajevo a Grozni, de Ruanda e do Congo a Serra Leoa. Se forem adicionados à situação em Nova York atiradores de elite e estupros em massa, é possível ter uma idéia do que era Sarajevo uma década atrás. Foi quando assistimos na tela de TV ao colapso das duas torres do World Trade Center que se tornou possível experimentar a falsidade dos "reality shows" da TV: mesmo se esses shows forem "de verdade", as pessoas ainda atuam neles -elas simplesmente atuam como elas mesmas. O aviso padrão em um romance ("as personagens deste texto são ficcionais, qualquer semelhança com pessoas da vida real é mera coincidência") também é verdade para os participantes dessas novelas "reality": o que vemos lá são personagens ficcionais, mesmo se eles atuam como si próprios "de verdade". É claro, o "retorno ao real" pode receber diferentes desvios: comentadores de direita, como George Will, quase imediatamente proclamaram o fim das "férias" que os EUA haviam tirado da história - o impacto da realidade tendo estilhaçado a torre isolada da atitude liberal tolerante e o enfoque dos "estudos culturais" na textualidade. Agora nós somos forçados a revidar, a lidar com inimigos reais no mundo real... Entretanto revidar contra quem? Qualquer que seja a resposta, ela nunca atingirá o alvo exato, trazendo-nos satisfação completa. Há uma verdade parcial na noção de "choque de civilizações" atestada aqui -um testemunho exemplifica a surpresa do americano médio: "Como é possível que eles tenham tanto desapego a suas próprias vidas?". Não é o outro lado dessa surpresa o triste fato de que nós, em países do Primeiro Mundo, achamos cada vez mais difícil até imaginar uma causa pública ou universal pela qual sacrificar a própria vida? Ideologia hegemônica Quando, após os atentados, até mesmo o ministro das Relações Exteriores do Taleban disse que podia "sentir a dor" das crianças americanas, isso não foi uma confirmação do papel ideológico hegemônico dessa "frase registrada" de Bill Clinton? Além disso, a noção dos Estados Unidos como um porto seguro, é claro, é também uma fantasia: quando um nova-iorquino comentou sobre como, após os atentados, não é mais possível andar com segurança pelas ruas da cidade, a ironia disso foi que, bem antes dos ataques, as ruas de Nova York eram famosas pelo perigo de ser atacado ou, no mínimo, assaltado - se alguma mudança houve, o que esses atentados criaram foi um novo sentimento de solidariedade, com cenas de jovens afro-americanos ajudando um velho senhor judeu a atravessar a rua, cenas inimagináveis há alguns dias. Agora, nos dias imediatamente subsequentes aos ataques, é como se nós estivéssemos em um tempo único entre um evento traumático e o seu impacto simbólico, como naqueles momentos em que nos cortamos profundamente e a dor ainda não nos atingiu por completo -ainda está em aberto o modo como os eventos serão simbolizados, qual será sua eficácia simbólica, que atos eles serão chamados a justificar. Mesmo aqui, nestes momentos de incomparável tensão, essa associação não é automática e sim contingente. Já há os primeiros maus presságios; no dia após os ataques, eu recebi uma mensagem de um jornal que estava prestes a publicar um longo texto meu sobre Lênin, dizendo que haviam decidido adiar a publicação -haviam considerado inoportuno publicar um texto sobre Lênin imediatamente após os atentados. Será que isso não aponta para ominosas rearticulações ideológicas que se seguirão? Uma ilha incluída Nós ainda não sabemos que consequências, na economia, na ideologia, na política, na guerra, terá esse evento, mas uma coisa é certa: os EUA, que, até este momento, se acreditavam uma ilha excluída desse tipo de violência, testemunhando acontecimentos como esse pela distância segura da tela de TV, estão agora diretamente envolvidos. Então a alternativa é: vão os americanos decidir fortificar ainda mais sua "esfera" ou vão arriscar-se a sair dela? Ou os Estados Unidos vão persistir nessa atitude de "por que isso deveria acontecer a nós? Coisas assim não acontecem por aqui!", quem sabe até fortalecer essa atitude, levando a mais agressividade contra o Exterior ameaçador, em resumo: a uma atuação paranóica. Ou os Estados Unidos vão finalmente arriscar-se a atravessar a tela fantasmática que os separa do mundo exterior, aceitando a chegada deles ao mundo real, fazendo a passagem já por demais atrasada do "uma coisa assim não deveria acontecer por aqui!" para "uma coisa assim não deveria acontecer em lugar nenhum!". As "férias da história" dos EUA foram um embuste: a paz americana foi comprada por meio de catástrofes que aconteceram em outros lugares. Aí reside a verdadeira lição dos atentados: o único modo de assegurar que não acontecerão novamente é evitar que aconteçam em qualquer lugar. (Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.)

Friday, April 27, 2007

texto de giorgio agamben.27/04/07

As reflexões que farei hoje nascem de um mal-estar, ou melhor, de uma série de
perguntas que me pus, assistindo, há algum tempo atrás, em Veneza, a um encontro em
que estavam presentes algumas pessoas que também estão aqui hoje (Toni, Casarini...).
Um termo era repetidamente usado pelos que falavam e discutiam: era o termo “movimento”. Trata-se de um termo que, em nossa tradição, tem uma longa história. Mesmo hoje, na intervenção de Toni (Negri), o termo movimento parece ter sido o mais recorrente. Também no seu livro tem uma posição estratégica, toda vez que se trata de definir o termo multidão, por exemplo, para escapar da falsa alternativa entre soberania e anarquia. De onde vinha meu mal-estar, que se repete também hoje? Do fato de me dar conta, pela primeira vez, de que este termo nunca era definido. Quem o usava provavelmente não o poderia definir, ou em todo caso, nunca o definia. Eu mesmo não o teria conseguido definir. No passado muitas vezes me servi, como regra implícita de minha prática de pensamento, da fórmula: quando há movimento, fazer como se não
houvesse, e quando não há movimento, fazer como se houvesse. Agora me dou conta de
que não sabia o que significava o termo movimento, para além de toda a sua genericidade. Trata-se de um termo que todos acham que entendem, mas que não se define. Por exemplo: de onde provinha este termo? Por que se passa em certo momento a chamar movimento uma instância política decisiva? Assim, as considerações que faço
hoje nascem da consciência de que não era possível deixar indefinido esse termo, esse conceito. Devemos pensar o movimento porque o conceito é de algum modo o nosso
impensado, que, por isso mesmo, corre o risco de comprometer eventualmente nossas
escolhas e nossas
estratégias. Não é apenas um escrúpulo filológico, ou porque a
terminologia é o momento poético e, portanto, produtivo do pensamento, ou porque o meu trabalho consiste em definir conceitos, o que por hábito costumo fazer, mas porque o uso a-crítico de certos conceitos pode ser responsável de muitas derrotas. Lembro que estou apenas no início de uma pesquisa sobre este conceito, e por isso hoje quero apenas plantar algumas balizas, que poderiam servir para endereçar a investigação futura.
Em primeiro lugar, alguns dados históricos banais: o conceito de movimento, que nas ciências e na filosofia tem uma longa história, por sua vez adquire na política um significado técnicorelevante apenas no século XIX.. Um dos primeiros aparecimentos ocorre na Revolução de julho de 1830 na França, na qual os defensores de mudança se denominavam do “partie du mouvement” e os seus adversários do “partie de l’ordre”. De modo breve, talvez só com Lorenz von Stein, autor que, como se sabe, influenciou tanto Marx quanto Carl Schmitt, que este conceito se torna mais preciso e começa a definir um âmbito estratégico de aplicação. Na sua História do Movimento Social na França (1850), Von Stein joga a noção de movimento em contraposição dialética à noção de Estado. O Estado é o elemento estático, legal, enquanto o movimento é a expressão das forças dinâmicas da sociedade. Dessa forma, o movimento é sempre movimento social, em antagonismo com o Estado, e expressa o primado dinâmico da sociedade sobre as instituições jurídicas e estatais. Assim, nem sequer Von Stein define o que entende por movimento; ele atribui a ele uma dinâmica e descreve sua função, mas não lhe dá uma definição nem uma tópica. Algumas indicações interessantes sobre a história dos movimentos podem ser encontradas no livro de Arendt sobre o totalitarismo. Mas também nele o termo acaba não sendo definido. Ou seja, todos sabem o que é, mas ninguém o define. O que Arendt mostra é que por volta da Primeira Guerra Mundial, imediatamente antes e imediatamente depois, os movimentos adquirem na Europa um desenvolvimento extraordinário, mas agora em contraposição aos partidos. Por volta da primeira Guerra Mundial, os
movimentos estendem sua influência em contraposição estratégica contra os partidos.
Assiste-se então a uma verdadeira explosão do conceito e do fenômeno do movimento. Tal terminologia é usada tanto pela direita quanto pela esquerda: Fascismo e Nazismo sempre se definem como movimentos, e só secundariamente como partidos. De toda forma, trata-se de um termo que neste momento ultrapassa o âmbito
político. Muitas pessoas conhecem a importância que, nesse momento, têm na própria formação o Jugendbewegung (movimento de juventude). Para dar um exemplo de fora da política: quando Freud, em 1914, pretende escrever um texto para definir o que é isso, a psicanálise, ele não a define nem como escola, nem como instituição, e nem como disciplina, mas como “movimento psicanalítico”. Mas também aqui não aparece uma
definição. De toda forma, se percebe claramente que há em determinados momentos históricos palavras e conceitos que se impõem como palavras de ordem irresistíveis, que são adotadas por posições antagônicas, sem que, porém, nunca se exija uma definição. O ponto perturbador desta minha pesquisa, o ponto em que se evidencia a cegueira deste conceito, é me ter dado conta que o único que havia tentado definir no âmbito político e também jurídico este termo foi um jurista nazista: Carl Schmitt. No ensaio de 1933, intitulado “Staat, Bewegung, Volk” (Estado, Movimento, Povo), e cujo subtítulo é Die Dreigliederung der politischen Einheit (A tripartição da unidade política), Schmitt procura definir claramente a função político-constitucional da noção de movimento. O que é perturbador é o fato de Schmitt querer definir nesse ensaio a estrutura constitucional do Reich nazista. Trata-se de definir o que ele denomina “heutige Verfassunglage”, ou seja, a situação constitucional do Estado nacional-socialista. Eis um breve resumo das teses de
Schmitt. Parece-me que esta promiscuidade terminológica com um pensador do nazismo exige clareza e lucidez. Portanto, sem uma análise dessa promiscuidade, no caso da análise como a de Schmitt, não é possível esclarecer e sair dessa promiscuidade. Segundo Schmitt, a política do Reich nazista se funda sobre três elementos ou membros: Estado, movimento e povo. Por conseguinte, a articulação constitucional do Reich nazista é resultado da articulação e da distinção desses três elementos. O primeiro elemento é o Estado - declara Schmitt – e importa prestar atenção na definição que ele dá: o Estado é a parte política estática. Trata-se do aparato das repartições. O povo –


preste-se também atenção – é o elemento impolítico, não político, (unpolistisch), que cresce à sombra e sob a proteção do movimento. O movimento, por sua vez, é o verdadeiro elemento político, elemento político dinâmico, que encontra a sua forma específica na relação com o Partido Nacional
Socialista, com a direção (Führung). Importante é que para Schmitt o próprio Führer não é senão a personificação do movimento. Gostaria ainda de falar sobre as implicações dessa tripartição, que, segundo
Schmitt, também está presente no aparato
constitucional do Estado soviético. Uma primeira consideração importante, rica de conseqüências, é a seguinte: o primado da noção de movimento é função do fato de o povo se tornar impolítico (insistimos que o povo é o elemento impolítico que cresce à sombra e sob a proteção do movimento...). Portanto, eis a primeira conseqüência importante: o movimento torna-se o conceito político decisivo quando o conceito democrático de povo, como corpo político, já está ultrapassado. Isso talvez hoje não nos deixe surpresos, mas se pode dizer que a democracia acaba quando nascem os movimentos. Em sentido substancial, não existem movimentos democráticos (entendendo aqui por democracia aquela tradição que vê no povo o seu elemento político constitutivo – se de fato a democracia possa ou não repousar sobre o conceito de povo, isso é outro problema...). Esse pressuposto – o de que os movimentos estabelecem o fim do conceito de povo como corpo político – parece
ser compartilhado tanto pela tradição revolucionária da esquerda, quanto pelo fascismo e
pelo nazismo. Não é por acaso que pensadores políticos contemporâneos, como Toni (Negri), procuram pensar o novo corpo político recorrendo a outras noções, como multidão, e não à de povo. Em Hobbes, a noção de multidão também aparece contraposta à noção de povo. Para mim também é significativo que em volta de Jesus não há nunca laos nem demos (termos técnicos no grego para “povo”), mas apenas oclos (uma massa, uma “turba”, conforme a tradução de São Jerônimo, uma multidão). Em volta de Jesus nunca há povo, mas somente multidão. Portanto, o conceito de movimento pressupõe o eclipse do conceito democrático de povo como sujeito político constitutivo, como corpo político. Esta é a primeira conseqüência do uso do termo movimento. E nisso concordam nazismo e fascismo: estes nascem da consciência de que o conceito de povo como corpo político está ultrapassado. A segunda conseqüência desse conceito schmittiano de movimento é a de que o povo é um elemento impolítico cujo crescimento o movimento precisa proteger e sustentar (Schmitt usa o termo “wachsen”, que tem a ver com crescimento biológico, de plantas e animais). Conforme declara Schmitt, isso corresponde não à esfera não política do povo, mas à esfera impolítica da administração (Selbstverwaltung). Schmitt lembra também o estado corporativo fascista. Olhando as coisas com os olhos de hoje, parece que não se pode deixar de ver - nessa determinação do povo como elemento não-político - o implícito reconhecimento, que Schmitt nunca ousa articular, do seu caráter biopolítico. O povo, deixa de ser corpo político constitutivo, e se transformou em população, ou seja, em entidade demográfico-biológica, e, como tal, impolítica. Uma entidade que o movimento deve sustentar, proteger e fazer crescer. Quando, durante o século XIX, o povo se transforma de entidade política em entidade demográfica e biológica, em populações, o movimento se torna uma necessidade. Disso também devemos ter consciência: vivemos em uma época na qual a transformação do povo em população, de uma entidade política em entidade demográfica, é um fato cabal. O povo hoje é uma realidade biopolítica, no sentido de Foucault, no sentido restrito do termo, e é essa transformação biopolítica do antigo sujeito político, que torna necessário o conceito de movimento. Se, porventura, quisermos pensar de forma diferente o conceito de biopolítica, como o faz Toni (Negri), mesmo que em perspectiva diferente, e da qual eu me sinto muito próximo, se quisermos, pois, pensar a intrínseca politicidade do biopolítico – se o elemento biopolítico é visto como político desde sempre , e por isso não precisa ser politizado através do movimento ¾ então precisaremos repensar, desde a raiz, o conceito de movimento. Não poderemos usar a-criticamente o conceito de movimento se, por exemplo, quisermos pensar a
politicidade do elemento biopolítico. Tal trabalho de definição torna-se necessário também porque, continuando a ler o texto de Schmitt, verificamos como aparecem, a partir do conceito de movimento, aporias especialmente ameaçadoras. Se, na perspectiva de Schmitt, o elemento político determinante, se o elemento político autônomo é o movimento, e se o povo, por sua vez,
é um elemento impolítico, então o movimento só poderá encontrar sua politicidade na
medida em que sinalizar no corpo biopolítico do povo para cesuras internas que permitam
a sua politicização. Essa cesura é denominada por Schmitt de identidade de espécie, ou
seja, racismo. Podemos verificar que aqui Schmitt alcança a máxima identificação com o



racismo e a máxima co-responsabilidade com o nazismo. Isso é um fato e, ao mesmo tempo nos devemos dar conta de que essa escolha, a de ser obrigado a identificar uma cesura, no corpo impolítico do povo, é a conseqüência imediata da sua concepção da função do movimento. Se o elemento político não for o povo, mas o movimento como entidade autônoma, de onde o movimento pode tirar sua politicidade? A politicidade do movimento poderá basear-se unicamente na sua capacidade de identificar no interior do povo um inimigo, ou seja, um elemento racialmente estranho – no caso de Schmitt. Onde há movimento sempre haverá uma cesura que corta o povo, que divide o povo, nesse caso identificando um inimigo. Eis porque me parece tão urgente repensar o conceito de movimento, e esclarecer a sua relação com o de povo e de multidão. Em Schmitt vemos
que o elemento excluído do movimento como impolítico volta a apresentar-se como aquilo que precisa, cada vez, ser decidido; trata-se de um decisão política sobre o impolítico, sobre o que é impolítico no político. Em Schmitt, o movimento é um órgão que decide sobre o impolítico. É uma decisão política sobre o impolítico. Isso pode ter a forma de uma cesura étnica ou racial, mas também, como acontece hoje, a forma de indicar uma tarefa de gestão e de governo daquele elemento impolítico que são as populações, o corpo biológico da humanidade, dos povos, que o poder hoje deve governar. Há algumas perguntas que hoje se põem para nós. Em primeiro lugar: devemos continuar usando o conceito de movimento, ou devemos abandoná-lo? Se, por exemplo, o conceito de movimento sinaliza para uma espécie de politização do impolítico, poderia acontecer um movimento que fosse diferente, por exemplo, de uma guerra civil? Ou então, outra pergunta: em que direção poderíamos repensar o conceito de movimento e sua relação com o biopolítico? Com esta pergunta gostaria de terminar. Não darei aqui uma resposta, para uma pesquisa que tomará muito tempo, mas gostaria apenas de dar algumas indicações de horizonte, para onde nos podemos movimentar ou onde podemos pesquisar.


Sabemos que o conceito de movimento é o conceito central no pensamento de Aristóteles. No interior do seu pensamento, o conceito de movimento, kinesis, cumpre uma função estratégica num âmbito muito importante, como o da relação entre potência e ato. Aristóteles apresenta uma definição muito interessante: movimento é o ato de uma potência enquanto potência, mais do que uma passagem para o ato. Noutro lugar ele afirma que o movimento é um ato imperfeito, ateles, que não se possui no seu fim, que não tem fim. Neste caso, sugeriria uma pequena modificação em Aristóteles, que vai numa direção - entre as muitas diferenças que nos opõem - que Toni poderia compartilhar comigo: o movimento é a constituição de uma potência enquanto potência. Mas se isso for verdade, então nunca conseguiremos pensar que o movimento seja externo ou autônomo em relação à multidão, ao povo. Assim, o movimento nunca poderá ser sujeito de uma decisão, organização, direção do povo, ou nunca poderá ser elemento de politicização da multidão ou do povo. Outra coisa que me parece interessante em Aristóteles é que o movimento é um ato ao qual falta um fim, ateles, incompleto, in-finito, no sentido de lhe faltar um telos. Isso significa que o movimento se mantém numa relação essencial com uma privação, com uma ausência de telos, com uma imperfeição. Movimento é sempre, constitutivamente, relação com o próprio faltar, com a própria ausência de um ergon, de um telos e também de uma obra. Aquilo sobre o que nunca estou de acordo com Toni é a ênfase posta na produtividade. Há que reivindicar também a inoperosidade, a ausência de obra como
elemento central... Por conseguinte, o movimento é algo que nunca se possui em um
ergon, em um telos, em uma obra. Movimento expressa nesta perspectiva a impossibilidade de um telos, de um ergon, ou de um fim de uma obra para a política. Movimento significa precisamente o fato de ser indefinida (indefinitezza) e a imperfeição de toda política. Nesse sentido, o movimento deixa sempre um resíduo. Sob esta perspectiva, o mote que havia citado inicialmente, e que servia de regra interna para o meu pensamento - quando há movimento, fazer como se não houvesse; e quando não há movimento, fazer como se houvesse – poderia ser reformulado, em sentido ontológico, da seguinte maneira: o movimento é aquilo que, se existe, é como se não existisse, ele falta a si mesmo (manca a se stesso), e quando não existe, é como se
existisse, excede a si mesmo (eccede a se stesso). Há, pois, um umbral de indeterminação entre o excesso e a falta que marca o limite e o resíduo de qualquer política na sua constitutiva imperfeição. Tradução portuguesa da intervenção feita por Giorgio AGAMBEN, em italiano, em encontro realizado emVeneza. Audio acessado em junho de 2005: http://www.globalproject.info/IMG/mp3/03_agamben.mp3.
Conservou-se em geral, na tradução portuguesa, o estilo da intervenção falada, embora se tenha cotejado áudio em italiano com a transcrição feita e traduzida para o inglês – por Arianna Bove - acessada, emagosto de 2005, na revista eletrônica Multitudes: http://multitudes.samidzat.net/article.php3?id_article=1914




Wednesday, April 25, 2007

Fiodor Dostoiévski 25/04/07

Suicídio, Sentido da Vida e Imortalidade
Os dois artigos abaixo - escritos por Fiódor Dostoiévski em 1876 - foram extraídos da coletânea Diário de um Escritor (SP: Edimax, 196? - trad. de E. Jacy Monteiro). Observe que o segundo é uma justificativa do primeiro, uma vez que o escritor, sentindo-se incompreendido por boa parte de seus leitores, viu-se na obrigação de explicitar sua mais profunda convicção: sem a imortalidade da alma individual a vida humana não tem o menor sentido. (Y.V.S.) Aqui está o raciocínio de um "suicida por tédio", naturalmente materialista:
"Que direito tinha a Natureza de trazer-me ao mundo obedecendo às suas pretensas leis eternas? Sou consciente. Por que essa Natureza me criou sem meu consentimento, a mim, consciente; isto é, capaz de sofrer? Mas não quero sofrer mais. Para que serviria? A Natureza, pela voz da minha consciência, declara-me haver no Universo harmonia geral. Nela se baseiam as religiões humanas. E se não quiser desempenhar o meu papel nessa harmonia, será necessário que, apesar de tudo, me submeta às declarações de minha consciência? Será preciso aceitar o sofrimento em vista da harmonia do conjunto? Se me fosse dado escolher, preferiria ser feliz durante o curto momento da minha existência; preocupo-me infinitamente pouco com o todo e do que acontecerá a esse todo quando estiver morto. Por que motivo irei preocupar-me com a sua conservação em época em que já terei desaparecido? Preferiria viver como os animais, que são inconscientes. Parece-me que a consciência, longe de cooperar para a harmonia geral, é causa de cacofonia, visto como me faz sofrer. Olhem as pessoas que são felizes neste mundo, as que consentem sofrer! São precisamente os que parecem com os animais, que se aproximam da besta pelo desenvolvimento limitado da consciência, os que vivem vida brutal, que consiste unicamente em comer, beber, dormir e procriar. Comer, beber, dormir: isto significa, na linguagem humana, voar, roubar e construir um ninho. Poderão ojetar ser possível construir um abrigo de maneira razoável, digamos mesmo científica. Mas... para que? Para que criar uma situação de maneira justa e sábia na sociedade humana? Ninguém responderá a tal pergunta.


"Sim, se eu fosse flor ou vaca, talvez me sentisse feliz. Mas nada há que me faça experimentar alegria. Até mesmo a sorte mais elevada, a de amar aos seus semelhantes, é vã, visto como amanhã tudo ficará destruído, tudo voltará ao caos. "Admitindo-se mesmo por um momento que a humanidade marche para a felicidade, que os homens do futuro sejam perfeitamente ditosos, bastará saber que para obter tal resultado a Natureza teve necessidade de martirizar milhões de seres durante milhões de anos para essa idéia tornar-se insuportável e odiosa. Sem levar em conta que a natureza se apressará a mergulhar mais uma vez essa felicidade no nada. "Às vezes se me apresenta pergunta horrivelmente triste: e se o homem fosse somente objeto de uma experiência? E se não se tratasse senão de saber se é ou não capaz de adaptar-se à vida terrestre? Mas não, não há nada, não és experimentador, logo não és culpado; tudo está feito de acordo com as leis cegas da natureza e não só a natureza não me reconhece o direito de interrogá-la, e não me responde, mas não pode admitir seja o que for, nem responder. "Considerando que quando a consciência me responde em nome da Natureza nada mais faço senão emprestar as próprias idéias à consciência e à natureza; "Considerando que, nessas condições, sou ao mesmo tempo quem pergunta e responde, réu e juiz, parecendo-me esta comédia estúpida e intolerável e até mesmo humilhante; "Em minha condição incontestável de quem pergunta e responde, de juiz e réu, condeno a Natureza, que me criou insolentemente para que sofra, a desaparecer comigo. "Como não posso executar toda a minha sentença, destruindo a natureza ao mesmo tempo que a mim mesmo, suprimo-me a mim mesmo, entediado de suportar uma tirania de que ninguém tem culpa."

Afirmações Sem Provas Meu artigo é relativo à idéia mais elevada da vida humana: a necessidade, a indispensabilidade da crença na imortalidade da alma. Quis dizer que sem essa crença a vida humana se torna ininteligível e insuportável. Parece-me ter enunciado claramente a fórmula do suicídio lógico. O meu suicida não acredita na imortalidade da alma, e assim fala desde o início do artigo. A pouco e pouco, pensando que a vida não tem objetivo, arrebatado pelo ódio contra a inércia muda de tudo quanto o rodeia, chega à convicção que a vida humana é absurda. Apresenta-se-lhe tão claramente como a luz do dia que tão somente os homens semelhantes aos animais e que satisfazem a necessidades puramente animais podem consentir viver. Tais indivíduos vivem "para comer, beber e dormir", como os brutos "para fazer o próprio leito e procriar". Engolir, roncar e sujar talvez seduza o homem por muito tempo ligando-o à Terra; mas não a mim, homem superior, claro está. Não obstante, são os homens do tipo superior que sempre reinaram sobre a Terra, e nem por isso o que tinha de acontecer se deu de maneira diferente. Mas há uma palavra suprema, uma idéia suprema, sem a qual a humanidade não pode viver. Muitas vezes pronuncia-a o pobre, sem influência, até mesmo perseguido. Mas a palavra pronunciada e a idéia que exprime não morrem e mais tarde, apesar da vitória aparente das forças materiais, a idéia vive e frutifica. Disse N.P. que semelhante confissão em meu Diário constitui anacronismo ridículo, porque estamos atualmente no século das "idéias de ferro", das idéias positivas; no século da "vida sobretudo". Por isso, sem dúvida, aumentou tanto o número de suicidas entre as pessoas inteligentes e cultas. Asseguro ao digno N.P. e a todos os seus semelhantes que o ferro das idéias transforma em algo muito mais brando quando chega a hora. Quanto a mim, uma das minhas maiores preocupações quando penso em nosso futuro é precisamente o progresso da falta de fé. A falta de crença na imortalidade da alma se arraiga cada vez mais ou, para dize-lo melhor, nota-se em nossos dias absoluta indiferença para essa suprema idéia da existência humana: a imortalidade. Tal indiferença converte-se em particularidade da alta sociedade russa. É mais evidente entre nós do que na maior parte dos países europeus. E sem esta idéia suprema da imortalidade da alma não podem existir nem homem nem nação. Todas as grandes idéias restantes derivam dessa. O meu suicida é propagandista apaixonado da sua idéia: a necessidade do suicídio; mas não é nem indiferente nem "homem de ferro". Sofre realmente; creio tê-lo feito compreender. É para ele demasiado evidente que não pode viver; está convencido que tem razão e não se pode refuta-lo. Para que viver, se está convencido que é abominável viver vida animal? Dá-se conta da exist6encia de harmonia geral; di-lho a consciência, mas a ela não se associa. Não o compreende... Onde, então, está o mal? Em que se enganou? O mal está em ter perdido a fé na imortalidade da alma. Não obstante, procurou com todas as suas forças o sossego e a conciliação com o que o rodeia. Quis falar no "amor à humanidade". Mas isto também lhe escapa. A idéia de que a vida da humanidade nada mais é do que um instante; de que tudo, mais tarde, se reduz a zero, mate, dentro dele, até mesmo o amor à humanidade. Tem-se visto em famílias desgraçadas e desunidas de pobres sentir horror aos filhos a quem queriam tanto! A consciência de em nada poder socorrer a humanidade sofredora é capaz de transformar o amor que por ela se sente em ódio. Os senhores de "idéias de ferro" claro que não acreditarão em minhas palavras. Para eles o amor à humanidade e sua felicidade está tão bem organizado que não vale a pena pensar nisso. E desejo fazê-los rir de qualquer maneira. Declara, portanto, que o amor à Humanidade é inteiramente impossível sem a crença na imortalidade da alma humana. Os que querem substituir esta crença pelo amor à Humanidade depositam na alma dos que perderam a fé o germe do ódio à Humanidade. Que dêem de ombros os sábios das "idéias de ferro" ao ouvir-me exprimir tal idéia. Mas esta idéia é mais profunda que a sabedoria deles, e chegará o dia em que se transformará em axioma. Chego mesmo a afirmar que o amor à Humanidade é em geral pouco compreensível (leia-se inacessível) para a alma humana. Somente o sentimento pode justifica-lo, e este somente é possível com a crença na imortalidade da alma humana. (E, além disso, sem provas.)

Em resumo: está claro que sem crenças, o suicídio se torna lógico e até inevitável para o homem que apenas se elevou acima das sensações da besta. Ao contrário, a idéia da imortalidade da alma, prometendo a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Nisto parece existir contradição. Se, distinta da vida terrestre, temos outra celeste, para que fazer muito caso desta aqui em baixo? Mas somente pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoável da vida sobre a Terra. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação ao planeta diminui, e a perda do sentido supremo da vida conduz incontestavelmente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma é tão necessária à vida humana é por ser o estado normal da Humanidade, provando que a imortalidade existe. Em uma palavra: esta crença é a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência real para a Humanidade. Eis aí o objetivo do meu artigo, a conclusão a que desejava que cada um chegasse quando o escrevi. Nota de Y.V.S.: Vale a pena observar a perspicácia da análise de Dostoiévski que, partindo da psicologia pura, chega a ser profética. O avanço das tais "idéias de ferro" causou um número de vítimas, não apenas na Rússia mas também nos demais países socialistas - incluindo a Alemanha nazista (Partido Nacional-Socialista) -, nunca antes visto na história: mais de 100 milhões de pessoas só no século XX. Tal extermínio em massa de um povo por seus próprios dirigentes é uma prova contundente dessa desespiritualização que, infelizmente, ainda não deixou de se alastrar pela Terra.

Saturday, April 14, 2007

Entrevista Giorgio Agamben.14/04/07



Flavia Costa: Na introdução de Homo Sacer I, você afirma que havia concebido inicialmente o livro como uma resposta à "sangrenta mistificação de uma nova ordem planetária" (e que em seu desenvolvimento se viu diante de problemas, como o da sacralidade da vida, que não estavam no plano inicial). Como se conforma a partir de então seu projeto intelectual?
GIORGIO AGAMBEN: Quando comecei a trabalhar em Homo Sacer, soube que estava abrindo um canteiro que implicaria anos de escavações e de pesquisa, algo que não poderia jamais ser levado a termo e que, em todo caso, não poderia ser esgotado certamente em um só livro. Daí que o algarismo I no frontispício de Homo Sacer é importante. Depois da publicação do livro, freqüentemente me acusam de oferecer ali conclusões pessimistas, quando na realidade deveria ter ficado claro desde o princípio que se tratava somente de um primeiro volume, no qual expunha uma série de premissas e não de conclusões. Talvez tenha chegado o momento de explicitar o plano da obra, ao menos tal como ele se apresenta agora em minha mente. Ao primeiro volume (O poder soberano e a vida nua, publicado em 1995), seguirá um segundo, que terá a forma de uma série de investigações genealógicas sobre os paradigmas (teológicos, jurídicos e biopolíticos) que têm exercido uma influência determinante sobre o desenvolvimento e a ordem política global das sociedades ocidentais. O livro Estado de exceção (publicado em 2003) não é senão a primeira dessas investigações, uma arqueologia do direito que, por evidentes razões de atualidade e de urgência, pareceu-me que devia antecipar em um volume à parte. Porém, inclusive aqui, o algarismo II, indicando a seqüência da série, e o algarismo I no frontispício indicam que se trata unicamente da primeira parte de um livro maior, que compreenderá um tipo de arqueologia da biopolítica sob a forma de diversos estudos sobre a guerra civil, a origem teológica da oikonomia, o juramento e o conceito de vida (zoé) que estavam já nos fundamentos de Homo Sacer I. O terceiro volume, que contém uma teoria do sujeito ético como testemunha, apareceu no ano de 1998 com o título Ciò che resta di Auschwitz. L'Archivio e il testimone. No entanto, talvez será somente com o quarto volume que a investigação completa aparecerá sob sua luz própria. Trata-se de um projeto para o qual não só é extremamente difícil individualizar um âmbito de investigação adequado, senão que tenho a impressão de que a cada passo o terreno desaparece debaixo dos meus pés. Posso dizer unicamente que no centro desse quarto livro estarão os conceitos de forma-de-vida e de uso, e que o que está posto em jogo ali é a tentativa de capturar a outra face da vida nua, uma possível transformação da biopolítica em uma nova política.
F. C.: Você integra um grupo não muito extenso de pesquisadores europeus que têm realizado uma leitura atenta de autores como Martin Heidegger e Carl Schmitt, e a tem incluído no marco de um pensamento - por assim dizer - emancipatório. Como foi se articulando em sua bibliografia intelectual a leitura desses autores?
G. A.: Os dois autores que você cita tiveram em minha vida um peso diferente. O encontro com Heidegger foi relativamente cedo, e ele inclusive foi determinante em minha formação depois dos seminários de Lê Thor, em 1966 e em 1968. Mais ou menos nos mesmos anos durante os quais eu lia Walter Benjamin, leitura que talvez me serviu de antídoto ante o pensamento de Heidegger. Estava em questão o conceito mesmo de filosofia, o modo pelo qual deveria responder à pergunta, prática e teórica ao mesmo tempo: que é a filosofia? O encontro com Carl Schmitt se deu, por outro lado, relativamente tarde, e teve um caráter totalmente distinto. Era evidente (creio que é evidente para qualquer um que não seja estúpido nem tenha má-fé, ou, como acontece freqüentemente, as duas coisas juntas) que, se queria trabalhar com o direito e sobre a política, era com ele que eu deveria medir-me. Como com um inimigo, antes de tudo - mas a antinomia amigo-inimigo era precisamente uma das teses schmittianas que eu queria pôr em questão.
F. C.: A recepção de sua obra tem sido polêmica em alguns países, sobretudo na Alemanha. Talvez um dos momentos mais provocadores de seu trabalho seja quando rastreia e expõe a matriz comum (a "íntima solidariedade") entre democracia e totalitarismo. Como você comenta isso?
G. A.: Na perspectiva arqueológica, que é a de minha pesquisa, as antinomias (por exemplo, a da democracia versus totalitarismo) não desaparecem, mas perdem seu caráter substancial e se transformam em campos de tensões polares, entre as quais é possível encontrar uma via de saída. Não se trata, então, de distinguir o que é bom do que é mal em Heidegger ou em Schmitt. Deixemos isto aos bem pensantes. O problema, sobretudo, é que se não se compreende o que se põe em jogo no fascismo, não se chega a observar sequer o sentido da democracia.
F. C.: O que você entende por arqueologia? Que lugar ocupa em seu método de trabalho?
G. A.: Meu método é arqueológico e paradigmático num sentido muito próximo ao de Foucault, mas não completamente coincidente com ele. Trata-se, diante das dicotomias que estruturam nossa cultura, de ir além das exceções que as têm produzido, porém não para encontrar um estado cronologicamente originário, mas, ao contrário, para poder compreender a situação na qual nos encontramos. A arqueologia é, nesse sentido, a única via de acesso ao presente. Porém, superar a lógica binária significa, sobretudo, ser capaz de transformar cada vez as dicotomias em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de demarcação. Lógica do campo contra lógica da substância. Significa, entre outras coisas, que entre A e A se dá um terceiro elemento que não pode ser, entretanto, um novo elemento homogêneo e similar aos anteriores: ele não é outra coisa que a neutralização e a transformação dos dois primeiros. Significa, enfim, trabalhar por paradigmas, neutralizando a falsa dicotomia entre universal e particular. Um paradigma (o termo em grego quer dizer simplesmente "exemplo") é um fenômeno particular que, enquanto tal, vale por todos os casos do mesmo gênero e adquire assim a capacidade de construir um conjunto problemático mais vasto. Nesse sentido, o panóptico em Foucault e o duplo corpo do rei em Kantorowicz são paradigmas que abrem um novo horizonte para a investigação histórica, subtraindo-a aos contextos metonímicos cronológicos (França, o século XVIII). No mesmo sentido, em meu trabalho, lancei mão constantemente dos paradigmas: o homo sacer não é somente uma figura obscura do direito romano arcaico, senão também a cifra para compreender a biopolítica contemporânea. O mesmo pode ser dito do "muçulmano" em Auschwitz e do estado de exceção. F. C.: No livro, você historiciza o processo - acelerado depois da Primeira Guerra Mundial - segundo o qual o estado de exceção se transforma em regra; o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Como você chega a esta idéia?
G. A.: Para mim tratava-se, sobretudo, de compreender a profunda transformação que se havia produzido na constituição material, isto é, na vida política das assim chamadas democracias nas quais vivemos. Está claro que nenhuma das categorias fundamentais da tradição democrática manteve seu sentido, sobre isso não podemos estar iludidos. Em Estado de exceção tentei indagar essa transformação de um ponto de vista do direito; perguntei-me o que significa viver em um estado de exceção permanente. Creio que os dois campos de investigação que Foucault deixou de lado, o direito e a teologia, são extremamente importantes para compreender nossa situação presente. Em todo caso, é nesses dois âmbitos que tenho trabalhado nesses últimos anos.
F. C.: Por que você considera fundamental uma teoria geral do estado de exceção: uma teoria do vazio do direito que, contudo, o funda? Imagina uma práxis para essa teoria?
G. A.: Algumas vezes foi dito que em cada livro há algo assim com um centro que permanece escondido; e que é para aproximar-se, para encontrar e - às vezes - para evitar esse centro que se escreve esse livro. Se tivesse de dizer qual é, no caso do Estado de exceção, esse núcleo problemático, diria que está na relação entre anomia e direito, que no curso da pesquisa apareceu como a estrutura constitutiva da ordem jurídica. Um dos objetivos do livro era precisamente a tentativa de abordar e analisar essa dupla natureza do direito, essa ambigüidade constitutiva da ordem jurídica pela qual esta parece estar sempre fora e dentro de si mesma, simultaneamente vida e norma, fato e direito. O estado de exceção é o lugar no qual essa ambigüidade vem à luz e, simultaneamente, o dispositivo que deveria manter unidos os dois elementos contraditórios do sistema jurídico. Ele é, nesse sentido, aquilo que funda o nexo entre violência e direito e, ao mesmo tempo, no ponto em que se torna "efetivo", aquilo que rompe com esse nexo. E para responder à segunda parte de sua pergunta, diria que a ruptura do nexo entre violência e direito abre duas perspectivas à imaginação (a imaginação é naturalmente já uma práxis): a primeira é a de uma ação humana sem nenhuma relação com o direito, a violência revolucionária de Benjamin ou um "uso" das coisas e dos corpos que não tenha nunca a forma de um direito; a segunda é a de um direito sem nenhuma relação com a vida - o direito não aplicado, mas somente estudado, do qual Benjamin dizia que é a porta da justiça.
F. C.: Você afirma que não há um retorno possível do estado de exceção em que vivemos imersos para o estado de direito. Que a tarefa que nos ocupa é, em todo caso, a de denunciar a ficção da articulação entre violência e direito, entre vida e norma, para abrir ali a cesura, o campo da política. Contudo, não nos devemos também uma teoria, não tanto do "poder constituinte" como da "instituição política", quer dizer, uma teoria sobre a "práxis articulatória" que inclua a politicidade do vivente como um elemento central?
G. A.: Precisamente porque se trata de romper o nexo entre violência e direito, o problema aqui é que devemos superar a falsa alternativa entre poder constituinte e poder constituído, entre a violência que instala o direito e a violência que o conserva. Porém, precisamente por isso me parece que não se trata tanto de "instituir" e de "articular", como de destruir e desarticular. Em geral, em nossa cultura o homem tem sido pensado sempre com a articulação e a conjunção dos princípios opostos: uma alma e um corpo, a linguagem e a vida, nesse caso um elemento político e um elemento vivente. Devemos, ao contrário, aprender a pensar o homem como aquele que resulta da desconexão desses dois elementos e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação.
F. C.: A dinâmica de como desinstalar o instituído sem instituir ao mesmo tempo uma nova instituição remete certamente à idéia de revolução permanente. Pergunto-lhe não pelo "o que fazer?", mas sim até onde crê que é possível e desejável orientar-se na tentativa de pensar uma política "completamente nova"?
G. A.: Diria que o problema da revolução permanente é o de uma potência que não se desenvolve nunca em ato, e, ao contrário, sobrevive a ele e nele. Creio que seria extremamente importante chegar a pensar de um modo novo a relação entre a potência e o ato, o possível e o real. Não é o possível que exige ser realizado, mas é a realidade que exige tornar-se possível. Pensamento, práxis e imaginação (três coisas que jamais deveriam ser separadas) convergem nesse desafio comum: tornar possível a vida.
F. C.: No primeiro capítulo - de O Estado de exceção - você assinala que, em que pese a crescente conversão das democracias parlamentares em governamentais, e o aumento do "decisionismo" do poder executivo, os cidadãos ocidentais não registram essas mudanças e crêem seguir vivendo em democracias. Você tem uma hipótese sobre por que isso acontece? Caberia enfocar esse tema com base em uma teoria sobre a sujeição voluntária ao poder disciplinar (aquilo que Legendre chama "o modo em que o poder se faz amar")?
G. A.: O problema da sujeição voluntária coincide com aqueles processos de subjetivação sobre os quais trabalhava Foucault. Foucault mostrou, parece-me, que cada subjetivação implica a inserção em uma rede de relações de poder, nesse sentido uma microfísica do poder. Eu penso que tão interessantes como os processos de subjetivação são os processos de dessubjetivação. Se nós aplicamos também aqui a transformação das dicotomias em bipolaridades, poderemos dizer que o sujeito apresenta-se como um campo de forças percorrido por duas tensões que se opõem: uma que vai até a subjetivação e outra que procede em direção oposta. O sujeito não é outra coisa que o resto, a não-consciência desses dois processos. Está claro que serão as considerações estratégicas aquelas que decidirão, a cada momento, sobre qual pólo fazer a alavanca para desativar as relações de poder, de que modo fazer jogar a dessubjetivação contra a subjetivação e vice-versa. Letal é, por outro lado, toda política das identidades, ainda que se trate da identidade do contestatário e a do dissidente.
F. C.: Você afirma que "vida nua" e "norma" não são coisas preexistentes à máquina biopolítica, são um produto de sua articulação. Você poderia explicar isto? Porque é mais simples compreender que o direito foi "inventado", mas custa mais se desembaraçar da idéia de que os seres humanos somos, em algum sentido, "existências nuas", que pouco a pouco vamos aprovisionando-nos de nossas roupagens: língua, normas, hábitos...
G. A.: Aquilo que chamo vida nua é uma produção específica do poder e não um dado natural. Enquanto nos movimentarmos no espaço e retrocedermos no tempo, jamais encontraremos - nem sequer as condições mais primitivas - um homem sem linguagem e sem cultura. Nem sequer a criança é vida nua: ao contrário, vive em uma espécie de corte bizantina na qual cada ato está sempre já revestido de suas formas cerimoniais. Podemos, por outro lado, produzir artificialmente condições nas quais algo assim como uma vida nua se separa de seu contexto: o muçulmano em Auschwitz, a pessoa em estado de coma etc. É no sentido que eu dizia antes que é mais interessante indagar como se produz a desarticulação real do humano do que especular sobre como foi produzida uma articulação que, pelo o que sabemos, é um mitologema. O humano e o inumano são somente dois vetores no campo de força do vivente. E esse campo é integralmente histórico, se é verdade que se dá história de tudo aquilo de que se dá vida. Porém, nesse continuum vivente se podem produzir interrupções e cesuras: o "muçulmano" em Auschwitz e o testemunho que responde por ele são duas singularidades desse gênero.
F. C.: Em Homo sacer I você diz: "O corpo técnico do Ocidente já não pode superar-se em outro corpo técnico ou integralmente político [...]. Antes será preciso fazer do próprio corpo biopolítico, da vida nua mesma, o lugar no qual se constitui e assenta uma forma de vida vertida integralmente nessa vida nua. Um bios que seja somente sua zoé". Como você analisa as ilusões de "superar" o corpo biológico (e biopolítico) num corpo técnico?
G. A.: A frase que você citou sobre um bios que é somente sua zoé é para mim o selo e a empresa do que resta pensar. Todos os problemas, incluído o da técnica, deverão ser reinscritos na perspectiva de uma vida inseparável de sua forma. No fundo, a vida fisiológica não é outra coisa que uma técnica esquecida, um saber tão antigo que já perdemos toda memória dele. Uma apropriação da técnica não poderá ser feita sem um re-pensamento preliminar do corpo biopolítico do Ocidente.
F. C.: Nos últimos anos, muitas das energias do pensamento sobre a resistência e a emancipação se concentraram em desenvolver uma teoria da defecção, do êxodo (por exemplo, penso em Toni Negri e Michael Hardt, Paolo Virno, Albert Hirschmann). Quer dizer, diante da expansão totalitária em escala global, parece haver uma aposta na negatividade, no silêncio e no exit. Qual a sua opinião sobre isto?
G. A.: Para dizer a verdade, não estou muito convencido de que o êxodo seja hoje um paradigma verdadeiramente praticável. O sentido desse paradigma é, por outro lado, solidário do paradigma do Império, com o qual forma sistema. A analogia com a história da relação entre vida monástica e o Império Romano nos primeiros séculos da era cristã é iluminadora. Também nessa época, fizeram frente a um poder global centralizado formas de êxodo organizado que deram vida às grandes ordens conventuais. A analogia com a situação descrita em um livro recente que teve muita sorte é evidente. Inclusive, às vezes, penso que Negri e Hardt têm perfeito equivalente em Eusebio Cesarea, o teólogo da corte de Constantino (que Overbeck definia ironicamente como o friser da peruca teológica do imperador). Eusebio é o primeiro cristão a teorizar sobre a superioridade do único poder imperial sobre o poder das diversas pessoas e nações. Ao único Deus nos céus corresponde um único império sobre a terra. A história das relações entre Igreja e Império Romano é uma mescla e uma alternância de êxodo e alianças, de rivalidade e negociatas. Contudo, a cidade celeste de Agostinho ainda é peregrina, quer dizer, está no êxodo mesmo quando está em seu próprio terreno. Não creio que tenha sentido aplicar hoje o mesmo modelo. O êxodo da vida monástica fundava-se de fato sobre uma radical heterogeneidade da forma de vida cristã e sobre uma sólida fé comum, apesar disso, não alcançou ser verdadeiramente antagonista. Hoje, o problema é que uma forma de vida verdadeiramente heterogênea não existe, ao menos nos países do capitalismo avançado. Nas condições presentes, o êxodo pode assumir somente formas subalternas e não é uma causalidade se termina pedindo ao inimigo imperial que lhe pague um salário. Está claro que uma vida separada de sua forma, uma vida que se deixa subjetivar como vida nua não estará em condições de construir uma alternativa ao império. O que não significa que não seja possível trazer do êxodo modelos e reflexões. Penso, por exemplo, nos conceitos franciscanos de uso e de forma de vida, que são ainda hoje extremamente interessantes.

Monday, April 09, 2007

As manipulações da Globo sobre a Previdência.09/04/07




O Fantástico e a “reforma” da Previdência
Por Wagner Gomes *
A propaganda conservadora sobre “problemas” na Previdência Social tem várias faces. Agora, é a Globo que investe no assunto, diagnosticando que o sistema de aposentadoria brasileiro tem “distorções” peculiares. Para a poderosa rede de televisão, uma pequena fatia de “privilegiados” consome uma fatia descomunal do bolo previdenciário.
O programa Fantástico, apresentado pela Rede Globo de Televisão no domingo (8), promoveu mais uma das muitas manipulações a respeito da Previdência Social. Utilizando dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento — um organismo ainda infestado de economistas neoliberais —, a matéria discorreu sobre “distorções” no sistema de aposentadoria “que só existem no Brasil”.
O Fantástico deixou de lado — pelo menos nesta edição do programa — a sistemática campanha contra a Constituição de 1988 — o principal argumento usado pelos neoliberais para atacar a Previdência Social — e concentrou o ataque na faixa de “ricos” que, de acordo com a Globo, consomem uma parte considerável do bolo arrecadado pelo sistema. Trata-se de mais um argumento falacioso.
A questão toda se resume ao conceito de administração da macroeconomia. Sem cortar os benefícios concedidos pelo Estado, o governo terá dificuldades para manter o elevado superávit primário exigido pelos compromissos com o setor financeiro. Para cumprir esses “contratos”, o governo terá de quebrar o contrato social assumido pela sociedade com a Constituição de 1988.
Afinal, como o presidente Luis Inácio Lula da Silva costuma dizer, controlar as contas de um país é o mesmo que acertar o caixa de casa: adequar a saída de recursos à entrada. E quando os gastos incham de um mês para outro, como no caso do pagamento de juros à ciranda financeira, é preciso compensar a despesa de alguma forma. É aí que entra a diferença a respeito do papel do Estado entre progressistas e conservadores.
Convenção 95 da OIT
Uma das maiores vantagens geradas pela mudança no Ministério da Fazenda, com a saída de Antônio Palocci, se refere ao tratamento que está sendo dado aos gastos públicos. Palocci vinha acenando com a intenção de realizar um corte profundo nas despesas sociais, mas pouco conseguiu de concreto. Seu sucessor, Guido Mantega, tem acenado em outra direção. Para ele, os investimentos públicos devem aumentar sem o sacrifício dos direitos sociais.
É evidente que o ministro contraria os neoliberais. O aumento do investimento público é uma necessidade indiscutível: desde 1991, quando a “era neoliberal” ganhou impulso, esse investimento — em estradas, portos e aeroportos, por exemplo — caiu de 2,9% do PIB para 1,9%, um dos mais baixos da história. Mas ele não pode implicar em cortes sociais.
Parece óbvio, mas no raciocínio dos neoliberais essa lógica cedeu lugar à crença de que os recursos que no futuro pagariam as aposentadorias devem incentivar atividades da economia do país. Além da cantilena sobre aposentadorias “precoces” — o tão falado aumento da idade mínima —, eles querem desobrigar o patronato de parte das contribuições — o certamente diminuirá os recursos previdenciários consideravelmente.
Um dos pleitos do patronato, na “reforma”, é o fim da obrigatoriedade de as empresas recolher ao INSS a contribuição social sobre os valores pagos na forma de benefícios aos trabalhadores, conforme estipula a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em sintonia com a convenção 95 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) — ratificada pelo Brasil.
A previdência “piada”
Esta convenção estabelece o princípio da proteção do salário ao determinar em seu item 3 do artigo 11º que a legislação nacional deve determinar “a relação de prioridade entre o salário, que se constitui em crédito privilegiado, e os demais créditos preferenciais”. Ou seja: a lei permite o pagamento em outras modalidades que não em dinheiro e a CLT determina o recolhimento da contribuição social sobre essa parte indireta de remuneração.
Caso bem conhecido é o do vale-refeição, o do vale-transporte, o caso da moradia, mas também são aceitos vestuário, cesta básica e outros. Algumas dessas formas a lei isentou de contribuição previdenciária, outras não. Se todas ficassem isentas, a Previdência Social poderia enfrentar problemas financeiros maiores que os que já enfrenta.
O problema é que os neoliberais trabalham para um setor da economia interessado no sistema de aposentadoria privado: as seguradoras e os bancos. Se forem vitoriosos, eles terão a tão sonhada previdência privada; e os trabalhadores terão a previdência ''piada''. No Brasil, temos exemplos disso. Atraídos pela possibilidade de ter um complemento de suas aposentadorias, milhares de pessoas recorreram a bancos ou a empresas de pecúlio. Depois de anos de contribuição, muitas pessoas nem sequer viram a cor do dinheiro.
Há também casos de pessoas que recebem ninharias que nem sequer pagam um cafezinho. Diante dessa situação, a Previdência Social se inscreve como um ponto crucial da batalha de fundo entre progressistas e conservadoras. Afinal, são as espertas lideranças neoliberais que querem os recursos públicos a serviço exclusivo dos interesses privados.



Peter Sloterdijk e Axel Honneth ambos alemaês,são os maiores pensadores da alemanha atual.09/04/07

Luta por Reconhecimento apresenta uma teoria que sintetizando perspectivas diversas oferece uma modelo abrangente e original de compreensão da realidade social. Um texto necessário no momento em que se torna claro que os conflitos sociais, mais do que a demanda por uma justa distribuição de bens materiais, colocam e pauta a luta pela dignidade humana, pela integridade física e pelo recfonhecimento do valor das diversas culturas e modos de vida.































Se a Europa Despertar:
A Europa foi libertada pelos aliados em 1945 da ditadura nazista — e ao mesmo tempo o velho “Império do Centro” foi agarrado pelas tenazes de novas potências mundiais a Oeste e a Leste. Nesta dupla experiência os europeus vivenciaram seu ano zero, até hoje motivo de uma longa e sofrida reflexão que se arrasta por duas gerações. Peter Sloterdijk avança a tese de que não haverá como pensar a nova Europa dessa virada de milênio se os europeus não voltarem a seus fundamentos histórico-filosóficos e buscarem uma orientação programática assentada numa “mitomotricidade” imperial portadora de mitos fundadores que resultaram nos esplendores culturais, filosóficos e políticos de que a Europa contemporânea se quer herdeira. Nesse sentido, poderá a noção de Nietzsche de “obrigatoriedade da grande política” ser preenchida de um novo conteúdo contemporâneo, após o fim do vácuo no qual a tragou sua trágica safra de totalitarismos e guerras mundiais? Acrescentamos na presente edição uma entrevista de Sloterdijk onde este revê, à luz do 11 de setembro norte-americano e de neoimperialismos unilaterais, alguns embates expostos no texto original, redigido sob influência das alterações inter-imperiais após o 1989 soviético / europeu.




O Desprezo das Massas é um brilhante ataque que o filósofo alemão Peter Sloterdijk desfere contra o senso comum “ilustrado”, dada a asfixia do pensamento em exercícios diletantes das formas, amante de uma álgebra inútil. Partindo de um diálogo com Elias Canetti e seu diagnóstico acerca da agressividade da massa (essa heroína apressada de uma modernidade iludida) contra o talento e a diferença antropológica vertical, e estendendo esse diálogo a Heidegger, Nietzsche, Foucault, Rorty (criticando nesse sua aposta em uma estupidez democrática anti-filosófica), entre outros, Sloterdijk chega mesmo a buscar luzes em alguns momentos da teologia da graça, mais uma vez revelando sua qualidade de não dizer o que é normalmente considerado como de “bom tom” para as “posturas inteligentes modernas”. Aliás, essa tem sido sua tônica: dizer aquilo que a militância das “massas inteligentes” desprezam: “Por essa razão em todo mundo crescem como erva daninha aquelas comissões de ética que, como institutos da destroçada filosofia, querem substituir os sábios.”




Peter Sloterdijk se insere no debate sobre a hiperpolítica, fulminando com seu estilo ímpar quatro mil anos de história. Ele distancia seu olhar, à medida que mergulha nas grandes civilizações da Antiguidade, o que lhe permite apreender alguns vícios fundamentais de nossa nossa época com extrema perspicácia.A partir dessa combinação de flash backs e tempo real, Sloterdijk chega à tese de que os homens estão sentados sobre uma bomba-relógio lógica desde a invenção da roda - bomba armada pelo conceito de diversidade e pluralidade da espécie humana, cujo potencial explosivo engendrou nos últimos dois ou três séculos reações em cadeia: fenômeno aliás mais conhecido como "História universal". Apresentando o processo histórico como uma longa sucessão de convívios forçados, Sloterdijk enquadra-os em três etapas: mostra como a partir do pau torto das hordas pré-históricas primeiro foram talhados os antigos povos de caçadores e colhedoras; como depois na época agro-cultural foram empilhados impérios e reinos; e como finalmente na era industrializante uma sociedade tendendo ao tráfego universal elabora um difuso, por vezes desregulado, estado planetário pós-imperial. O que o leva a refletir sobre a arte do possível em nossa época, que não se deixa mais definir como política, apenas como hiperpolítica - às hiper-hordas da atualidade corresponde apenas, quando muito, uma hiperpolítica. No entanto, esta padece ainda de duas falhas: todas as tentativas de transportar a cidade para o Grande, isto é, para uma sociedade universalizante, levam a totalitarismos e ao sacrifício das pequenas unidades empurradas para becos psicopatológicos. Portanto, qualquer política futura estará sujeita a uma situação onde não somente o Pequeno e o Grande devem ser novamente configurados, mas também o Velho e o Novo.



O desenvolvimento a longo prazo conduzirá a uma reforma genética das características da espécie humana? Uma antropotecnologia futura avançará até um planejamento explícito de suas características? Essas perguntas de respostas complexas estiveram no centro do já famoso discurso de Elmau: um debate sobre a evolução futura da espécie no contexto de "um humanismo que naufragou como escola da domesticação humana", e do qual ninguém poderá se furtar.Em julho de 1999 eclodiu uma polêmica num pitoresco castelo da Baviera como há muito já não se via nestes tempos de horizontes tranqüilos e conflitos pasteurizados. Uma palestra refinada e aparentemente despretensiosa — tomando como ponto de partida o diagnóstico heideggeriano da crise do humanismo e prosseguindo retroativamente pela denúncia nietzscheana da domesticação apequenadora do homem pelo homem até as acintosas recomendações de Platão sobre a arte de pastorear seres humanos — se transformaria no maior debate político-filosófico dos últimos anos a varrer uma Europa em confronto com um fim-de-século tão cheio de indagações e inseguranças quanto o foi seu início.Para onde nos levará o perigoso fim humanismo literário enquanto utopia da formação humana? Como nos posicionar frente ao homem re-desenhado, frente às manipulações genéticas que sabemos serão feitas quer se queira ou não? A discussão é fundamental e apenas ensaia seus primeiros passos. Ingressamos no terreno movediço da antropotécnica, como diria Sloterdijk. Uma leitura atenta deste texto tão recente e já célebre — e ele mesmo um revelador exemplo de uma ontextualização simplificadora por uma parte da crítica — nos mostra o autor advogando a necessidade de se definir regras éticas e controles sociais para as aplicações cronológicas já ao alcance dos grandes conglomerados da bioengenharia e, em especial, para as assustadoras possibi-lidades, já fartamente disponíveis, de seleção pré-natal dos próprios seres humanos.


Monday, April 02, 2007

Kirkpatrick Sale, fala sobre o colapso do império americano.Kirkpatrick é esse da foto.02/04/07



(Kirkpatrick Sale é norte-americano, autor de 12 livros, onde se incluem "Escala Humana", "A Conquista do Paraíso", "Rebeldes Contra o Futuro" e "O Fogo do Seu Génio: Robert Fulton e o Sonho Americano", alguns traduzidos para português no Brasil)

É um tanto irónico: após mais ou menos uma década passada sobre a ideia dos Estados Unidos como potência imperial ter sido aceite à direita e à esquerda, e de ter sido possível falar abertamente sobre um império americano, este mostra agora múltiplos sinais da sua incapacidade de prosseguir. De facto, é agora possível contemplar o seu colapso, e especular abertamente sobre ele.
Os "neocons" que presentemente ocupam o poder em Washington, que adoram falar sobre a America como o único império do mundo que sucedeu à desagregação soviética, recusarão obviamente acreditar neste colapso, tal como ignoram a realidade da guerra imperial no Iraque. Mas creio que nos cabe a tarefa de examinar seriamente as causas que fazem perigar tão drasticamente o sistema norte-americano, cuja queda provocará não só o colapso do império global mas alterará drasticamente a própria nação na sua frente interna.
Todos os impérios acabaram por desabar: Acádia, Suméria, Babilónia, Nínive, Assíria, Pérsia, Macedónia, Grécia, Cartago, Roma, Mali, Songai, Mongol, Tokugawa, Gupta, Khmer, Habsburgo, Inca, Asteca, Espanhol, Holandês, Otomano, Austríaco, Francês, Britânico, Soviético, qualquer que seja, todos caíram, e a maior parte durou poucas centenas de anos. As razões não são sequer muito complexas. Um império é um tipo de sistema estatal que, inevitavelmente, comete os mesmos erros simplesmente pela natureza da sua estrutura imperial, e falha inevitavelmente devido ao seu tamanho, complexidade, extensão territorial, estratificação, heterogeneidade, domínio, hierarquia e desigualdades.
Nas minhas leituras sobre a história dos impérios, deparei com quatro motivos que quase sempre explicam o seu colapso. (O novo livro de Jared Diamond, «Colapse», também tem uma lista de razões para o colapso das sociedades e é parcialmente coincidente, mas ele fala sobre sistemas e não sobre impérios.) Deixem-me então enumerá-los, referindo o seu contexto no actual império americano.
Primeiro, a degradação ambiental. Os impérios acabam sempre por destruír as terras e as águas de que dependem para sobreviver, sobretudo porque a agricultura e a construção crescem sem limites, e o nosso caso não é excepção, apesar de ainda não termos chegado ao nível máximo de agressão à natureza. A ciência é unânime na afirmação de que todos os mais importantes indicadores ecológicos estão em declínio desde há várias décadas: a erosão dos solos e das linhas costeiras, pesca acima do limite, deflorestação, esgotamento dos recursos hídricos e da água potável, poluição da água, do solo, do ar e dos alimentos, salinização dos solos, sobrepopulação, sobreconsumo, esgotamento do petróleo e minerais, aparecimento de novas doenças e recrudescimento das existentes, o extremar das condições meteorológicas, a fusão das neves e gelos e consequente elevação do nível médio dos mares, extinção de espécies, e a sobreutilização da capacidade fotossintética da Terra. Tal como disse E.O. Wilson, biólogo de Harvard, após uma pormenorizada observação do impacto humano sobre a Terra, "a nossa pegada ecológica é já demasiado grande para o que o planeta consegue suportar, e torna-se cada vez maior". Um estudo do Departamento da Defesa, datado do ano passado, previa "mudanças climáticas abruptas", com possibilidade de ocorrência dentro de uma década, que levarão a uma escassez "catastrófica" de água e energia, "roturas e conflitos" endémicos, um estado permanente de guerra que "definiria a vida humana", e uma "queda significativa" na capacidade do planeta para sustentar a sua população actual. Será certamente o fim do império, e poderá ser o fim da civilização.

Em segundo lugar, a dissolução económica. Os impérios dependem sempre de uma excessiva exploração dos recursos, devido frequentemente a colónias cada vez mais longe do centro, e eventualmente acabam por cair quando os recursos se esgotaram, ou se tornaram demasiado caros para toda a gente à excepção de uma elite. Esse é precisamente o percurso em que nos encontramos; o peak oil (pico de extracção do petróleo), por exemplo, foi largamente previsto ocorrer no próximo ano, ou daqui a dois anos, e a nossa economia está inteiramente construída num sistema frágil em que o mundo produz, e nós consumimos (os produtos fabricados nos EUA são apenas 13 por cento do nosso PIB). Neste momento temos um déficit na balança de pagamentos com o resto do mundo na ordem dos 630.000 milhões de dólares; cresceu uns incríveis 500.000 milhões desde 1993, e cresceu 180.000 milhões desde que Bush chegou a presidente em 2001. Para conseguir pagar isto, devíamos ter uma entrada de dinheiro vinda do resto do mundo na ordem dos 1.000 milhões de dólares por dia, e durante os últimos meses esse valor tem andado em cerca de metade. Este tipo de excesso é simplesmente insustentável, sobretudo se pensarmos que o outro império do mundo, a China, que é crucial para o suportar, contraíu empréstimos ao tesouro dos EUA no valor de 83.000 milhões de dólares.
Acrescente-se a isto uma economia assente num déficit do orçamento Federal de quase 500.000 milhões de dólares, que faz parte de um débito nacional total que, no final do último ano, tinha o valor de 7,4 biliões, e a contínua sangria da economia pelos militares de, pelo menos, 530.000 milhões por ano (sem contar com a espionagem militar, cujos números nunca saberemos). Ninguém acredita que isto seja igualmente sustentável, por isso é que o dólar perdeu o seu valor por todo o lado - 30 por cento contra o euro desde 2000 - e o mundo perdeu a confiança no investimento feito aqui. Eu prevejo que, dentro de poucos anos, o dólar se deprecie tanto que os países produtores de petróleo deixarão de querer transaccionar nesta moeda e se voltarão para o euro, e a China deixará o yuan flutuar contra o dólar, o que tornará esta nação falida e sem poder, incapaz de controlar a vida económica dentro das suas fronteiras, e muito menos fora delas.
Em terceiro lugar, o sobre-esforço militar. Os impérios, porque são por definição colonizadores, são sempre forçados a estender o seu alcance militar cada vez mais longe, e a aumentá-lo contra um número crescente de colonos descontentes, até os cofres ficarem vazios e as linhas de comunicação demasiado extensas; as tropas tornam-se ineficazes, a periferia resiste e acaba por se revoltar. O império americano, que se tornou global bem antes de Bush II, tem hoje 446.000 soldados activos em mais de 725 bases conhecidas (mais um número desconhecido de bases secretas), em pelo menos 38 países à volta do mundo, a que se acrescenta uma "presença militar" formal em nada menos do que 153 países em todos os continentes à excepção da Antártida, e a quase uma dúzia de frotas completamente artilhadas em todos os oceanos. E por falar em demasiada extensão: os norte-americanos são menos de 5 por cento da população mundial. E agora que Bush declarou uma "guerra ao terror", em vez de uma mais exequível guerra à Al-Qaeda, os nossos exércitos e agentes estarão num campo de batalha universal e permanente que não se consegue controlar ou conter.
Até agora essa rede militar não tombou mas, como se vê no Iraque, está posta à prova e mostra-se incapaz de levar a parcerias que façam o que lhes é pedido, ou que protejam os recursos de que necessitamos. E à medida que um sentimento anti-americano continua a espalhar-se e a escurecer nos países muçulmanos e numa grande parte da Europa e da Asia, à medida que cada vez mais países recusam os "ajustamentos estruturais" que a nossa globalização via-FMI necessita, torna-se provável que a periferia do nosso império comece a resistir ao nosso domínio, militarmente se necessário. E, longe de termos capacidade para combater duas guerras simultaneamente, como o Pentágono esperava em tempos, tem-se provado que não conseguimos vencer sequer uma.
Em último lugar, as divergências e convulsões internas. Os impérios tradicionais acabaram por ruír por dentro ao mesmo tempo que eram atacados pelo exterior; mas até agora o nível de discordância dentro dos EUA não atingiu o ponto de rebelião ou secessão, graças não só a uma crescente repressão das divergências, a uma escalada do medo em nome da "segurança da pátria", como ao sucesso da nossa moderna versão do "pão e circo", uma combinação única de entretenimento, desporto, televisão, jogos e sexo por internet, consumismo, drogas, álcool e religião, que amortece eficazmente o público num estado de estupor. Mas a táctica da administração Bush II mostra que receia tanto a expressão de divergência popular, que está disposta a desafiar e ignorar direitos ambientais e civis, grupos progressistas, a subornar comentadores para espalhar a sua propaganda, a incrementar a vigilância e invasões de privacidade, a usar guerrilha partidária e golpes de bastidores para espezinhar a oposição do Congresso, a usar mentiras e ilusões como uma forma normal de governação, a quebrar leis e tratados internacionais para a obtenção de resultados de curto-prazo, e a usar a religião como uma capa para todas as políticas.
É difícil crer que a grande massa do público americano alguma vez se agite para desafiar o império internamente, antes das coisas ficarem muito, muito piores. Este é afinal o público em que, conforme uma sondagem Gallup revelou em 2004, 61 por cento acredita que "a religião pode responder a todos ou quase todos os problemas de hoje", e segundo uma sondagem Time/CNN de 2002, 59 por cento acredita no apocalipse iminente anunciado no Livro da Revelação e toma cada ameaça ou desastre como uma evidência da vontade de Deus. E no entanto, é também difícil de acreditar que uma nação tão profundamente corrompida como esta (em todas as suas instituições fundamentais, nos seus partidos comprados, academias, corporações, corretagens, contabilidades, governos) e assente numa base social e económica de intoleráveis desigualdades de rendimento e propriedade, tornando-se progressivamente mais desigual, consiga sustentar-se por muito mais tempo. As ondas do debate sobre secessão, depois das últimas eleições, alguns dos quais eram efectivamente sérios e levaram à organização de grupos na maioria dos estados "azuis" (democratas), indicam que pelo menos uma minoria está disposta a pensar em medidas drásticas para "alterar ou abolir" um regime com o qual não concordam.
Estes quatro processos pelos quais os impérios acabam sempre por cair, parecem-me em curso, em fases variáveis, neste último império. E penso que a combinação de vários, ou todos eles, provocarão o seu colapso em cerca de 15 anos.
O recente livro de Jared Diamond, que se debruça sobre as formas de colapso das sociedades, sugere que a sociedade americana, ou a civilização industrial como um todo, uma vez consciente dos perigos do sua direcção actual, pode aprender com os erros do passado e evitar o seu destino. Mas isso nunca acontecerá, e por uma razão que o próprio Diamond entende.
Como ele diz, na sua análise da sociedade nórdica da Gronelândia que se extinguiu no início do séc. XV: "Os valores a que as pessoas se apegam mais obstinadamente nas condições mais desadequadas, são aqueles valores que eram anteriormente a fonte dos seus maiores triunfos sobre a adversidade". Sendo assim, e os seus exemplos parecem prová-lo, então podemos isolar os valores da sociedade americana que foram responsáveis pelos seus maiores triunfos e sabemos que nos agarraremos a eles aconteça o que acontecer. Eles são uma mistura de capitalismo, individualismo, nacionalismo, tecnofilia e humanismo (significando o domínio do humano sobre a natureza). Não há nenhuma hipótese em que, por mais grave e óbvia que seja a ameaça, como sociedade, abandonemos esses valores.
Por isso não há qualquer hipótese de fugir à queda do império.