entrevista com Judith Butler...garotas não fiquem bravas,por eu ter roubado as fotos e vcs:)27/05/07






Há, entretanto, algo mais a considerar, que nos remete de volta à questão do construtivismo. Expressões como "há uma matriz de relações de gênero" parecem se referir, mas também se referem lateralmente, dentro da linguagem, às convenções de atribuição ontológica. São 'mímicas' filosóficas no sentido descrito por Luce Irigaray. Referem-se a certos tipos de convenções filosóficas. Mas também quero sustentar que a reivindicação ontológica nunca pode apreender totalmente seu objeto, visão esta que me diferencia um pouco de Foucault e me alinha temporariamente com a tradição kantiana, conforme utilizada por Derrida. O "há" aponta em direção a um referente que não consegue capturar, porque o referente não está completamente construído na linguagem, não é o mesmo que o efeito lingüístico. Não existe um acesso a ele fora do efeito lingüístico, mas o efeito lingüístico não é o mesmo que o referente que não consegue capturar. É isso que permite que existam várias maneiras de se referir a algo, e nenhuma das quais pode alegar ser aquela a que a referência é feita.


IM e BP: O trocadilho de seu título é muito feliz: "bodies that matter" ao mesmo tempo se materializam, adquirem significado e obtêm legitimidade. Corpos que não importam são corpos 'abjetos'. Tais corpos não são inteligíveis (um argumento epistemológico) e não têm uma existência legítima (um argumento político ou normativo). Daí, não conseguem se materializar. Entretanto, você argumenta que os corpos abjetos também 'existem', isto é, como um poder excluído, disruptivo. A essa altura, ficamos um tanto confusas: corpos que não conseguem se materializar podem mesmo assim 'ser' corpos? Se você quer que o conceito de 'abjeto' se refira a corpos que 'existem', não seria mais adequado dizer que, embora corpos abjetos sejam construídos, tenham se materializado e adquirido inteligibilidade, ainda assim não conseguem ser qualificados como totalmente humanos? Em outras palavras, não seria o caso dizer que corpos abjetos importam ontológica e epistemologicamente, mas ainda não são considerados num sentido político-normativo? JB: Realmente, em um sentido estritamente filosófico, dizer ao mesmo tempo que "há" corpos abjetos e que eles não têm reivindicação ontológica parece ser o que habermassianos denominariam uma contradição performativa. Bem, poderíamos tomar uma posição medieval e escolástica a esse respeito e dizer, ah sim, que alguns tipos de seres têm existência ontológica mais completa que outros, etcetera, etcetera. Permaneceríamos, assim, dentro de um tipo de esquema filosófico que seria conceitualmente satisfatório. Mas eu gostaria de fazer um outro tipo de pergunta. Ou seja: como é que o domínio da ontologia, ele próprio, está delimitado pelo poder? Como é que alguns tipos de sujeitos reivindicam ontologia, como é que eles contam ou se qualificam como reais? Nesse caso, estamos falando sobre a distribuição de efeitos ontológicos, que é um instrumento de poder, instrumentalizado para fins de hierarquia e subordinação, e também com vistas à exclusão e à produção de domínios do inimaginável. Todo esse território da ontologia que o bom filósofo, aquele conceitualmente puro, considera óbvio já vem profundamente corrompido em sua origem. Ora, não podemos olhar a gramática e dizer: "Se eu disser que há corpos abjetos, devo conseqüentemente ser capaz de retroceder, a partir da afirmação 'há', para uma ontologia anterior". Dificilmente, dificilmente. O que eu poderia dizer é que "há corpos abjetos", e isso poderia ser um performativo ao qual eu atribuo ontologia. Eu atribuo ontologia exatamente àquilo que tem sido sistematicamente destituído do privilégio da ontologia. O domínio da ontologia é um território regulamentado: o que se produz dentro dele, o que é dele excluído para que o domínio se constitua como tal, é um efeito do poder. E o performativo pode ser uma das formas pelas quais o discurso operacionaliza o poder. Assim , estou realizando uma contradição performativa, propositalmente. E estou fazendo isso exatamente para confundir o filósofo conceitualmente correto e para colocar a questão da condição secundária e derivativa da ontologia. Para mim não se trata de uma pressuposição. Mesmo se eu disser que "há corpos abjetos que não gozam de uma determinada situação ontológica", eu realizo essa contradição de propósito. E estou fazendo isso precisamente para jogar no rosto daqueles que diriam: "Mas você não estaria pressupondo...?" Não! Minha fala não precisa necessariamente pressupor... Ou, se o faz, tudo bem! Talvez esteja produzindo o efeito de uma pressuposição através de sua performance, OK? E isso é ótimo! Comecem a se acostumar! Mas trata-se claramente de inaugurar um novo domínio ontológico, não de pressupor um que já exista. Trata-se de instituir um domínio discursivamente.


IM e BP: Mesmo assim, ainda fica difícil apreender a noção do 'abjeto' em seu trabalho, o que pode ser devido ao caráter eminentemente abstrato da maioria de suas definições e descrições. Você parece um tanto relutante em dar exemplos mais concretos do que poderia ser considerado corpos abjetos. JB: Bem, sim, certamente. Pois, como se sabe, as tipologias são exatamente o modo pelo qual a abjeção é conferida: considere-se o lugar da tipologia dentro da patologização psiquiátrica. Entretanto, prevenindo qualquer mal-entendido antecipado: o abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e cuja materialidade é entendida como ''não importante'. Para dar uma idéia: a imprensa dos Estados Unidos regularmente apresenta as vidas dos não-ocidentais nesses termos. O empobrecimento é outro candidato freqüente, como o é o território daqueles identificados como 'casos' psiquiátricos.
IM e BP: Concordamos que falar abertamente sobre esse assunto se aproxima dos limites do que pode ser dito. Mesmo assim, você poderia desenvolver esse tópico um pouco mais?
JB: OK, farei isso, mas tenho que fazer outra coisa ao mesmo tempo. Poderia enumerar muitos exemplos do que considero ser a abjeção dos corpos. Podemos notá-la, por exemplo, na matança de refugiados libaneses: o modo pelo qual aqueles corpos, aquelas vidas, não são entendidos como vidas. Podem ser contados, geralmente causam revolta, mas não há especificidade. Posso verificar isso na imprensa alemã quando refugiados turcos são mortos ou mutilados. Seguidamente podemos obter os nomes dos alemães que cometem o crime e suas complexas histórias familiares e psicológicas, mas nenhum turco tem uma história familiar ou psicológica complexa que o Die Zeit alguma vez mencione, ou pelo menos nenhuma que eu tenha encontrado em minhas leituras desse material. Assim, recebemos uma produção diferenciada, ou uma materialização diferenciada, do humano. E também recebemos, acho eu, uma produção do abjeto. Então, não é que o impensável, que aquilo que não pode ser vivido ou compreendido não tenha uma vida discursiva; ele certamente a tem. Mas ele vive dentro do discurso como a figura absolutamente não questionada, a figura indistinta e sem conteúdo de algo que ainda não se tornou real. Mas seria um grave erro pensar que a definição do abjeto se esgota nos exemplos que dou. Gostaria de protelar qualquer solução fácil até encontrar um aparato conceitual que proporcionasse à operação da abjeção uma espécie de autonomia relativa, de até mesmo um vazio, uma falta de conteúdo ¾ exatamente para não poder ser captada através de seus exemplos, de modo que seus exemplos não pudessem se tornar normativos do que queremos significar por abjeto. O que seguidamente acontece é que as pessoas apresentam teorias abstratas sobre coisas do tipo da abjeção, depois dão os exemplos, e então os exemplos se tornam normativos de todo o resto. O processo se torna paradigmático e acaba por produzir suas próprias exclusões. Torna-se fixo e normativo no sentido de rigidez. IM e BP: Então, a abjeção é um processo? Um processo discursivo? JB: Acho que sim! Acho que tem que ser, sim.
IM e BP: Então, não se trata de corpos em si, mas do modo como aparecem no discurso? Nós, por exemplo, nos perguntamos se o corpo oriental, o corpo velado, o corpo feminino sob véus, quando entra no espaço público, conta como exemplo do abjeto. Hesitamos a esse respeito, porque esse corpo, essa mulher, age de acordo com uma norma estabelecida. De certa forma não conseguimos conciliar abjeção com normatividade. JB: Esta pergunta leva a algumas outras questões diferentes. Assim, deixem-me dar algumas outras respostas. Uma delas é que eu acho que discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue.

E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. Então, não quero afirmar que haja uma construção discursiva de um lado e um corpo vivido de outro. Mas o outro aspecto, que talvez seja mais importante aqui, é que nós também devemos nos preocupar com certas formas de descrever o orientalismo e especialmente aquele orientalismo que diz respeito a mulheres, a corpos de mulheres e à auto-representação das mulheres. Por exemplo, há vários debates sobre o véu. Existem algumas teóricas, teóricas feministas, que argumentam que o véu é, na verdade, muito complexo e que muitas vezes um certo tipo de poder que as mulheres exercem no contexto de países islâmicos de se expressar e ter influência é facilitado pelo véu, exatamente porque esse poder é desviado e tornado menos identificável. Então, se vocês me falassem da 'mulher sob o véu', significaria a mulher no Irã? A mulher de uma certa classe social? Em que contexto? Com que propósito? Qual é a ação, qual é a prática de que estamos falando? Em que contexto estamos tentando decidir se a mulher sob o véu é ou não um exemplo do abjeto? O que me preocupa é que, em certos casos, isso poderia ser visto como uma abjeção: no sentido de que essa mulher é literalmente proibida de mostrar sua face e assim entrar no domínio público de humanos com face. Em um outro nível, no entanto, poderíamos dizer que, como ocidentais, estamos reconhecendo mal um certo artefato cultural e instrumento religioso que tem sido uma das formas tradicionais de as mulheres exercerem poder. Esse debate específico sobre o véu tem atrapalhado os debates feministas. A questão é: as feministas estão sendo orientalistas quando assumem que a mulher sob o véu é sempre uma mulher abjeta? Quero deixar essa questão em aberto; é por isso que eu acho que deve haver uma incomensurabilidade entre a elaboração teórica da abjeção e seus exemplos. E pode até ser que o exemplo funcione em alguns contextos e não em outros. IM e BP: Falando em contexto, não seria isso o outro lado da questão do "há"? Como você mencionou antes, uma das funções da fórmula "há" é que você se engaja em um debate sobre ontologia, sobre o que é e o que pode ser pensado. Em Gender Trouble, você intervém no debate sobre a construção das identidades de gênero. Conforme você observa aqui, "a coerência interna ou unidade de cada gênero, homem ou mulher, requer uma heterossexualidade tanto estável quanto oposicional. Essa heterossexualidade institucional tanto requer quanto produz a univocidade de cada um dos termos gendrados que constituem o limite das possibilidades gendradas dentro de um sistema oposicional, binário de gênero".7 Nossa pergunta se refere à mencionada necessidade do caráter heterossexual de práticas que geram identidades estáveis. A matriz heterossexual também não obscurece os poderes performativos da divisão sexual entre mulheres? Historiadoras feministas têm mostrado que a estabilidade das identidades de gênero não dependem automaticamente de negociações heterossexuais, mas também de diferenças entre mulheres 'respeitáveis' e outras mulheres, entre homens 'respeitáveis' e outros homens. Questionar a normatividade da heterossexualidade é um gesto poderoso, mas será que não obscurece o fato de que as pessoas constroem noções de diferença não apenas através do gênero mas também de divisões sexuais/sexualizantes no interior dos gêneros através de categorias de raça, classe ou habilidades físicas? Mulheres portadoras de deficiência sofrem por serem estigmatizadas como menos femininas do que suas companheiras sem problemas físicos. Por outro lado, mulheres negras são às vezes estereotipadas como sendo mais 'mulheres', enquanto que em outros contextos são consideradas menos femininas (ladylike) do que mulheres brancas. A construção de identidades de gênero, estamos sugerindo, deu-se não apenas pela repetição da diferença entre mulheres e homens, femininidade e masculinidade, mas também pela constante afirmação da oposição hierárquica entre femininidade e falta de femininidade, entre masculinidade e falta de masculinidade. O que você acha do argumento de que o oposto de femininidade é freqüentemente não a masculinidade mas a falta de femininidade e de que essas noções nem sempre coincidem?

JB: Bem, vocês sabem, o que me preocupa é isso. Se o lesbianismo for entendido como uma dentre muitas formas de impropriedade, então a relação entre sexualidade e gênero permanece intacta no sentido de que não nos perguntaríamos sob quais condições o lesbianismo realmente afeta a noção de gênero. Não é simplesmente a questão de o que é uma mulher própria ou imprópria, mas o que não é absolutamente concebível como uma mulher! E é aqui que retornamos para a noção de abjeção. Eu acho que a abjeção tenta sinalizar o que permanece fora dessas oposições binárias, a ponto mesmo de possibilitar esses binarismos. Quem é considerada uma mulher 'imprópria'? Quem passa a ser denominada imprópria no texto que a historiadora estuda? Que tipos de atos são classificados ou designados ou nomeados? E quais são tão inomináveis e inclassificáveis que se tornam impróprios à impropriedade, ficando fora do impróprio? Refiro-me a atos que constituem um domínio daquilo que não pode ser dito e que condiciona a distinção entre impróprio e próprio. Ainda não somos capazes de considerar aqueles atos e práticas e modos de vida que foram brutalmente excluídos desse mesmíssimo binário próprio e impróprio. Eles não são a pré-história benigna desse binarismo, mas sim seu violento e inominável avesso. E é isso que eu quero continuar a abordar.


IM e BP: E assim voltamos ao abjeto.
JB: Acho que sim. O que vai ser realmente interessante é ver como se escreve uma história disso; os traços que foram, ou que estão sendo, na sua maior parte, apagados. É um problema muito interessante para uma historiadora. Como ler os traços daquilo que chega a ser falado. Não acho que seja impossível de fazer, mas acho que é um problema realmente interessante: como escrever a história daquilo que não deveria ter sido possível.
IM e BP: Em seu desejo de ampliar o domínio de bodies that matter, você não está sozinha. Essa ambição é compartilhada por intelectuais de filiações filosóficas bastante diferentes. Lembramos especialmente os estudiosos da filosofia da ciência como Donna Haraway e Bruno Latour. Entretanto, suas propostas no sentido de ampliar nossos horizontes a respeito dessa questão não se concentram exclusivamente no domínio do que poderia ser considerado corpos humanos. Eles também desejam transformar nossos conceitos de 'Natureza' e das 'Coisas', para desenvolver considerações mais radicais da ecologia e da tecnologia. Por essa razão, preferem a noção de 'ator' à noção (humanista) de 'sujeito'. Ao contrário da subjetividade, o agenciamento não é uma prerrogativa dos humanos. Animais, árvores, máquinas ¾ por exemplo, qualquer coisa que tenha um impacto sobre ou que afete alguma outra coisa ¾ pode ser percebida como um ator. Tanto Haraway quanto Latour utilizam a noção do 'híbrido' para se referir a essa vasta área de atores que não são (vistos como) humanos. Como você avalia a relação entre sua própria teorização de corpos abjetos como desafios que produzem ruptura no que conta como totalmente humano e a afirmação de híbridos (não-humanos) por teóricos da ciência como Haraway e Latour? Por exemplo, seu conceito de corpos 'abjetos' acomoda a possibilidade de que corpos não-humanos passem a ser considerados matéria/se materializem? Ou o conceito se restringe ao universo do que 'pode ser vivido' como totalmente humano? JB: Acho que o trabalho de Haraway e Latour é muito importante. E não vejo problema com a noção de ator. Mesmo assim, acho que existem razões para se trabalhar com a noção de sujeito, razões que têm tudo a ver com o modo pelo qual ele está relacionado ao legado do humanismo. Gostaria de sugerir também que a noção de sujeito carrega com ela uma duplicidade que é crucial enfatizar: o sujeito é aquele que se presume ser a pressuposição do agenciamento, como vocês sugerem, mas o sujeito é também aquele que está submetido a um conjunto de regras que o precedem. Este segundo sentido funciona a contrapelo da concepção humanista de um self autônomo ou de um ator humano firmemente enraizado. Na verdade, a palavra 'ator' carrega uma ressonância teatral que seria muito difícil de ser adotada em meu trabalho, devido à tendência de ler 'performatividade' como um projeto goffmanesco de colocar uma máscara e escolher representar um papel. Prefiro trabalhar o legado do humanismo contra ele próprio, e acho que tal projeto não entra necessariamente em choque com aqueles/as que buscam desalojar o humanismo com vocabulários que dispersam o agenciamento através do campo ecológico. Há duas maneiras de desfazer o mesmo problema, e me parece importante ter teóricas e ativistas trabalhando em ambos os pólos.

