Psicanálise e feminismo: encontro entre discursos sobre a identidade sexual.27/06/07
Entre a psicanálise de Freud e a teoria feminista de Judith Butler salta-me aos olhos o contorno da figura do sujeito sexuado que ambas se esforçam em traçar. Percebo-a como um entrelaçamento complexo de diversos argumentos que partem de uma fonte comum: a idéia de que sexo e gênero humanos não podem ser concebidos sem que se leve em conta a noção de construção. De dentro da vasta malha de pontos teóricos que aproximam e/ou fazem colidir Butler e Freud, escolho uma trama que servirá para ilustrar as relações entre esses dois discursos no que se refere às questões de gênero e sexualidade. Trata-se da noção de
melancolia do gênero, apresentada por Butler em Problemas de gênero. A partir de minha posição subjetiva de pesquisadora feminista psicanalista, tomo tal noção como ponto de partida porque percebo nela a possibilidade de falar da importância da teoria freudiana para o trabalho de Butler e também de minha tentativa de reconstituir um discurso psicanalítico que possa conter as nuances propostas pela teoria butleriana. Apresento esse artigo como parte de minha pesquisa de doutorado na Universidade de Paris VII realizada na Escola Doutoral de Pesquisas em Psicanálise.
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Melancolia e Gênero
Judith Butler se utiliza da teoria freudiana da melancolia como uma ferramenta para pensar
aconstituição dos sujeitos como seres sexuados. É também seguindo os passos da elaboração dessa teoria que pensa a relação entre cultura e homossexualidade. A partir de sua leitura de textos fundadores de noções tais que melancolia, identificação, escolha de objeto e eu(ego), tenta determinar uma genealogia do que ela chama de cultura da melancolia do gênero Para melhor compreender o que isso quer dizer, sugiro que retornemos aos textos de Freud que lhe serviram como ponto de partida em Problemas de Gênero. Fundamentalmente, Butler cita dois textos: Luto e Melancolia, de 1915 e O Eu e o Isso,
de 1923. Neles, Freud apresenta algumas de suas elaborações teóricas sobre a identificação,
um conceito que determina em sua teoria não apenas um mecanismo psicológico entre outros,
mas sim a "operação pela qual o sujeito humano se constitui"i. Esta operação traz 2 obrigatoriamente em si a marca do sexual, já que toma corpo nas primeiras relações da criança
com seus pais - inicialmente em forma de incorporação oral baseada na maneira como o bebê
se relaciona com o seio da mãe e mais tarde em forma de identificações edípicas ao pai e à
mãe. Em "Luto e melancolia", Freud descreve o processo melancólico da seguinte maneira:
" Existem, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal — uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo —, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado"ii Essa identificação derivada da melancolia está no centro da constituição sexual dos sujeitos. Ela tem um papel fundamental na estruturação do Édipo e nas possibilidades que têm os seres humanos de lhe superar – o fato de poder se identificar ao pai ou à mãe é na verdade o que possibilita à criança poder abandoná-lo ou abandoná-la como objeto de amor. O investimento (ou catexia) na relação com o outro (relação objetal) resiste à decepção por ele causada e serve para estabelecer uma nova forma de contato com o antigo objeto de amor (pai ou mãe): a identificação. Em O Eu e o Isso (1923), fica mais clara a relação entre identificação e a identidade sexual. Freud afirma que no momento da dissolução do complexo de Édipo, o sujeito (já definido como homem) se encontra diante de duas possibilidades psíquicas: uma identificação com a mãe ou um reforço da identificação com o pai. Esta última "saída" é considerada como a mais "normal" por Freud e é ela que permite que a relação terna à mãe continue. Isso significa que, para Freud, a maioria dos homens se livra do complexo de édipo assumindo uma identidade sexual baseada na identificação com o pai e, conseqüentemente, no amor às mulheres (substitutas da mãe). Judith Butler parte dessa descrição freudiana para interrogar o que ela chama de matriz heterossexual que está na base de nossa cultura ocidental. A explicação a esse termo se encontra em Gender Trouble: «Emprego o termo de matriz heterossexual ao longo deste texto para designar esta grade de inteligibilidade cultural que naturaliza os corpos, os gêneros e os desejos (...); neste modelo[discursivo/epistêmico hegemônico de inteligibilidade do gênero], a existência de um sexo estável é presumida necessária para que os corpos façam corpo e tenham um sentido, um sexo estável
traduzível em um gênero estável (o masculino traduz o macho, o feminimo traduz a fêmea) e que
seja definido como uma oposição hierárquica por um serviço obrigatório: a heterossexualidade."iii Ela deseja compreender o funcionamento do processo melancólico e de que maneira isso que Freud chama de escolha de objeto e ela de gênero surge como conseqüência. Seu ponto de partida é o fato de que a estrutura de luto seja o que inicia as formações do eu que a perda de um objeto amado inicie um movimento do eu na direção de uma instalação deste objeto no interior do eu. Ela afirma, a partir de "Luto e melancolia" e "O Eu e o Isso" que "a perda do outro que desejamos e que amamos é superada por um ato específico de identificação que visa instalar o outro no interior da própria estrutura do eu. (...). Esta identificação não é apenas momentânea ou ocasional, ela se torna uma nova estrutura de identidade."iv Na verdade, Butler questiona as razões pelas quais o garoto, diante de dois objetos possíveis e dessas duas predisposições sexuais, escolha geralmente a heterossexualidade. Ela se pergunta se não haveria uma "angústia da feminização" localizada no centro da escolha da criança pela identificação masculina, antes da angústia da castração pelo pai. Para ela, parece claro que «o que prevalece não é que o desejo carnal heterossexual pela mãe seja punido ou sublimado, mas que o investimento homossexual seja subordinado a uma heterossexualidade culturalmente consagrada"v Ela interroga assim o lugar do interdito do incesto na determinação da escolha de objetos, já que no momento do conflito edipiano, o desejo heterossexual já se realizou: é "natural" que o amor sexual infantil do filho não possa se dirigir ao pai. O que Freud pode dizer da ambivalência e da bissexalidade não serve a convencer Butler de uma maior complexidade da visão psicanalítica sobre a sexuação, ou seja, a convencê-la que a teoria freudiana oferece à homossexualidade uma real possibilidade de
existência no seu discurso. Penso por exemplo na dificuldade que ainda encontro para
responder como psicanalista à sua afirmação de que "a bissexualidade é, para Freud, a
coexistência de dois desejos heterossexuais no seio de uma única e mesma psiquê"vi ? 3. Novas e mais amplas maneiras de se reconfigurar o possível Ao iniciar minha pesquisa de doutorado sobre a sexualidade entre um homem e uma mulher, encontrei no trabalho de Judith Butler uma fonte rica de elaborações que me permitiram repensar o que ela chama de "instabilidades fundamentais ligadas às tentativas de teorização do sexual". Lendo Problemas de Gênero na tradução francesa (‘Trouble dans le genre’), encontrei questionamentos que me pareceram estar no centro do que a psicanálise pode ou deseja definir como campo de exploração teórica – questões como: no fundo, o que é o sexo? Se o gênero é construído, poderia então ser construído de outra maneira? O que faz de um ser humano o que ele é, em termos de sexualidade?
4 Butler dirige tais questionamentos a seus leitores com um objetivo preciso: aumentar o campo dos possíveis em termos de gênero, sem instaurar nenhuma normatização. Como afirma Sarah Salih, autora de The Judith Butler reader,
" Por possível, Butler quer dizer possivelmente humano, configurações possíveis do mundo social e modos possíveis de fazer. Na verdade, ela não nos pede nada menos que a
transformação do mundo social tal como ele é constituído atualmente, já que é um lugar onde as respostas à questão ‘o que é um humano’ vêm muito facilmente, e onde a definição da diferença ocasiona invariavelmente a violência da exclusão."vii Essa idéia de complexificar a resposta à questão ‘o que é um humano’ me pareceu uma posição teórica que poderia se aproximar de minhas próprias reflexões sobre o masculino, o feminino e seu aspecto construído. Decidi então estabelecer um diálogo entre o que ela pode pensar da construção da identidade sexual no sentido de uma desnaturalização e o que esses mesmos termos – construção, identidade sexual e desnaturalização – representam para mim numa compreensão psicanalítica desta problemática. Butler afirma ter escrito Gender Trouble para "fazer uma crítica de uma presunção de heterossexualidade difundida na teoria literária feminista". Ela estava particularmente sensível às novas formas de hierarquia e de exclusão criadas por um certo discurso feminista que limita as significações do gênero à idéias recebidas sobre a masculinidade e a feminilidade, conduzindo aqueles e aquelas que o seguem à homofobia. Essa critica se elabora a partir de um novo espaço de teoria , entre os cultural studies e a teoria crítica, ou seja à partir "deste lugar onde a teoria emerge no cruzamento de horizontes
culturais". Existe em seu trabalho uma necessidade de "tocar nos temas" sociais, culturais e
sexuais de maneira direta, já que "a teoria não é nunca simplesmente theoria, no sentido de
contemplação desengajada (...). Ela é sempre plenamente política" viii. A princípio, um tal
posicionamento me pareceu dificilmente compatível com a preocupação psicanalítica, que
tende a uma discussão em termos do particular e do subjetivo. Mas depois percebi que essa
complicação teórica me permitiria definir meu objeto de estudo – a sexualidade entre um
homem e uma mulher – como tendo uma dimensão ligada à identidade(referente à constituição
social do sujeito, ou ao olhar do outro sobre si) e uma dimensão ligada às identificações
(pensadas dentro da teoria psicanalítica e referentes ao modo como o sujeito se estrutura a
partir das relações pré-edípicas e edípicas com seus pais). 4. Considerações Finais Em sua conclusão de Problemas de Gênero, Butler afirma que a tarefa maior do feminismo não deveria ser a de tentar estabelecer um ponto de vista exterior às identidades construídas – tarefa impossível que implicaria imaginar que o discurso feminista não se submete à "localização cultural" analisada em Gender Trouble -, mas sim a de perceber e sinalizar as estratégias de repetição subversiva permitidas pela idéia da construção das identidades sexuais. Em outras palavras, seria a tarefa maior do feminismo demarcar de dentro dos discursos existentes sobre as identidades sexuais as possibilidades que têm os homens e as mulheres de agir, pensar e existir de novas maneiras, guardando sempre e preciosamente a possibilidade de contestá-las.
Acredito que a psicanálise possa se propor uma tarefa similar: olhar para seus discursos
sobre a identidade sexual e deles extrair maneiras de aumentar o campo dos possíveis de
maneira crítica e subversiva. Ao entrar em contato com a teoria sempre plenamente política de
Butler, transformo meu discurso alinhavado nas escolas de psicanálise para nele acomodar
novas questões sobre a construção da sexualidade e do que é sexual. Essa acomodação inclui
reflexões sobre a homoparentalidade e o transsexualismo, entre outras. Ao mesmo tempo,
sirvo-me dos questionamentos apresentados em Gender Trouble para reforçar posições que já
tinha como psicanalista e que continuam me sendo úteis – como a distinção entre identidade e
identificação, por exemplo, ou a possibilidade de pensar em patologias do sexual. Em minha experiência como psicanalista e pesquisadora, acompanho atentamente os diálogos que se estabelecem entre estudiosos do gênero e de questões ligadas à identidade sexual. Tais diálogos não se estabelecem sem ruídos. Recentemente, ouvi do sociólogo Eric Fassin – que anima um seminário com o psicanalista Michel Tort sobre sexualidade em Paris - que há uma recuperação das questões de gênero pela academia francesa. Como conseqüência, surge uma produção de conhecimento que por vezes parece muito acadêmica e não suficientemente política e por vezes excessivamente política e não suficientemente acadêmica. Mas é neste desacordo de interesses – militantismo político e academicismo – que vejo a possibilidade de discutir as relações entre, por exemplo, psicanálise e política no tocante às questões de gênero. No que pode parecer uma discussão entre paradoxos, entre um discurso que não pretende expressar uma visão de mundo e um outro que não permite a contemplação desengajada, vislumbro a possibilidade do surgimento de novos saberes. Um tal conhecimento, que começa a se desenhar em minha pesquisa, se empenha em atender às demandas clínicas daqueles que procuram a psicanálise ao mesmo tempo que renova a teoria psicanalítica que conheço, trazendo-lhe mais tolerância e aumentando sua potência crítica
http://www.youtube.com/watch?v=YbY27xkl91w